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marcelo diniz
arqueologia
do futuro
1. Assisti ontem a uma
entrevista com algumas pessoas que consideravam o blog como experiência
literária. Embora me pareça precipitada essa consideração, achei muito
interessante determinado trecho em que uma delas parecia conceber o blog
sob uma espécie de arqueologia no futuro. Haveria um dia no futuro em que
as pessoas leriam o blog como se entrassem em contato com determinadas
formas de escrita bem próximas do aforisma, fragmentar, lacunar e, de
certo modo, autobiográfico. Achei muito interessante justamente pelo que
me soou precipitado. É sempre muito precipitado, paradoxalmente
precipitado, supor o que seria a arqueologia no futuro. Aliás, a
literatura é uma espécie de precipitação. Nada lhe garante o futuro, a não
ser precipitar-se...
2. Dante Milano – Na biblioteca do tempo:
Tudo para nós envelhece mais depressa em anos que em séculos. Aquela que
vimos outrora apontada como exemplo de beleza e que vemos agora de óculos,
cercada de netos, é muito mais velha que uma igreja secular, na sua perene
frescura de pedra.
3. Quem somos? Somas! No que possa haver no termo de corpo e adição.
Talvez, neste sentido, valha mais o barbarismo: quem sumos!
4. Pensei na idéia de um diário de leitor. O leitor leu hoje num ônibus.
Sua retina correu os riscos de um corpo embalado pelos declives de uma
cidade não planejada e mal cuidada. Sim, ler no ônibus pode possuir tantos
garranchos quanto a escrita de quem tenta escrever no ônibus. Justamente
por essa similaridade entre o ler e escrever no ônibus, desisti de
sublinhar o que leio no ônibus. Afinal, seria um desrespeito monumental
com os eventuais leitores de sebo do futuro. Aliás, o Dante de Milano que
li foi comprado em sebo: impecável, embora guarde suas marcas de lido,
sobretudo a tirar pelas cicatrizes da lombada. Sim, o blog me parece uma
literatura voltada ao sebo, ou o que inventarem de mais rico e específico
que isso.
5. Escrever no ônibus tem algo de escrever em uma página em andamento.
Hoje pensei num diário de escritor. Acordou com preguiça de ler e foi
escrever como se desse satisfação a uma exigência sabe-se lá do quê, e que
confere ao seus dias a sensação de que todos eles se encadeiam em um mesmo
dia. A uma mesma escrita, portanto. Que o céu, quando dormiu ontem,
estivesse nublado e, neste fim manhã, tão límpido em nada desmentia essa
sensação de continuidade. Afinal, o vento ainda constante narrava,
insistente, o que aconteceu com a massa de nuvens que, por certo,
dispersaram-se enquanto dormia. O contínuo, sim, ele ouve agora, a
exigência vibrando uma lâmina específica da persiana.
6. De novo acerca de uma entrevista na tv. Um escritor, um bom contista, a
tirar pelos trechos que leu durante a entrevista, lamentava-se não sei se
de poucos leitores ou de tantos escritores no Brasil. Seu argumento,
tentando ser o mais justo ao reproduzi-lo, consistia no estranhamento de
haver no Brasil uma quantidade maior de escritores do que de leitores. Há
certa improbabilidade matemática nesse cálculo que me faz desconfiar não
só dos resultados como, sobretudo, da própria indignação do escritor.
Deduzo que todo escritor seja um leitor; que seja do próprio umbigo, é um
leitor. Como matematicamente me parece inverossímil tal equação que
resultasse nas conclusões do contista, creditei seu lamento mais à
qualidade dos leitores e escritores do que à quantidade. Afinal, não há
regra matemática alguma que formule que seja bom para uma cultura a
diferença x ou y entre escritores e leitores. E, em se tratando da
qualidade, indignar-se com o ruim me parece tão óbvio quanto
desnecessário. É claro que a relação entre qualidade e quantidade,
sobretudo nos últimos tempos, quase sempre se nos mostra com números de
proporção inversa. Mas essa constatação não pinta um quadro cultural
necessariamente ruim. Afinal, quem é capaz de estimar de quanto monturo
precisa a flora literária futura? Por enquanto, ainda estou com Eliot, que
disse uma vez em uma entrevista: nenhum autor honesto sabe o valor
concreto de sua obra; pode ter dedicado sua vida inteira a nada. Estou com
o Eliot, embora sinta um fiapo de desconfiança: essa possibilidade de
dedicar uma vida inteira a nada não me parece também tão verossímil... Ao
que parece, os sebos, sempre os sebos, quem diria, os sebos...
