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luciano nascimento
veja que pornografia
A melhor expressão para
definir algumas publicações da imprensa no Brasil foi forjada por uma
professora de uma das universidades públicas do estado do Rio de Janeiro,
inclusive, numa aula brilhante, há alguns anos: “elas (as publicações) são
simplesmente pornográficas”. A revista VEJA, com certeza, seria a
princesinha – Fiona – desse mar... de lama.
Explico: o termo “pornografia”, ainda que o uso mais comum seja aquele
para o qual se dispensam apresentações, não se restringe tão-somente a
práticas sexuais, digamos, menos pudicas, ou pouco ortodoxas, ou em
desacordo com o que preconizam as igrejas – quaisquer que sejam elas,
práticas e igrejas –, mas a práticas, em geral, que ferem a decência, o
pudor, a seriedade, a honestidade. Tendo isso em mente, é legítimo
concluir ter razão a professora, por não ser menos que pornográfica a
forma como se tenta induzir o raciocínio do leitor na matéria publicada na
edição 1897 (n.º 12, de 23/03/05) daquela revista, sob o título “COTAS
PARA QUÊ?”. Sequer é necessário discutir a legitimidade do sistema de
cotas, abordada no texto em questão, para verificar quão tendenciosa é a
reportagem. Não somos todos antropólogos, nem sociólogos, ou pedagogos, ou
outros estudiosos quaisquer de áreas afins. Atenhamo-nos, pois, ao que é
condição primeira para alguém lidar com o veículo: saber ler. A extensão
de “ler” deve, claro, ser elucidada. Ler é mais do que juntar letras, do
que decodificar sinais gráficos. É ser capaz de compreender o texto, nesse
caso verbal, e estabelecer relações contextuais, intertextuais,
situacionais... Ou, em resumo, não ser inocente útil, não entrar na
leitura somente com os olhos, reservando ao nobre intelecto a função de
memorizar determinadas informações, tomadas como prontas, para uso futuro
(“Ah, se está escrito, então é fato!”). Lendo, com olhos e mente,
verifica-se que há algo de muito podre naquele reino.
Já no título se observa o ar cínico e debochado. Numa letra escrita por
Tom Cavalcanti, tal estrutura ficou ótima, ainda mais em se tratando do
Romário, que, naquela época, não gostava de treinar, mas fazia gols. Aí,
era até engraçado: “treinar pra quêêê? treinar pra quêêê?”, todo mundo
repetia, e ficava a idéia de que treinar era mesmo inócuo, já que, no
final, treinando ou não, o “Baixinho” resolvia tudo. Essa reedição
chinfrim da fórmula, tentando, logo no começo, manipular a interpretação
do leitor, é maquiavélica. “COTAS PARA QUÊ?” é bem diferente de “PARA QUE
COTAS?”, visto nesta não ficar preliminarmente marcada a noção de as
cotas, assim como os treinos para o Romário, serem inúteis.
Ainda antes de iniciar a leitura do corpo do texto, há mais uma marca da
política “VEJA o que eu quero” da revista: o subtítulo da matéria diz que
“Pesquisa financiada pelo MEC DERRUBA (grifo meu) a tese de que negros não
têm acesso às universidades federais.” Observe-se que a pesquisa não
“contradiz”, não “nega”, não “se opõe”; ela “derruba”, “lança ao chão”,
“subjuga” a tese. Simples: aqueles verbos, comuns em tal uso, não teriam a
mesma força retórica do empregado. Era necessário incutir a metáfora da
guerra: pesquisas de um lado, tese do outro, e o leitor assistindo ao
massacre. Era indispensável, também, criar impacto (“o leitor precisa ser
seduzido!”). Equação fácil: a tese foi “derrubada”. Mas também poderia ter
sido aniquilada, dizimada, destruída, pulverizada... Fica a sugestão.
Não vou questionar os números apresentados. Assim como as palavras, eles
também podem ser arrumados segundo o interesse de quem os escreve, mas
eles não são minha especialidade. Entretanto, para usar uma expressão da
própria reportagem, acredito que, num país sério, uma pesquisa séria seria
levada a público por uma revista séria, que saberia, é claro, que os
critérios que a nortearam deveriam ser divulgados (principalmente acerca
do que se mostra mais difícil: se eles foram rigorosamente os mesmos
dentro e fora das universidades, ou seja, se exatamente os mesmos fatores
foram levados em consideração na “sociedade” e na “universidade”). Citar
só as instituições que coletaram os dados não é suficiente, visto ser
pouco comum a possibilidade de acesso aos procedimentos dos institutos
para a coleta de informações, processos sempre sujeitos às mais diferentes
condições. Entretanto, deixarei, como já disse, os números de lado, e
voltarei às palavras.
