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heloísa maranhão


o padre Amaro

 

 

 

1° Tempo

Aquela minha amiga principal entrou ofegante em minha casa, desabou rindo e chorando ao mesmo tempo na minha melhor poltrona e declarou: eu estou delirantemente apaixonada por um padre. O nome dele é padre Amaro.


Nada a ver com o padre Amaro, romance do escritor português Eça de Queirós.


Nesse romance de Eça de Queirós, quem cai duro aos pés da moça é o padre, mas, no meu caso, quem se esparrama no chão, aos pés do padre, sou eu.


Ouça-me: o meu padre Amaro é a sensação, no momento, nesta cidade, na qualidade de orador sacro.


A minha amiga principal guarda alguns minutos de silêncio, depois, abre a sua bonita bolsa de crocodilo, que ela usa em situações especiais, tira um papel-toalha, enxuga o seu rosto molhado por suas lágrimas ardentes, passa um tico de pó de arroz no seu nariz, agarra seu batom escarlate e com ele retoca seus lábios e continua a falar de maneira graciosa, que eu aprecio, pois é rara. Diz ela:


- O meu padre Amaro só fala coisas lindas, maravilhosas, especiais, de sua autoria ou de outros, assim bem importantes, cultos, piedosos, informados, habituais freqüentadores dos suplementos literários deste e de outros países como a França, capital Paris, por exemplo.


Note bem: o que flui da boca do meu padre Amaro, boca gostosa, carnuda, pronta para o beijo de uma mulher fogosa, como eu, é puro mel.


A palavra padre mexe comigo. Quero saber qual é o verdadeiro sermão do padre Amaro.


A minha amiga principal adivinha meu pensamento. Suspira, discursa com a sua bonita voz de contralto, cantando no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e explica um pouco mais sobre esse padre Amaro.


- Ele, o padre Amaro, fala de roubo que acontece aqui, ali, no mundo inteiro, cristão ou não. Chama o roubo de "Rapio" e flamante, quero dizer flamejante, usando palavras que são puras chamas, diz coisas que perturbam, a nós, outros, definitivamente, como por exemplo:


"Conjugam por todos os lados o verbo rápio, já que furtam por todos os modos da arte, não falando em outros novos esquisitos, já conhecidos ou desconhecidos. Começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo".


Palavras do padre António Vieira, sábio português que viveu em Lisboa nos idos de 1608 a 1697. Tenho dito.


A campainha da minha porta de entrada da casa toca, freneticamente.


Eu corro, eu abro a minha porta. Entra como um pé de vento em temporal de verão nos meses de janeiro ou fevereiro a empregada desta amiga principal. Não senta em cadeira, já que eu, um pouco assustada, nada lhe ofereço. E ela, arfando, vai dizendo:


- Senhora minha patroa, amiga principal da dona desta casa: bons dias ou maus, às duas, já de antemão, ninguém sabe o que vai acontecer.


Eu e minha amiga arriscamos um modesto "amém", e ela continua, depois que eu grito:
 

- Aos fatos!
 

A moça recém-chegada fica mais calma e fala:
 

- Quando ele, o padre Amaro, recebeu a sua carta, estimada patroa, ficou deveras encantado e exclamou: carta de sua patroa, convidando-me para uma ceia a dois, à meia-noite em sua casa, com as luzes apagadas e só umazinha acesa para não se tropeçar e cair ao chão? Gostei da idéia? Eu vou!
 

Depois ele releu a carta duas vezes, mas quando ia ler a terceira vez, não deixei. Cortesmente eu me despedi, com algumas palavras finais, tais quais: "O marido da minha patroa está em São Paulo por dez dias, cuidando de seus negócios. Depois achei por bem informar ao padre Amaro que a sua cama é boa, digo, a cama da minha patroa é sempre macia e guarnecida com lindos lençóis bordados na Ilha da Madeira.
 

O padre repetiu outra vez e assaz amistosamente: "Eu vou". Um sino bimbalhou, ele se retirou, repito: ele, o padre, se retirou e ao sair, confirmou: vou, meia-noite, ceia, lençóis da Ilha da Madeira. Ele saiu. Eu cá estou.
 

Depois ambas me cumprimentam com um adeusinho e um até já. Saem.

 

2° Tempo

No dia seguinte, bem cedo, o sol ainda não tinha nascido, acordo, me espreguiço, digo judiciosa: bom dia, bom Deus, estou viva, que bom, que bom, que bom. Logo me levanto, ensaio passos de dança no meu quarto, abro a janela de par em par, constato; está chovendo, chovendo, chovendo.
 

