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josé eduardo barros
Paul Celan: a poética do cicatricement
O escrito cava-se
–
Paul Celan
Na correspondência de Paul Celan com sua mulher Gisèle Celan-Lestrange,
escrita em francês, o poeta nos apresenta um vocábulo inventado –
cicatricement – que vai dar o tom de sua poética. Um neologismo oriundo do
francês cicatrice. Uma cicatriz sempre em movimento.
Em 2.4.1966, Celan escreve a Gisèle: “O Verdadeiro-cicatriz, eis o
resultado de minhas diversas cogitações”. Nesta mesma carta, ele envia um
poema que começa com os seguintes versos: “O verdadeiro-‘cicatrizmente’,
enganchado/ no Extremo/ impossível de se desenredar”. A questão da
cicatriz (cicatrice) e sua variação cicatricement traduz a singularidade
do poeta ao habitar o idioma. Cicatricement é um neologismo inventado pelo
poeta. Podemos considerá-lo como um advérbio,"cicatrizmente", mas podemos
pensá-lo também como uma cicatriz sempre em movimento. Celan revela em
seus escritos uma cicatriz que não se fecha: a cicatriz de nosso tempo.
Uma cicatriz que traz a marca de seu tempo, de seu trauma: uma perda
irreparável. Ainda, uma palavra em movimento. Movimento melancólico.
Lembremos que os judeus de Czernowitz, cidade natal do poeta, começaram a
ser perseguidos em 1939, a princípio pela polícia política da Rússia de
Stalin e depois por Hitler. Durante o ano de 1941, os judeus foram
perseguidos sem trégua. Houve um momento de calmaria, e Celan chegou a
escrever a amigos no exílio, dizendo que ele e a família tinham escapado
ilesos à barbárie alemã. No entanto, no mês de junho de 1942, recomeçaram
as perseguições e deportações em massa. Paul Celan encontrou um abrigo
numa fábrica de cosméticos. Sua mãe não queria se esconder neste abrigo.
Celan insistiu que a fábrica oferecia toda a segurança.
Em um domingo, o poeta partiu confiante de que seus pais o seguiriam.
Esperou-os durante toda à noite. Mas, não apareceram. Foram presos e
morreram alguns anos depois, em campos de concentração. Paul Celan nunca
se perdoou por ter partido sem os pais. O poeta foi atravessado na idade
adulta por um “trauma histórico”, a partir da violência nazista que
atingiu, de início, seus pais. Este trauma o acompanhou durante toda a
vida, e também participou de sua escrita. Escrita que se apresenta na
língua alemã, língua materna: língua-morte, língua-trauma. Celan
testemunha através da língua, pela língua, o que está do lado do real,
isto é, do inominável. Além disso, o poeta trabalha com a língua e a faz
mover-se, dando-lhe um destino de cicatriz.
A escrita de Paul Celan parte do encontro do real, na medida em que os
acontecimentos que permeiam sua poética tocam em questões impossíveis de
simbolizar, a saber, cito a poeta Martine Broda: “um acontecimento puro, o
impossível, o surgimento de um absoluto horror, quer dizer, de um real”.
Trata-se aqui, portanto, de “uma catástrofe obscura”, ligada ao que podia
ou não ser escrito, ao que ainda podia ser escrito, após Auschwitz.
O ensaísta Fernand Cambon diz – indo contra a famosa frase do filósofo
Adorno, que formulou “que seria bárbaro escrever poemas depois de
Auschwitz” – que, ao contrário, a poesia seria a forma de linguagem mais
adequada para sustentar uma tarefa marcada pelo impossível. Em Celan, nas
palavras de Cambon, “o real do ato poético” é uma resposta ao real do
acontecimento sem resposta de Auschwitz.
