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leila míccolis
a
poesia espinhenta das mulheres da geração 70
...Que gostava de política
em 1966
e hoje dança no frenetic dancing days
Caetano Veloso, in Tigresa
Em termos conceituais, será correto falar-se de uma Geração 70? Para
configurar-se e desenvolver-se, segundo Ortega y Gasset, uma geração
necessita de, pelo menos, quinze anos de diferença da anterior. Assim,
sendo a última geração de que se tem notícia a de 45, a Geração 70 está
dentro desta temporalidade por ele mencionada. Tendo como faixa geracional
de estréia, como período introdutório em que se instala, o início dos anos
60, chega até os nossos dias, o que significa que não se extingue com o
fim do Governo Militar, porque a ele não está atrelada; naturalmente
muitas de suas “táticas bélicas” foram desenvolvidas tendo em vista a
ditadura, mas esta não é pressuposto para a sua existência – a Geração 70
não é tão-somente uma poesia de resistência ao regime social então
vigente, como muitos supõem restritivamente. Ela segue em frente e chega
até os dias atuais, porque sua marca registrada é o questionamento das
estruturas de poder inerentes a todas as culturas, de todos os tempos. E
se esta atualidade, por um lado, torna difícil um repensar crítico, por
outro, enseja uma espécie de depoimento pessoal que me parece extremamente
rico (pela vivência e experimentação), raro e desafiador.
Não discorrerei sobre as fases da “Geração 70”, a meu ver bastante
nítidas; quero apenas enfocar dentro deste vasto território o aspecto da
produção feminina, não com intuitos separatistas ou maniqueístas. É que,
se a poesia em si não tem sexo, quem a faz ou quem a lê tem; uma das
provas mais evidentes e visíveis desse sexismo é o vocábulo “poetisa” que,
no feminino, passou a caracterizar autora de poesia de má qualidade,
piegas ou sentimentalóide. O feminino virou uma pecha tão pesada que até
hoje há mulheres que se ofendem ao serem chamadas de poetisas, preferindo
o masculino, elas são poetas. Sublinhando esta contradição, escrevi em
meio a um de meus poemas: “(...) Até que virei poeta,/ um grande passo em
minha meta,/ porque em poetisa todo mundo pisa...”
Friso, uma vez mais, portanto, que quando menciono “poesia feminina” não
tenho a menor intenção de dividir a literatura em duas metades, ou de
promover a substituição da masculina pela escrita por mulheres, ou mesmo
valorizar a segunda em detrimento da primeira; pretendo apenas ressaltar o
quanto, em termos estéticos, a poesia das mulheres da Geração 70 mudou o
enfoque e o próprio comportamento, rebelando-se contra o secular “universo
feminino” que lhe fora/é imposto, construído de jargões, estereotipias e
uma fala manipuladora, repressora e castradora.
Se a Geração 70 tem como características principais o contraculturalismo,
o coloquialismo, a crítica ferina e ferrenha ao sistema, de modo indireto,
através do questionamento da microfísica do poder (presente em todos os
tempos e em qualquer regime político), as poetisas levaram a
insubordinação ao extremo, rompendo com a exacerbação lírico-subjetiva
própria da “produção feminina” de então – salvo raríssimas e isoladas
exceções – e arcando com as conseqüências de suas transgressões, pois
mexer em feridas era (e para muitas de nós continua sendo) mais importante
do que entreter o leitor. Ao agirem desse modo (e incluo-me neste plural),
articulamos uma estética nada convencional, convenhamos, e muito pouco
“digestiva”, na verdade bastante indigesta: dissecamos as mortas-vivas
verdades eternas e as dominações sutis que adoçavam (e infelizmente
continuam adoçando) o massacre cultural diário não só de nós mulheres, mas
de todos – sem exceção de sexo ou idade.
A alienação que subjaz na poesia da grande maioria das poetisas até o
começo do século XX tem íntima ligação com a sua própria condição social:
até os anos 30 as mulheres não eram sequer cidadãs, por não terem direito
a voto. Decorridas algumas décadas, a mulher passa a trabalhar fora e a
exigir direitos iguais... mas que direitos? Os únicos que ela conhecia, ou
seja, as prerrogativas que lhes eram “concedidas” por uma sociedade
patriarcal, pseudamente moralista. Assim, a independência econômica não
significou nem libertação, nem transformação nas condições sócio-políticas
repressoras. Houve mudanças, sim – inegável –, muito mais, porém, no
avanço das conquistas políticas que atingiam principalmente seu mundo
exterior; no fundo, a mulher ideal continuava sendo a que ajudava o
marido, inclusive trabalhando fora, a companheira do homem, seu braço
direito, sua sombra – “atrás de um grande homem há sempre uma grande
mulher”, sentencia o provérbio.
Diante deste quadro, não é de se espantar que a mulher fosse incentivada a
gostar de escrever poesias românticas, mais condizentes com sua pretensa
natureza emotiva, sensível e pouco racional... – só sendo frágil seria
respeitada. As mulheres reproduziam nos poemas o que sempre tiveram: um
mundo repleto de ilusões, de desencantos, de passividade. Temas “fortes”,
realistas, lhes eram vedados, porque a imagem pessoal podia ser confundida
com a ficção que escreviam – aliás, até hoje, é bem freqüente esta
confusão da autora com suas personas/máscaras. Colombina, uma poetisa do
começo do século passado, deixou relatos impressionantes sobre a pressão
que sofreu ao ousar escrever uma poesia um pouco mais erotizada.
