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a via excêntrica | ronaldo ferrito
I
A linguagem sempre
nos há de suspender, ainda que sob a firmeza da pedra. E nos há de
suspender, certamente, porque nessa firmeza se encontra o firmamento da
linguagem. Com efeito, é o que a erige em seu modo de pedra. Se andar
requer um fundo que seja firme aos pés – portanto, uma fundação –, a
linguagem – para sustê-los – oferece um abismo. O em-falso de todo fundo.
Na suspensão dos pés está a sustentação do fundo e a fundação do abismo
que permite o movimento de toda a andança e a manifestação de toda
linguagem. Desistir desse pequeno salto, precipitado no passo, é perder o
céu em que os pés caminham. Tal é o princípio da via poética, sem o qual
ela perderia todo o seu fluxo: fazer da firmeza do fundo a abertura do
firmamento. Para emoldurar numa frase: pensar o céu de cada coisa. Essa
abertura é entendida com clareza na experiência do pensamento de que nos
fala essa frase. Nela, pensar habita seu sentido mais radical, o da
possibilidade de se estar penso, de pender-se. O pensar exige daquele que
o pratica o pender de todas as coisas e a suspensão de todo saber que se
quer nelas fixar; ou seja, o abrir novos caminhos a partir do impensado.
Atentamos para que o pensamento é, então, o pensar-pender e o sus-pensar
das coisas do fundamento onde estão firmadas, a fim de serem então
repensadas no firmamento de sua abertura. O que está preso ao chão, quando
elevado pelo pensamento, precipita-se no abismo de sua origem e pronúncia,
em que pela primeira vez surgiu, nas possibilidades infinitas do
ressurgimento. A linguagem, ou o seu céu.
A vocação do peregrino não é a sua meta final, o paraíso que busca; mas
manifestar o céu no aparecimento de todo caminho. Em vista disso, podemos
dizer que onde os pés firmam é, porém, o firmamento; onde não firmam, não
vale a pena estar. À passagem desse viandante todo espaço calcado se lança
no ressurgimento e, por isso, renascimento de seu destino celeste; pois o
itinerário que conduziria o viajante por uma estrada previsível e passível
de mapeamento, levando-o sem surpresas a um outro lugar também já
concebido, abre-se para uma nova via, na qual o fim teleológico de seu
antigo trajeto – buscado na sucessão conseqüente de toda viagem que quer
chegar – é renunciado na força renovadora de um outro sentido, mais pleno
e realizador. A revelação desse segundo caminho – único capaz de modificar
aquele que o atravessa – se dá no empenho de ter, no salto dos pés, seu
sentido manifesto, de modo que o caminheiro seja também a condição de
realização do caminho. Na peregrinação, a travessia e o viajante não se
estabelecem previamente, mas se imbricam na reunião de uma caminhada, na
qual o destino de ambos se faz no seu desconhecimento mútuo (vejamos que
nenhum auto-conhecimento é permitido), experienciado no espanto
modificador do que devemos chamar sobressaltos. Sobressaltar é, pois, ter
sob os pés a abertura capaz de levar-nos aonde ainda não pisamos, aonde
ainda não sabemos como pisar, embora estejamos firmes no princípio de
possibilidade das realizações. Lembro-me agora de um andarilho de Florença
que se deixou conduzir, por primeiro, aos infernos, o mais inferus
dos abismos (aqui também infero – para onde nada é possível levar,
de onde nada é possível reter), pelo desejo de encontrar, já quando toda
perdição o eximia de sua antiga vida, a transformação (convertio)
nos páramos do pensamento, ou simplesmente: a sua santa Beatriz.
Toda travessia de linguagem instaura um novo destino, que é vivido em sua
inevitável liturgia. Sem essa não seria possível uma sagração. O destino
que tem por fio o firmamento, como já dito, aquele que é celeste, se
perfaz no rastro de quem o atravessou por primeiro e, com isso, o elevou
em um outro e renovado aparecimento de seus elementos constitutivos. Cada
coisa que integra passa a ser essencial na composição e no perfil do
espaço sagrado. Esse arranjamento das coisas afiança um caminho que não
pertence a um único, pois seria o mesmo que fixá-lo, mas que é atinente a
todos e, ao mesmo tempo, não se deixa possuir. Esse é o sentido mais
profundo da ação litúrgica, descerrar os destinos possíveis em um mesmo
espaço de andança. Liturgia é ação, do grego érgã, que torna algo
um acontecimento próprio a todos, léitos. A via alinhada e sulcada
pelo tropel do peregrino é acolhida pelas romarias, que são convocadas a
fazerem ali sua própria peregrinação. A sagração do caminho é o silêncio
desse primevo tropel que o tornou sagrado ao pronunciá-lo. A partir do
silêncio que inabita os elementos litúrgicos, todos os destinos são
pronunciados e conduzem cada qual novo romeiro em sua caminhada, ainda que
estejam no mesmo encalço. O movimento dado pela linguagem e ouvido na
compostura litúrgica é a oportunidade desse silêncio e dessa pronúncia que
atualiza a via e que transforma, a cada passo, o passante.
No próximo número retomaremos a pedra.
RONALDO FERRITO é
poeta, ensaísta e um dos editores da Confraria. Participou de algumas
antologias de contos e poemas, como a Asas e Vôos (Guemanisse,
2006) e publica com freqüência em revistas eletrônicas.
A via excêntrica era o título de seu livro inédito de poesia
(atualmente Hagiopoética), mas agora tornou-se o título do livro de
ensaios que começa a ser preparado aqui.
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