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o novelo de odradek | victor paes


a questão é: o que é um Manah-manah?
 

 

 

Acordar é se levar muito a sério. Então, há sempre alguns cinco segundos nesse salto, no topo da gravidade zero, entre dormir e acordar, ainda como nos sonhos, quando tudo ainda se contrai e tudo cabe em nossa lógica, a despeito de que lógica seja, onde já não há diferença entre sonho e vigília e salto, pois percebemos estar sempre usando, em qualquer desses momentos, o mesmo artifício de acreditar sermos aquilo que parecemos ser. E tudo que conhecemos nos cabe. Mesmo aquilo que não conhecemos. E mesmo quando esses cinco segundos possuem um tema, na verdade possuem todos os temas.


Pois o que vou contar é um desses cinco segundos com tema, acontecido comigo, no qual eu lembrei ter brigado seriamente com meu grande amigo escritor argentino Castelo. Na noite anterior eu havia estado no mesmo bar que ele, na mesma roda de amigos e ouvido suas narrações de algumas de suas histórias. O motivo da briga: eu lhe disse o que realmente acho de sua obra.


No primeiro dos cinco segundos, Castelo já me ofendia. Não suportava me ouvir dizer que sua prosa não pertence à sua poesia, o que é o problema. Sua poesia é poesia, um desvelar consciente de não solucionar. Mas sua prosa não é engajada nas coisas, como se não pudesse tratar delas, aninhar as coisas nos contos, sem feri-las. Castelo não vê as coisas, Castelo vê coisas. Então, inventa apenas fatos absurdos, espécie de soluções para a realidade, com a pretensão intelectualóide instituída a partir de Cortazar, Borges e outros meros deformadores, de, por puro desprezo pelo real, tentarem outros reais, totalmente ilógicos. Isso me irritava (pois o uísque me irritava), Castelo me irritava, mandei-o à merda e ele me convidou a ir com ele. Isso tudo no primeiro dos cinco segundos.


No segundo seguinte, eu me descobriria um total boçal por pensar dessa forma, mas o ambiente se transformou em tão outro, que eu já me vi rindo com Castelo de uma de suas idéias ainda não-conto. Pois era tão absurda e ao mesmo tempo tão real (como uma morte) que ríamos (espantoso não rirmos da morte). Havia pensado em uma personagem, uma senhora de idade, que ouvira falar das maravilhas e promessas da reciclagem e começara a levar todo o lixo que encontrava nas ruas para casa. Em alguns anos, havia entulhado o apartamento até o teto e, não suportando mais o pouco ar restante, carregado de podridões, foi morar na casa da filha. Todos ríamos e alguns gritavam para Castelo, em uma brincadeira bem particular do grupo: “trobacodelúrio!”. Lembramos depois de um de seus contos, em que uma rua havia sido tomada de baratas a ponto de não se poder ver alguns carros e muros. As baratas vinham do apartamento de um doido de capa preta que as criava no quarto, alimentando-as com leite condensado embebido em absorventes íntimos. Envenenadas por um vizinho revoltado, elas brotaram pelas janelas. No dia seguinte, os moradores varriam e carregavam em centenas de baldes toneladas de baratas. “Trobacodelúrio!”. Entre outras histórias. Castelo pra mim é gênio.


No terceiro dos cinco segundos, Castelo pouco se dirigia a mim. Eu estava no bar e na roda, mas não era exatamente seu amigo. Era amigo de um amigo, e aí já apenas leitor. Não me deslumbravam muito esses grupos em que cada um sabe ser o melhor dentre os outros e com mais futuro artístico. Dali, apenas eu podia pensar isso com propriedade. E Castelo não era meu escritor preferido.


No quarto segundo, eu estava no bar e na roda, mas porque havia me levantado de minha mesa para tentar descobrir quem era o causador daquele burburinho e me intrometido naquelas pessoas que gritavam de vez em quando uma palavra que eu não conhecia. Tive repulsa ao seu conceito de arte. Não conhecia de rosto o escritor consagrado que estava ali.


No último segundo eu jamais havia saído de casa para bar nenhum. Havia passado a noite anterior em casa, bebendo sozinho, lendo Cortazar e organizando minha coleção de recortes de jornal.


Acordei e durante alguns minutos antes de estar mesmo acordado, pensei naqueles cinco segundos. Não preciso dizer que para contá-los agora aqui, tive de inventá-los. Ninguém em sã consciência consegue se lembrar de tantas coisas passadas em apenas cinco segundos.


Ainda sentado na cama, descobri ter dormido em cima de meus recortes, e que um deles estava colado em meu rosto. Peguei-o e li o título da matéria: “Lixo até o teto”. Pensei sobre textos e sobre conteúdos de textos. Pensei por mais alguns minutos. Depois disso, a questão era: todo texto precisa necessariamente ter um título?

 

 

VICTOR PAES é escritor, ator e professor. Além disso trava lutas diárias com a dramaturgia e com alguns gnomos. Foi premiado pelo Prêmio Jovem Artista, da Rioarte, com o texto teatral Os Cálices do Deus, que depois foi apresentado no Projeto Nova Dramaturgia. Foi publicado pela Editora Record, na coletânea do Prêmio Nossa Gente, Nossas Letras, da Oldemburg. Após cortar relações com o escritor Edmundo Castelo, resolveu lançar, pela editora Confraria do Vento, o livro de poemas O desvelar códigos e a boca intransferível, já no prelo.

 


 

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