O dia se põe a nascer, ouço alguém me chamando com um berro.

 

Oi!
 

Pela voz, identifico a pessoa que está lá fora gritando. Corro a abrir a porta, entra a empregada da minha amiga principal, que sem ser convidada desaba no meu sofá, toda molhada, chorando, chorando, chorando. Anuncia:
 

- Minha patroa está morrendo!
 

Quero explicação:
 

- Anda, fala!
 

- Querendo ver até que ponto chegava o comportamento de sua mulher, meu patrão pretextou uma viagem a negócios em São Pauto, lá se demorando dez dias contados. Foi? Não foi. Ficou aqui mesmo, mas escondido de minha patroa, mas perto, bem perto. Dele ganhei boa soma para lhe contar tudo o que a minha patroa fazia. A carta ao padre, marcando encontro não foi entregue ao padre, foi para o bolso do meu patrão. Diga-se de passagem, que o padre por todos é considerado bom, honrado, digno, incapaz de uma sórdida estória. O marido vestido de padre, com cheiro de padre, chapéu de padre, imitando padre em tudo e com chicote de couro cru na mão, na hora marcada entrou no quarto dela, sua amiga principal e minha patroa, e com o chicote deu-lhe uma bela surra, dizendo:
 

- Mulher casada sem vergonha, como é que não estando seu marido em casa, você me recebe no seu quarto?
 

E tome, chicote, chicote, chicote. Que surra! Ficou ela bem chicoteada e gritando de dor, dor, dor, e dizia: vai-te embora, padre dos diabos, se eu soubesse que eras tão mau, uma peste, não tinha te convidado para deitar comigo nesta cama cheirosa com lençóis da Ilha da Madeira.
 

Aí meu patrão saiu, voltou ao seu esconderijo, mudou a roupa de padre, virou patrão, esperou dez minutos bem contados e com alarido tocou a campainha da porta de sua casa, eu abri e ele foi logo dizendo, alto com espalhafato: cheguei, cheguei, cheguei. Concluí meus negócios em São Paulo, mais cedo que esperava, voltei!
 

Aí, madame sua esposa, gemendo, gemendo, gemendo, conseguiu forças e declarou:
 

- Estou morrendo...
 

Seu marido com voz macia, bem digno, amoroso, inteiramente confiável, respondeu:
 

- Se assim é, eu corro a chamar o que há de mais fino em padre. O padre Amaro por todos amado e festejado. Vou correndo buscá-lo para lhe dar a extrema unção.
 

E foi.
 

Eu fico calada. A empregada de minha amiga principal desaparece de repente. Que é isso?

 

O Fim

Chega o marido com o padre Amaro, os dois de braço dado, muito dignos. Minha amiga principal, quando vê o padre, grita:
 

- Vai embora, padre do diabo, suma-se! Ponha-se lá fora!


O padre, trêmulo, mas sempre digno, declara:
 

- Tem ela o diabo no corpo. Não é caso de extrema unção. Sei o que digo, vou exorcizar o demônio. Em latim, vem um falatório que não acaba mais. Mas eu achei bonito.
 

A ordem se estabelece. Minha amiga fica muda, digna, em pé na sua cama cheirosa com aqueles lençóis da Ilha da Madeira.
 

O marido lhe estende a mão, eles se abraçam. Eu vou embora. O dia lá fora está lindo, há sol.
 

Vou passear na praia, vou namorar o mar. Muitos me olham, eu de camisola com uma capa de borracha entreaberta por cima.
 

Vou andando, andando, andando, amém, acabou-se a estória. Quem quiser, conte outra.
 

 

 

leia também neste número um memorial de Luiza Lobo sobre Heloísa Maranhão e, no Phantascopia, a Morada Segunda de seu poema Castelo Interior e Moradas.

 

 

HELOÍSA MARANHÃO, dramaturga, romancista e poeta, autora de Castelo interior e moradas, é personalidade literária mencionada por várias enciclopédias, inclusive pela Bloommsbury Guide to Women's Literature, de Claire Buck, Inglaterra e pelo Dicionário Bibliográfico de Escritores Contemporâneos do Estado do Rio de Janeiro. Membro de várias academias, institutos e pen clubs da vida, em 1994, recebeu a medalha Tiradentes, concedida pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Esta é a primeira vez que o conto O Padre Amaro é publicado, escrito a pedido da Revista Confraria. É seu primeiro trabalho após muitos anos de silêncio.

 


 

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