7. Sim, já pensei no sebo como uma espécie de academia dos mortais, e,
sim, sei muito bem o quão sintomático é eu escrever tanto sobre esse
assunto, ainda mais logo depois de ter lançado um pequeno livro de poemas.
Mas acho também inevitável escrevermos sobre nossos sintomas ou, como
queira, nossas quimeras. Venho pensando no quanto o temor dos sebos não
nos sugere um fantasma futuro, ou seja, um ser vivo que temesse um dia ser
enterrado em um cemitério suburbano; não que temesse ser enterrado, pois o
inevitável é inevitável, mas que temesse o cemitério suburbano. Uma vida
inteira dedicada a nada: sim, isso me soa um desrespeito enorme com os
sebos, uma indelicadeza crassa, com vias extremamente irônicas, que a vida
de uma pessoa possa assumir para além de suas intenções e, o que é pior,
uma espécie de bairrismo ingrato, um fio de má-fé com os amigos, com os
vizinhos...
8. A ironia dos textos anteriores não faz jus a essa minha obsessão pelos
sebos. Parece-me que minha intenção é a de libertar-me da própria ironia.
Afinal, não vou a sebos ironicamente. Vou convicto, esperançoso de
encontrar o raro. E o raro é o próprio encontro. Os sebos parecem-me uma
espécie de extensão temporal para além do imediato, certo vício que só
contrai quem cultiva, não necessariamente a erudição, pois não é o meu
caso, mas a surpresa com o esquecido, a idéia vaga de uma espécie de
reencontro, o que geralmente acontece quando lemos um autor em cuja obra
identificamos ressonâncias, como se encontrássemos alguém que, antes de
nós, tivesse dado a alguma idéia as palavras mais exatas. Menos, portanto,
que o prazer de um bibliófilo à cata de primeiras ou raríssimas edições,
acho que pertenço àqueles inconvenientes capazes de perder um dia inteiro
na poeira, lendo trechos em busca de algum que fisgue a atenção e o
consumo, por mais que se encontre o mesmo título num jornaleiro da
esquina. Há algo de despojamento nessa idéia que parece ser o meu prazer
com os sebos. Como se a idéia não fosse minha, fosse o próprio sebo
continuando sua existência, seu comércio, crescendo como crescem as
estrelas que esfriam... O sebo parece devolver à festividade dos nomes
próprios a sinceridade do anonimato.
9. C’était cela, l’océan, un espace où le temps n’existe pas.
Seria isso o oceano, um espaço onde o tempo não existe.
... les defunts ne persistent dans l’au-delà qu’aussi longtemps qu’il y
a sur terre des vivants qui pensent à eux. Les morts se nourrissent du
souvenir que leur adressent les vivants, et ils s’évanouissent à jamais
dès que le dernier vivant leur a consacré sa dernière pensée
Os falecidos só persistem no além enquanto houver sobre a terra os vivos
que pensem neles. Os mortos alimentam-se da lembrança que lhes dirigem os
vivos, e nunca se esvanescem enquanto o último vivo lhes consagre seu
último pensamento.
(Michel Tournier – Éléazar ou la source et le buisson)
9. Se, para as almas dos mortos, a peregrinação de Dante é a oportunidade
única e última, para toda a eternidade, de conversar com um ser vivo, o
leitor da Divina Comédia pode se sentir diante de um espelho um tanto
sutil. Lê-la, por um lado, nunca se faz de uma única vez. Repete-se a
visita inúmeras, infinitas vezes, o que para o leitor finito, que todos
somos, pode ser traduzido por uma única vez. Por outro lado, lê-la
multiplica-a. Como afirma Borges, a Divina Comédia é dessas obras que se
alimenta do tempo, esta forma humana de realizar a eternidade. Pode-se
dizer, portanto, que lê-la corre sempre esse risco todo nosso de ser a
última vez. Se a alma dos mortos corre à busca de Dante enquanto peregrina
pelo inferno, a alma dos vivos parece sentir uma atração muito
semelhante... em relação à obra.
