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a arte da astúcia | ricardo pinto


sobre uma ética da autoria

 

 


O salto que nos cabe dar para passar de uma existência miserável ao fim dela não é tão sensível quanto o que separa uma vida tranqüila e florescente de uma vida difícil e dolorosa.
 

Do Medo, Montaigne
 


Sempre que escrevo procuro me aproximar da beleza com o máximo de cuidado. Por mais que a relacionemos à delicadeza e à leveza, sei muito bem que uma coisa bela (bela de fato, ao menos) tem o hábito de ser venenosa, como uma dor no crânio, uma angústia ou a felicidade: estas coisas que nos tiram do velho corpo, bom por adaptado e tranqüilo, e nos tornam estranhos e insatisfeitos. É só pensar a importância da palavra desassossego em Fernando Pessoa para lembrar o quanto arisca e perigosa é a beleza, como a própria astúcia com que me ocupo. Pensemos nos momentos de plenitude de nossa própria vida, e poderemos perceber que é neles que expressões como “na corda bamba” ou “no fio da navalha” têm mais significado. Por trás da vida sentida há sempre a vida contada, se esgotando, e podemos medir sua fuga com mais clareza do que ouvimos nosso próprio pulso.

Este cuidado faz com que eu me contenha e repense as palavras,e me sinta bastante avesso àquilo que chamaríamos de inspiração. Se minha imaginação insiste em me erguer, o hábito de olhar a escrita e a arte com desconfiança prende meus pés. Eu sei muito bem do canto das sereias, mas que elas não cantam por mim. É deste lugar sem encanto, mas também sem deslumbre que procuro falar, e só consigo escrever se me certifico de que não me deixei enganar pela promessa da beleza. Sei que ela, como o amor e as fugas para os paraísos parciais que nos cabem não são formas de liberdade.

Isto não significa uma mediocridade consentida, mas sim que procuro medir minhas palavras pro outros valores que não sejam os efeitos fáceis, as imagens fortes, os muitos álcoois que podemos conhecer através da convivência e da entrega à arte. Tampouco há liberdade neste controle, mas penso que encontro algum tipo de dignidade, o que me basta até aqui. Em algum momento esta dignidade será pouco, e terei de procurar a beleza sem meus cuidados, e aí talvez me encontrem como um poetastro, arrotando versos fáceis e inócuos. Por enquanto, estou salvo.

Enfim, eu preciso de uma ética naquilo que escrevo, como em todo o resto. Sem ela cairia no risco de me perder em uma beleza vazia, que, temo, acabaria por me esvaziar também. Há algum tempo tive um sonho que provavelmente empurra minhas mãos por este texto de agora. Sonhei que estava em uma escadaria, como essas que existem nas favelas e que parecem vales entre paredes de pedra, ou uma arquitetura fora do tempo, deslocada como poucas coisas que podemos encontrar na cidade. Há um tiroteio e me jogo no chão junto com todos ao redor. Vejo à direita três meninas muito jovens serem baleadas, um buraco vermelho na barriga de cada uma, e se contorcerem chorando. Naquele tempo estranho dos sonhos eu as observo uma eternidade, as meninas chorando com suas feridas como um umbigo sangrento em um nascimento invertido, e só posso pensar que eu deveria estar lá do lado delas, desde muito antes, para evitar que fossem feridas, ou desde agora, para estancar o sangue. E só consigo pensar que deveria estar lá, mas não consigo me mover, e apenas observo.