Os acontecimentos dos campos de concentração são da ordem do impensável,
do inominável e do inimaginável. Podemos buscar articulá-los em uma
“composição do real”. Nesta composição percebemos ma constelação de
elementos chamados a constituir a realidade cuja ‘matriz’ permanecerá para
sempre fora do domínio da expressão. Este real é algo que se dá, sem
mediação, e que “continua o efeito traumático do que ficou fora da
simbolização”. Ele é inapreensível.
Os poemas de Celan portam a escrita do real com seus ‘ritmos improváveis’
operando com ‘vesículas de lembranças’, com mínimos traços, com a intenção
de tentar tornar figurável o real de Auschwitz através da voz. Celan se
impõe a tarefa impossível de reunir de novo o real dos ‘campos’, e não tem
outro meio de realizar esta junção a não ser escrevendo poemas.
A sua escrita carrega uma linguagem do que é morte nas pedras. Ela habita
um ‘reino’ inanimado onde se presentifica a dor do poeta. Uma “escrita de
sombras sobre as pedras”, nas palavras do poeta. Este caráter inorgânico
da linguagem celaniana fala de uma escrita hieroglífica, sempre em
referência a um sentido perdido. A sua errância é experimentada na
referência a um objeto perdido, em uma radical tentativa de inscrição.
Mas, Celan diz também que “é tempo que a pedra se decida a florir”. O
vazio e o silêncio comparecem nesta lírica de dor, trazendo a questão da
voz poética. Cito seu texto em prosa Conversa na Montanha: “Assim, a pedra
silenciou, ela também, e o silêncio se fez. (...)”. Confirma-se que apesar
da pedra ter silenciado, “o silêncio não é um silêncio, nenhuma palavra
ali está calada, nenhuma frase, é apenas uma pausa, apenas um intervalo
entre as palavras, é apenas um vazio, podem-se ver todas as sílabas
imóveis em volta”. Ou seja, é uma pausa, um meio entre as sílabas – a
palavra resta entrecortada. E o poema se constrói neste ritmo que se passa
“entre” as palavras, nos cortes no meio da frase, nas escansões dos
versos.
Em seu texto-discurso “O Meridiano”, Celan fala que a poesia é qualquer
coisa que pode significar uma mudança na respiração. Para o poeta, é em
uma ‘pausa na respiração’ que o poema é construído. Segundo Jean-Pierre
Lefebvre a expressão Atemwende (“mudança de respiração”) é mais do que uma
simples mudança de orientação de respiração ou de ar. Ela designa o
momento intermediário entre os dois tempos da respiração, durante o qual o
fluxo respiratório se inverte e recomeça no outro sentido. Nos textos
preparatórios ao discurso “O Meridiano” encontramos uma alusão de Celan a
uma frase que sua mãe teria repetido para ele: “o que temos no pulmão,
temos na língua”. A frase será desenvolvida pelo poeta em uma palavra
composta: “por caminhos da respiração”, que permanece no texto definitivo
de “O Meridiano” e exerce um papel importante na poética de Paul Celan,
pois liga a poesia à vida e à morte (“o que, ao pé da letra, fala-à-morte”)
. Nos caminhos da respiração, a língua é tratada em sua vertente do ritmo.
O ritmo pensado como o modo de aparição na língua do real ausente de todo
fechamento estabilizado do som e do sentido, como fala o poeta
contemporâneo Christian Prigent.
O texto definitivo do discurso “O meridiano” é o resíduo da decantação
difícil de um manuscrito enorme (notas, tentativas, transcrições entre
maio e outubro de 1960) com cerca de 300 páginas. Este discurso é
qualificado por Derrida como um ato exemplar. O escritor Roger Laporte, em
seus comentários sobre Paul Celan complementa dizendo que:
O Meridiano é, com efeito, um ‘ato exemplar’ na medida onde o ato do
pensamento e o ato poético fazem um só ato. Este ato constitui uma
escrita, constitui-se como uma nova modalidade de escrever, como
experiência, isto é, ao mesmo tempo como prova e como travessia, como
passagem, como tentativa de atravessar uma região assustadora, como um
abrir caminho que é preciso cumprir até o fim .