10. Não, o sebo não é um inferno. Embora a conclusão seja tentadora,
embora nada tenha contra o inferno, muito menos contra os sebos, não
gostaria de incorrer nesta tentação tão facilmente. Sei que a proximidade
de minhas duas últimas precipitações e este intervalo considerável em que
me ausentei para atravessar mais uma vez o Inferno de Dante podem
precipitar as leituras que deixei pendentes no equívoco de uma conclusão
como essa. Recuso-a não tão somente por ser óbvia, mas por não ser
suficientemente razoável nem com o inferno nem com os sebos. Não há lógica
suficiente que sustente a idéia de um inferno infinito. Borges nos afirma
algo semelhante em um pequeno ensaio de nome A duração do inferno. No
entanto, quanto aos sebos, não há nada que prove sua finitude e, em suas
estantes, sempre imagino uma infinidade de caldeiras, valas de lava,
brasas perigosíssimas ardendo em meio a tanto papel...
11. Os sebos de hoje não fecham, demitiram todos aqueles antigos
funcionários. Aqueles que, de idade avançada, tinham os olhos tão gastos
quantos as lombadas que reconheciam de longe na estante; aqueles, mais
recentes, mais jovens, que se empregavam nos sebos como se deixassem levar
por certa graça melancólica - a sempre equivocada melancolia – com festins
do tempo; ou ainda aqueles outros que só estavam por ali por falta de
outra oportunidade ou qualquer outra razão sempre mais engenhosa com que o
próvido destino colore a vida para além de toda tipologia: sim, estão
todos desempregados. Hoje, os sebos não fecham e, embora caibam na palma
de sua mão, quem sabe um dia, em uma circunvolução de seu cérebro, não se
engane, estão muito maiores do que antes...
12. Acho extremamente interessante, Fred, que essas páginas sumam. Acho
ainda mais interessante não negligenciarmos esse aspecto do suporte. Uma
caixa de fósforos pode ser muito interessante. Neurônios podem ser
interessantes. A vida de uma pessoa pode ser muito interessante. Concordo
com você que esse é um aspecto que distingue ainda o blog de um sebo. Não
sei se no futuro, mas no presente ainda parece não haver um instrumental
tão potente que salve a efemeridade. Mesmo porque a efemeridade não
depende apenas de instrumentos para ser salva, mas, sobretudo, de
interesse. Discordo apenas de que a possibilidade de detonar o postado
seja, necessariamente, a eliminação do futuro. Afinal, uma vez que
escrevemos, que seja no piscar de olhos de um mês, já não somos apenas
três, somos mais... Neste ponto é que acho que reside a natureza de sebo
em que se arrisca toda e qualquer escrita: você pode querer se matar, mas
nada garante que você vai estar morto. Kafka, por exemplo...
13. Caro Dr Scliar,
esta mensagem abre a série 43.5aj. Nosso sistema deixa disponível ao seu
encontro um número elevado de respostas à deriva. Como o Sr não especifica
a qual futuro se dirigem suas indagações, mantivemos aberto um
canal-legado, serviço recentemente criado e disponível à leitura, que
busca redirecionar todas as respostas possíveis que possamos oferecer às
perguntas postadas no endereço agenciacartamaior/ansiosaperguntaaoarqueologodofuturo/2592.
Caso o Sr. não deseje mais receber nossas mensagens, remeta-nos seu novo
pedido para arqueologodofuturo43.5aj. Grato pela atenção e por contar com
nossos serviços.
MARCELO DINIZ é autor de Trecho e
Cosmologia. É letrista e parceiro freqüente de Fred Martins. No cd Janelas
(Deck/2001) assina seis composições e no cd Raro e comum (Macaya Music/2004),
assina outras oito. Tem composições gravadas por Zélia Duncan, Ney
Matogrosso e Pedro Luiz e a Parede. Atualmente termina doutorado em Teoria
da Literatura na UFRJ.
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