O primeiro parágrafo do texto traz duas afirmações travestidas de
perguntas: o principal problema do país é a obesidade, então o que fazer
com o FOME ZERO? E: o negro já está na universidade, então o que fazer com
a proposta de uma reforma universitária “assentada” (qualquer semelhança
com o campo semântico associado ao MST não terá sido mera coincidência) na
necessidade de proporcionar o acesso dele a ela?
Lendo com os sacrossantos olhos da pureza, esqueceríamos os indiozinhos
mortos de fome no começo do ano no Centro-oeste brasileiro; ou talvez
pensássemos que o sertanejo, no semi-árido nordestino, morre
principalmente de hipertensão, devido ao mau colesterol acumulado em suas
veias, visto sua dieta à base da carne vermelha e gordurosa dos Bois
Sem-Dono (Movimento BSD, o campo está cada vez mais organizado...) da
região, cujas carcaças são, posteriormente, depositadas sob o sol
escaldante para serem filmadas, como figurantes, no cenário
cinematográfico de uma seca fictícia, uma fome de mentirinha. É preciso
ser muito puro mesmo.
Quanto à segunda afirmação, só pureza não basta. Há que se ter pouca
memória também, pois o sistema de cotas não começou no governo do PT, mas
no do PSDB. Escrito como está lá na revista, isso quase passa
despercebido. Teria VEJA esquecido esse detalhe?
Dentro desse mesmo parágrafo, há outra afirmação interessantíssima:
“mudem-se as pesquisas, mantenham-se as políticas erradas e tome
mistificação para cima do RESPEITÁVEL PÚBLICO!” (grifo meu). “Respeitável
público” remete, indiscutivelmente, para o ambiente circense: o
apresentador se dirige à platéia dessa forma. Isto posto, é a analogia
natural ver a atual conjuntura política nacional como um picadeiro, uma
brincadeira – no sentido mais pejorativo possível – à qual o povo apenas
assiste, como um espectador indefeso. A revista se coloca,
automaticamente, como o super-herói que defenderá o leitor do famigerado
vilão “Sapo-barbudo”, para pegar emprestada a expressão cunhada por Leonel
Brizola.
A aceitação tácita da proteção oferecida pela reportagem é o passaporte
para ingressar numa viagem pelas águas caudalosas da verborragia. Apoiado
no recurso aos argumentos de autoridade, às insinuações levianas, à
escolha vocabular meticulosa, à dialética friamente calculada, o texto
segue trazendo números e mais números, todos contra o governo, e
endossando a tese de que estamos num circo, onde ele, o governo, é, ao
mesmo tempo, o dono, o mágico, o acrobata, o palhaço e o domador, e o povo
é, por sua vez, fera domada e platéia.
A reportagem (não sei por que, continuo a chamar assim, sem nem colocar
aspas... talvez eu mesmo seja “um tolo, um ingênuo nefelibata”, como diz o
João Ubaldo Ribeiro) a reportagem, eu dizia, afirma que o crescimento do
número de negros nas universidades é “impressionante”. Esta é a palavra
usada: “impressionante”. Sou aluno da maior universidade federal do país,
a UFRJ, e observo, sinceramente contente, que houve mesmo um aumento
considerável no número de negros por lá. Mas é algo “considerável”, ou
seja, deve-se “considerar”, pensar sobre. Há estudantes vindos de países
da África, há alunos dos cursos de pós-graduação, que pelo menos em tese
já romperam o bolsão de miséria... Há uma série de variáveis a avaliar.
Por isso o percentual é “considerável”, e não “impressionante”. Parece que
o critério para adjetivação na revista é o mesmo empregado, segundo dizem,
pelo governo para falar sobre o crescimento da economia (“Uma mentirinha
pra vocês, uma mentirinha pra nós...”).
Quanto ao fato de, conforme está dito, boa parte dos alunos das
instituições de ensino superior já serem egressos do ensino público, o
que, mais uma vez, demonstraria a inutilidade do sistema de cotas, é
preciso lembrar que unidades como o Colégio Militar do Rio de Janeiro, o
Colégio Pedro II, também no Rio, as demais escolas militares e técnicas
(federais ou estaduais) são públicas, mas o acesso a elas se dá por
concursos, processos seletivos sempre rigorosos, em que, normalmente,
favelados e miseráveis em geral não obtêm sucesso. Não é pequeno, por
exemplo, o número de cadetes das três forças armadas que abandonam os
cursos de formação de oficiais para ingressarem em universidades públicas.
