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marcelo moutinho
interlúdio
Na mesinha de mogno, próximo à
imagem de Santo Expedito, o telefone a desafiava em silêncio. Ela revezava
a vista entre o aparelho e a tela da TV, onde a novela das oito lançava
algum colorido na sala escurecida pelos móveis de fórmica marrom, sem no
entanto dominar a atenção. Os olhos posavam ora na tela, ora no telefone
e, embora indecisos, tentavam se manter firmes sobre as bolsas inchadas do
rosto, como se dissessem que permanecer abertos, apesar do sono, era
questão de honra.
Mantinha os pés descansados sobre uma almofada puída, ainda mais
esturricada pela sujeira do chão, e apertava com as mãos a xícara de louça
inglesa, que vibrava, inquieta, em contraste com o ritmo seguro da cadeira
de balanço. Os movimentos para frente e para trás ninavam o nervosismo à
medida que o chá preto era sorvido em goles curtos e lentos.
Na sala, apenas ela. O irmão fora dormir logo após o jornal, desejando o
boa noite terno de sempre e deixando-lhe um beijo leve na face, a
solidariedade que a velhice impõe entre os que nela se embrenham. Quero
ver um pouco da novela, descansei à tarde, daqui a pouco também vou, uma
dessas frases saiu de seus lábios naturalmente, como um bocejo, esboçando
a desculpa e precedendo o até amanhã.
O telefone permanecia fixo à mesinha, numa quietude sádica, enquanto ela
tentava vender a si mesma alguma tranqüilidade, abrigar-se na moldura
barroca da senhora impassível e distinta que toma chá antes de se
recolher. Cada vez que os comerciais davam trégua, ajeitava os óculos com
a ponta dos dedos, como se ansiasse por mais nitidez, para então fitar
novamente a tela da TV, mendigando um motivo qualquer que a fizesse
desviar do aparelho.
Fracassava. Ainda que resistisse, acabava por espiar de soslaio, turvando
por dentro a imensa vontade de tomá-lo com a força que já não tinha, de
enfiar os dedos em seus pequenos círculos e girá-los por oito vezes, no
aguardo da cadência perfeitamente harmônica dos sinais. Mas o receio de
ouvir os sons se repetirem sem a trivial interrupção de uma voz, como se
não fosse mais escutá-la, mantinha-na presa à cadeira de balanço.
Ademais, ela prometera a si mesma que aprenderia a esperar. Já tens idade
para isso. Não és mais nenhuma garota, olha a pressão, a voz do irmão
ecoava, num sussurro que acionava o freio: antecipar-se, fazendo a
ligação, seria assinar o atestado de derrota para aquele telefone inerte
que lhe retribuía apenas o olhar - e a mudez.
Quando a novela terminou, o sono já pesava agudo nas pálpebras. Questão de
honra, mas o corpo começava a vencer.
Ela se levantou da cadeira, não sem antes esgueirar o aparelho, e levou o
bule e a xícara até a cozinha, onde refrescou os olhos com a água da pia.
Na volta, trocou de canal. Um debate sobre futebol. A reprise de um filme
com o Paul Newman. Um debate sobre as eleições. O homem que vendia tapetes
persas. Foi quando o telefone tocou.
A campainha ainda não havia soado pela segunda vez: ela agarrou o aparelho
e vorazmente colou-o ao ouvido direito.
Alô? A Márcia está?
Não tem ninguém aqui com esse nome, meu filho.
Esvaziada da súbita avidez, ela colocou o telefone novamente no gancho e
conferiu o relógio que ficava no alto, preso à parede. Onze e trinta e
oito: àquela hora, certamente não telefonaria mais. Desligou a TV e seguiu
para o quarto.
Já deitada sobre a cama e coberta pela grossa colcha de crochê, cogitou se
não deveria ter insistido mais um pouco, uns minutos que fossem, talvez um
pequeno atraso, por qualquer motivo, às vezes acontece. Mas já era tarde,
quase meia-noite. Então ajeitou a cabeça no travesseiro, fechou suavemente
os olhos e, na mais completa escuridão, sussurrou dez Pai Nossos e dez Ave
Marias, rogando por sonhos brandos - e esquecimento.
MARCELO MOUTINHO é
escritor e jornalista. Escreve resenhas literárias para os cadernos Prosa
e Verso (O Globo) e Idéias (Jornal do Brasil). Fez sua estréia em 2001 com
o livro Memória dos barcos e, desde então, tem publicado em diversas
antologias e periódicos. Em 2006, publicou seu segundo livro, Somos todos
iguais nesta noite.
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