|
revista |
editora | links | ||||||
|
|
heloísa maranhão o padre Amaro
1° Tempo
- Aos fatos!
A moça recém-chegada fica mais calma e fala:
- Quando ele, o padre Amaro, recebeu a sua carta, estimada patroa, ficou
deveras encantado e exclamou: carta de sua patroa, convidando-me para uma
ceia a dois, à meia-noite em sua casa, com as luzes apagadas e só umazinha
acesa para não se tropeçar e cair ao chão? Gostei da idéia? Eu vou!
Depois ele releu a carta duas vezes, mas quando ia ler a terceira vez, não
deixei. Cortesmente eu me despedi, com algumas palavras finais, tais
quais: "O marido da minha patroa está em São Paulo por dez dias, cuidando
de seus negócios. Depois achei por bem informar ao padre Amaro que a sua
cama é boa, digo, a cama da minha patroa é sempre macia e guarnecida com
lindos lençóis bordados na Ilha da Madeira.
O padre repetiu outra vez e assaz amistosamente: "Eu vou". Um sino
bimbalhou, ele se retirou, repito: ele, o padre, se retirou e ao sair,
confirmou: vou, meia-noite, ceia, lençóis da Ilha da Madeira. Ele saiu. Eu
cá estou.
Depois ambas me cumprimentam com um adeusinho e um até já. Saem.
2° Tempo O dia se põe a nascer, ouço alguém me chamando com um berro.
Oi!
Pela voz, identifico a pessoa que está lá fora gritando. Corro a abrir a
porta, entra a empregada da minha amiga principal, que sem ser convidada
desaba no meu sofá, toda molhada, chorando, chorando, chorando. Anuncia:
- Minha patroa está morrendo!
Quero explicação:
- Anda, fala!
- Querendo ver até que ponto chegava o comportamento de sua mulher, meu
patrão pretextou uma viagem a negócios em São Pauto, lá se demorando dez
dias contados. Foi? Não foi. Ficou aqui mesmo, mas escondido de minha
patroa, mas perto, bem perto. Dele ganhei boa soma para lhe contar tudo o
que a minha patroa fazia. A carta ao padre, marcando encontro não foi
entregue ao padre, foi para o bolso do meu patrão. Diga-se de passagem,
que o padre por todos é considerado bom, honrado, digno, incapaz de uma
sórdida estória. O marido vestido de padre, com cheiro de padre, chapéu de
padre, imitando padre em tudo e com chicote de couro cru na mão, na hora
marcada entrou no quarto dela, sua amiga principal e minha patroa, e com o
chicote deu-lhe uma bela surra, dizendo:
- Mulher casada sem vergonha, como é que não estando seu marido em casa,
você me recebe no seu quarto?
E tome, chicote, chicote, chicote. Que surra! Ficou ela bem chicoteada e
gritando de dor, dor, dor, e dizia: vai-te embora, padre dos diabos, se eu
soubesse que eras tão mau, uma peste, não tinha te convidado para deitar
comigo nesta cama cheirosa com lençóis da Ilha da Madeira.
Aí meu patrão saiu, voltou ao seu esconderijo, mudou a roupa de padre,
virou patrão, esperou dez minutos bem contados e com alarido tocou a
campainha da porta de sua casa, eu abri e ele foi logo dizendo, alto com
espalhafato: cheguei, cheguei, cheguei. Concluí meus negócios em São
Paulo, mais cedo que esperava, voltei!
Aí, madame sua esposa, gemendo, gemendo, gemendo, conseguiu forças e
declarou:
- Estou morrendo...
Seu marido com voz macia, bem digno, amoroso, inteiramente confiável,
respondeu:
- Se assim é, eu corro a chamar o que há de mais fino em padre. O padre
Amaro por todos amado e festejado. Vou correndo buscá-lo para lhe dar a
extrema unção.
E foi.
Eu fico calada. A empregada de minha amiga principal desaparece de
repente. Que é isso?
O Fim - Vai embora, padre do diabo, suma-se! Ponha-se lá fora!
- Tem ela o diabo no corpo. Não é caso de extrema unção. Sei o que digo,
vou exorcizar o demônio. Em latim, vem um falatório que não acaba mais.
Mas eu achei bonito.
A ordem se estabelece. Minha amiga fica muda, digna, em pé na sua cama
cheirosa com aqueles lençóis da Ilha da Madeira.
O marido lhe estende a mão, eles se abraçam. Eu vou embora. O dia lá fora
está lindo, há sol.
Vou passear na praia, vou namorar o mar. Muitos me olham, eu de camisola
com uma capa de borracha entreaberta por cima.
Vou andando, andando, andando, amém, acabou-se a estória.
Quem quiser, conte outra.
leia também neste número um memorial de Luiza Lobo sobre Heloísa Maranhão e, no Phantascopia, a Morada Segunda de seu poema Castelo Interior e Moradas.
HELOÍSA MARANHÃO, dramaturga, romancista e poeta, autora de Castelo interior e moradas, é personalidade literária mencionada por várias enciclopédias, inclusive pela Bloommsbury Guide to Women's Literature, de Claire Buck, Inglaterra e pelo Dicionário Bibliográfico de Escritores Contemporâneos do Estado do Rio de Janeiro. Membro de várias academias, institutos e pen clubs da vida, em 1994, recebeu a medalha Tiradentes, concedida pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Esta é a primeira vez que o conto O Padre Amaro é publicado, escrito a pedido da Revista Confraria. É seu primeiro trabalho após muitos anos de silêncio.
|
|||||||
|
|
||||||||
confraria do vento |