Foi somente a partir dos anos 70, no Brasil, que questionamentos rebeldes
e inconformistas vieram à tona, através de uma poesia que usava
ostensivamente a primeira pessoa – também vestígios dos movimentos de
libertação feminista e homossexual –, sem medo de enfrentar as
conseqüências de seu eu-lírico (pelo menos afastado do lirismo tradicional
a que sempre esteve submersa), rompendo amarras, e partindo para uma
combatividade que, às vezes, transformava-se em agressão. Não mais
palavras comportadas ou a estrada dentro dos limites dos “temas
permitidos”, de “bom-tom” para mulheres decentes. Os ídolos de barros
quebravam-se, as máscaras caíam e surgia uma mulher totalmente nua,
exposta, mostrando que seu decantado “mundo suave e perfeito” não passava
de uma grande farsa a que se sujeitava por alheamento, medo, conformismo
ou comodismo.
As mulheres que surgiram neste período assustaram bastante, “mulheres não
escreviam poesia desta maneira” – ouvi muitas vezes... Pela primeira vez,
porém, estávamos praticando o libelo poético de Bandeira: “não queremos
mais lirismo que não seja libertação”. Enfocando os mecanismos de
dominação, desde a educação para a submissão até a transmissão dessa
cultura para seus sucessores, a produção das mulheres da Geração 70
insurgia-se com o fato de termos que pedir permissão para viver, para
sorrir, para sair ou para ter prazer; e a poesia, neste momento, foi de
grande auxílio ao início de confronto, porque ajudou na busca da essência
do agir, tão esquecido em geral pela literatura contemporânea, mais
preocupada com sua narrativa do que com a escuta da linguagem.
Em um artigo para o jornal Versus, Cláudio Willer chegou a analisar esse
susto, esse espanto, essa perplexidade, colocando a poesia feminina da
época como uma ruptura da unidade e coerência da produção poética feminina
dos anos anteriores. “Níveis de ruptura de uma poesia mais recente podem
ser claramente exemplificados pelo texto de Ana Cristina César e de Leila
Míccolis. A referência explícita ao sexo, nos poemas aqui publicados, deve
ser entendida em sua devida perspectiva: não se trata de uma apologia ao
amor sáfico ou ao auto-erotismo, porém de uma proposta bem mais geral:
estas autoras estão assumindo o direito de não serem mero objeto de
concepções socialmente institucionalizadas”. O enfoque erótico, tão
ostensivo na época, era, como muito bem o poeta e crítico literário
percebia, não o avesso da moeda – do recato à libertinagem – mas
provocação, uma res-posta, enquanto questionamento a todas as violações da
integridade feminina, da cama à mesa, sem deixar nenhum cômodo de fora.
Os estilos são bem diferentes entre mim e Ana C., ou entre Réca Poletti e
Alice Ruiz, ou entre Maria Amélia Mello e Ilma Fontes, ou entre Socorro
Trindad e Márcia Frazão; todas nós, porém, de uma forma ou de outra,
indagamos poeticamente sobre o “eterno feminino” e suas heranças
controladoras, com uma ironia desconstrutiva: através da exposição do
ridículo ou das contradições, desmontava-se o grande cenário montado em
torno da imagem da mulher – uma imagem virtual, nada real. Não mais deusas
ou musas diáfanas, mas pessoas concretas, com insatisfações, revoltas e,
até, desejos de vingança. A fala cotidiana não era, pois, uma estratégia
de sedução; era a forma de exigir participação social, mas questionando os
sentimentos e a afetividade, porque pensar e sentir não são duas etapas
isoladas, mas dois termos de um único binômio. Uma “poesia de confronto”,
como já designou Heloísa Buarque de Hollanda, de transgressão, de ajuste
de contas, abrangendo material muito mais amplo do que o contido dentro do
território da literatura.
Aliás, o maior mérito da poesia das mulheres, na Geração 70, está
justamente neste amplo debate em torno não da técnica literária, ou da
literatura como “veículo de comunicação” (absurdo dos absurdos), mas sim
de questões paralelas que ensejaram principalmente – até hoje – a polêmica
do agir poético na polis contemporânea. Nessa medida, creio que a nossa
poesia despertou e continua suscitando importantes questões filosóficas
sobre as artes, tidas estas, não mais, pelo menos exclusivamente, como
meros adornos para tornar nossa vida mais divertida ou agradável; mas
consideradas, de lá pra cá, e cada vez com mais intensidade, como
perguntas que colocam em cheque toda uma relação de poder do sistema com
cada uma/um de nós. A poesia é um desfiar de perguntas que conduzem a
outras, dentro da articulação interminável deste deslocamento
ininterrupto: desvelar, velar, revelar, renovando-nos pelo próprio
movimento, sem armazenarmos soluções conceituais prévias.
Ajudando a clarificar o óbvio, antes que o esqueçamos, a poesia feminina
dos anos 70 continua – através de um debate contínuo – descondicionando as
nossas emoções dos rótulos que fabricam e comercializam uma realidade
ilusória, construída de sentimentos artificiais já devidamente etiquetados
com códigos de barra.
LEILA MÍCCOLIS é
poeta e ensaísta, com mais de 30 livros publicados no Brasil e no
exterior, escritora de cinema, teatro e novelas de televisão, além de
co-editora do portal Blocos Online (http://www.blocosonline.com.br).
Lançou recentemente o livro de poesia Sangue cenográfico, com prefácios de
Ignácio de Loyolla Brandão, Heloísa Buarque de Hollanda, Gilberto Mendonça
Telles e Nélida Piñon.
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