O discurso “O Meridiano” deve ser visto como um trajeto de escrita, onde o
caminho é sempre um ‘caminho do impossível, este impossível caminho’.
Meridiano é o nome dado a uma linha imaginária da superfície terrestre que
se estende de um pólo a outro. Um meridiano é a metade de um grande
círculo que passa pelos pólos e forma um ângulo reto com o Equador. Os
meridianos também são chamados de linhas de longitude. Para saber
precisamente onde se encontra, e para localizar qualquer ponto da
superfície terrestre, o homem inventou dois tipos de círculos que cortam a
Terra em dois sentidos: leste-oeste, meridianos; norte-sul, paralelos. O
meridiano também pode ser pensado como uma travessia forçada, isto é, algo
que toca um limite. Sabe-se que o meridiano é qualquer dos círculos
máximos da esfera terrestre que passam pelos pólos. É este ‘máximo’ que
atinge a poesia de Celan. ‘Máximo’ aqui pensado como algo que precisa de
um esforço redobrado, eu diria até um ‘forçamento’.
Celan busca encontrar um Meridiano – (‘encontro de si mesmo’) – , como ele
escreve em sua agenda no dia 13 de abril de 1960, após saber que tinha
ganho o prêmio Büchner. Também encontramos, no final de seu discurso, uma
referência à busca empenhada na constituição de si, no intuito de
encontrar uma linguagem que pudesse expressar seus poemas. Cito o texto:
“encontro qualquer coisa – como a linguagem – de imaterial, mas terreno,
planetário, de forma circular, que regressa a si mesma depois de passar
por ambos os pólos e – coisa divertida! – cruzar os trópicos: encontro um
Meridiano”.
Ao falar de ‘coisa divertida’, Celan faz um jogo, na língua alemã, com as
palavras “tropos” e “trópicos” (que tem a mesma forma de plural, Tropen).
A palavra tropos quer dizer no sentido dos céticos, argumentos que
mostravam que era impossível atingir a verdade. Também quer dizer desvio,
mudança. Encontrar um Meridiano pode ser lido como algo impossível de se
realizar em sua totalidade, quer dizer, impossível de atingir a verdade do
encontro e, por conseguinte, impossibilidade que atinge o próprio poeta,
em sua busca de si mesmo.
Com Paul Celan, percebe-se a voz em trabalho de escavação contínua. A
linguagem no poema tem um status especial; ela é voz, mas em posição de
espera. Há uma ‘pedra de espera’ para usar uma expressão do poeta Michel
Deguy falando sobre a poesia de Celan. Então, a linguagem – no poema –
pode tornar-se voz. A voz aqui pensada como uma ‘marca em carne viva de
uma cicatriz’ resultante de um afrontamento entre som e sentido. E, que se
abre em um espaço além das coordenadas espaciais habituais. O poeta se
desloca neste espaço, operando com ‘restos de escuta’ e fazendo ‘cunhagens
auditivas’. Há uma ‘voz-do-escrito’ no poema, que se pronuncia bem
distante dos ruídos estridentes do ‘eu’. Ela é um traço sonoro e rítmico
do gesto específico chamado ‘escrita’ e se dá em escansões. Cito os versos
finais do poema “Voz”:
Não uma
voz – um
tardio rumor, estrangeiro às horas, agradável
a teus pensamentos, aqui, desperto
por fim: um
pistilo, grande como um olho, com uma profunda
ranhura; ele
goteja resina, não quer
cicatrizar.
Esta voz-do-escrito nos chega com a materialidade do real, ‘real do
material que se dá a ver, a escutar, real da fonação, real da escrita
desossada’, em um infatigável trabalho de corte da língua: um trabalho de
cicatricement.
JOSÉ EDUARDO BARROS é
psicanalista e fotógrafo. Mestre em Teoria Literária
pela UFRJ e, atualmente, além de manter um blog fotográfico, escreve na
coluna Folhas Volantes para a Revista Sibila.
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