Este abismo do dever é o que me preocupa, o que define as imagens que uso e as coisas que digo. Nós podemos agir segundo aquilo que queremos, aquilo que podemos ou aquilo que devemos. A maioria das pessoas se imagina da primeira forma, lutando para obter aquilo que quer, embora de um modo geral estas mesmas pessoas, nos momentos de lucidez terrível que nosso tempo de consumação e de desejo às vezes desperta, sejam obrigadas a admitir que fazem aquilo que podem, o que significa tanto fazer o que se consegue quanto fazer aquilo que alguma força impessoal, como a lei, a necessidade ou o mercado, permite. São mais raras aquelas que fazem realmente o que querem. Soube da história de um sujeito que mantinha três mulheres, sem que conseguisse enganar nenhuma das três, embora mentisse para todas. Este Don Juan desastrado agia em nome de alguma idéia de virilidade que relacionava seu prazer à variedade de pernas que conseguia abrir, o que é bastante vulgar, sem dúvida, mas temos de lhe conceder o mérito de não se importar muito com as contradições ou com esta coisinha chamada realidade em seu modo de agir. Das três mulheres nenhuma o acompanhou muito tempo, mas provavelmente aperfeiçoou seu método e terá talvez outras tantas para se exasperarem com suas desculpas. No fim, o que importa é que em seu gesto ele segue um plano próprio, que não tem a ver nem com as circunstâncias que o cercam nem com algum dever abstrato para com a dignidade alheia. Soube que chorava como um menininho frágil toda vez que era posto contra a parede. Sabia usar bem os clichês, como numa versão menor de Vinícius de Moraes. Do outro lado do espectro há um conhecido meu que não se move por absolutamente nada, e leva suas coisas sem esforço nenhum, recebendo apenas o que lhe cai sobre o colo. A simples idéia de perder o sono lhe é terrível, e concebe a existência como um vasto dormitório, indiferente às pancadas, reclamações e afetos que às vezes lhe atingem. Segue tranqüilo e altivo, e entre fazer e não fazer sempre prefere o último. Neste sono extenso vai envelhecendo e engordando. Penso que um e outro têm em comum a capacidade de tratar o mundo como uma miragem, que pode ser facilmente ignorada ou tratada como um detalhe menor, uma extensão de seu sonho. Mas, são assim as pessoas que procuram agir conforme seus desejos, que sempre fazem o que querem.

Creio que um artista não possa se situar nem no poder, nem no querer. O primeiro caso, de uma consciência que simplesmente aceita os limites do mundo, impede o salto para além que é necessário para qualquer obra de arte. Se me conformo com a Lei, com Deus, com o Dinheiro, a arte não tem lugar para mim, pois o universo está completo. E sem a incompletude não há o estético, sem que precisemos de um sentido a mais para a realidade não há a obra de arte. Por outro lado, se minha consciência não concede ao mundo substância e não aceito que me afete, minha linguagem será sempre menor, sempre infantil na medida em que recusa o diálogo. Penso então no dever, em um agir segundo uma angústia da falta e do limite que faz com que se aceite e que se recuse o mundo em que estamos inseridos. A realidade nunca corresponde a sua imagem mais plena, o que me leva a querer saltá-la. Eu mesmo nunca correspondo a meu reflexo mais iluminado, e não tenho como permanecer em mim, cadáver adiado que procria, sob o risco do sem-sentido. Neste espaço em que nem o palpável nem o desejo bastam é que encontro a ética e é onde encontro a arte. Ambas nascem de uma impossibilidade de fundo, a de ter as coisas conforme elas deveriam ser, seja lá o que isto signifique. É também o espaço das aporias como vida e morte, real e mistério, prazer e dor e as tantas outras que nos movem.

Escrever tendo isto em mente é sempre uma tentativa de tocar nossa própria dignidade, especialmente de não esquecê-la. Uma ética autoral é sempre a da busca dos sentidos que não se entregam, mas também de si, que tampouco se rende. A beleza é sempre um dos caminhos, um dos poucos que ainda restam, para a redenção do humano. Mas, sem a força de uma razão que a abrace, é só mais uma das formas da doença. Nunca é possível saber exatamente porque alguém escreve, mas se esta pergunta não está misturada àquilo que corre no texto, dificilmente se pode dizer que alguém escreve.

 

 

RICARDO PINTO é poeta e escritor, ou quase. Atua como professor, edita a revista Confraria e é sócio da editora Confraria do vento. É mestre em Literatura Comparada e teve alguns artigos e poemas publicados em sites e revistas, assim como um livro de poemas Amar o mar e outros poemas (2000).
 


 

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