Esses jovens, depois de receberem uma instrução de qualidade, estão, sim,
mais bem preparados que a média. Mas a situação deles é de exceção, não de
regra. O texto da revista, de novo, não dá oportunidade para que se pense
a questão sob essa ótica.
Tendo já saltado algumas outras afirmações, no mínimo, questionáveis,
existentes na matéria, passo para o seu final, onde o jornalista sustenta
que “A atual política de cotas também corre o risco de ter outra NEFASTA
(grifo meu) conseqüência, a de atiçar artificialmente uma animosidade
inter-racial, algo inusitado no Brasil.” Além do uso do adjetivo
“nefasta”, que dá um tom alarmista e hiperbólico ao trecho – sem esquecer,
claro, do significado aterrorizante da palavra –, analisando o período
pode-se pensar: ou o autor não sabe o que é “inusitado” (o que já seria
grave), ou não estudou História do Brasil no colégio (algo absurdo), ou as
duas hipóteses anteriores são verdadeiras.
“Inusitado” significa “estranho, extraordinário, nunca antes visto”, e num
país onde, até há pouco mais de um século, havia escravos negros, é lógico
que existia também “animosidade inter-racial”. Lembrando incidentes como a
destruição do Quilombo dos Palmares e a Revolta da Chibata, para citar só
duas ocorrências, ainda que alguém tentasse defender não ter sido a
questão racial a força geradora dos atritos, não poderia negar ter sido
ela um componente importante naqueles quadros. Hoje em dia, logicamente,
isso não ocorre, e cada um de nós, com certeza, trata tão deferentemente
os garis que se penduram num caminhão de coleta de lixo nas nossas ruas
(quase todos negros, que coincidência...) quanto trataríamos os ministros
do STJ (quase todos brancos), se os encontrássemos andando calmamente numa
calçada, fora de seus carros oficiais sustentados pelo erário. A
animosidade inter-racial brasileira existiu, e, ainda agora, resiste, na
sua forma mais covarde: um racismo hipócrita e incubado, com direito a
tapinhas nas costas e a frases como “é preto, mas é gente boa!”.
Não se trata de defender o governo do PT, nem de criticar VEJA por hobby.
Tampouco o sistema de cotas nas universidades, quaisquer que sejam os
beneficiários ou as instituições envolvidos no processo, é o tópico em
questão aqui. O sistema de cotas, aliás, bom ou ruim, eficaz ou
demagógico, traz em sua essência algo cujo valor é inestimável: a
conclamação à reflexão. No entanto, minha opinião sobre isso, neste
momento, não é o que importa. O que importa, e o que defendo, é o direito
do leitor de não ser manipulado, sordidamente, o tempo todo, como se fosse
um fantoche, ou uma marionete; o leitor tem o direito de receber
informação, não só instrução dirigida, tem o direito de exercitar sua
perspicácia. Quem compra a revista está interessado em ler algo de
qualidade, que o ajude a formar sua opinião a partir da co-relação entre
dados colhidos de diversas fontes; quem compra a revista quer fugir da
ignorância, e não ter quem lha maquie, para que pareça... fashion.
VEJA não respeita essas prerrogativas do seu consumidor. A intenção da
revista – ao que parece – é estuprar o intelecto alheio, violentar
mentalidades em formação, deflorar mentes desacostumadas ao salubérrimo
hábito de raciocinar por conta própria. Para quê? Tenho algumas hipóteses,
e as guardarei comigo, pois não serei eu a fazer com meu leitor o mesmo
que me tentaram fazer, e não conseguiram. Cada um que pense por si.
Gostaria, entretanto, professor que sou, de colaborar, mais concretamente,
com aqueles que já se acostumaram com a idéia de que estão se instruindo
lendo, indistintamente, as revistas e os jornais ditos “sérios”: séria é a
nossa necessidade de ter visão crítica; séria é a nossa obrigação de
perguntar o porquê daquilo que lemos, perguntar quem é o autor, qual seu
posicionamento ideológico, quais suas crenças, e como isso se coaduna (ou
não) com as nossas próprias convicções. Tudo isso, preferencialmente, sem
paixões. No começo dói, eu sei, mas é preciso ser tenaz! É mister olhar
para o lado e encorajar seu próximo a fazê-lo também. “O presente é tão
grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”,
disse Drummond.
Afinal, aceitar pacificamente a sevícia também é pornográfico.
LUCIANO NASCIMENTO é
especialista em Leitura e Produção de Textos pela Universidade Federal Fluminense e atualmente cursa
Mestrado em Letras Vernáculas na UFRJ.
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