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marcus motta tal homem da simples leitura (primeira parte)
Era uma vez um homem que ouvira, em sua maturidade, o som dos versos do canto VIII do poema o Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa), o qual, posto a prova pelo espírito da leitura, vencida a tentação sem perda de fé, recebia dele, contra toda esperança de explicá-lo, a sua vida pela segunda vez. Na idade madura, tornara-se um leitor simples e, ao ler o canto, redobrara a admiração em lê-lo, visto como a vida separara aquilo que a juventude lhe dera como certeza da piedosa simplicidade que o ligara a uma segunda chance, já nos passos da velhice. À proporção que os versos ressoavam nos seus sentidos, o pensamento voltava-se com mais freqüência à vida e com acrescido laço; entretanto, entendia o canto cada vez menos. Acabou esquecendo tudo o mais, fixando apenas um desejo: ouvir Caeiro; e apenas um desgosto: não ter sido testemunha daqueles passos da escrita. Não desejava contemplar os motivos últimos daqueles versos, nem as maravilhas da genialidade descrita, nem figurar um patriarca teórico farto de dias e teorizá-lo, nem imaginar uma intrépida humanidade, composta de recém-chegados e de atrasados, ofertados, como presentes, ao “eterno” positivismo e explicá-los. Desejara estar presente no instante em que Caeiro, ao pousar os olhos na sombra muito curta e inclinada do meio-dia de fim de primavera, teve um sonho como uma fotografia. Desejara ter participado caminhar, quando Caeiro, ao sonhar como uma fotografia (na medida em que uma fotografia sonha a realidade do que seja), levanta os olhos e vê Jesus Cristo descer à terra (...) tornado outra vez menino / A correr e a rolar-se pela erva...; no mesmo momento em que tal homem exonera os receios de pensamento e não se preocupa mais com os engenhos da imaginação, favorável, como está, em apenas, ouvindo, ver e caminhar na companhia da criança tão humana que é divina.
Tal homem não era, aliás, um pensador. Não vibrava nele o menor desejo de ir além da simples leitura. Parecia-lhe ser considerado mais belo se admitisse como quem pudesse ser denominado de efeito da leitura e considerava digno de inveja em sê-lo em si, mesmo quando ninguém disso suspeitasse. Tal homem não era um douto exegeta, porquanto, nem mesmo, conhecia a língua de Caeiro para além do português que os unia. Se o tivesse podido lê-la, teria, então, indubitavelmente, entendido com facilidade o canto VIII.
Não tivesse tal homem consciência da simples leitura, se um saber selvagem e efervescente redutor de tudo, soberbo ou fútil, no torvelinho das escuras idolatrias do domínio, pudesse existir só no imo de todas as nossas considerações; se debaixo delas se ocultasse infinito vazio de nosso entendimento da vida ou de um poema que coisa alguma pudesse encher, o que seria da existência senão tragédia do nosso próprio conhecimento? Tal, porém, não é o caso. O homem da simples leitura foi criado uma segunda vez pela poesia. Como recriado não podia realizar aquilo que faz; restando-lhe apenas admirar a leitura, amá-la e alegrar-se com ela. Contudo, não é menos favorecido do que esta, pois ela é, por assim dizer, o melhor de si mesmo, aquela da qual se está apaixonado, venturoso porque não é ela, a fim de que o seu amor seja feito de infante louvor.
Este tal homem não fazia subir nada do seu próprio fundo, porém guardava zelosamente o som dos versos que lhe foram entregues sob custódia. Ia à escolha de ouvir; na ressonância dos versos seguia, de palavra em palavra, a elogiar e a viver a fim de que todos tomassem parte em sua admiração e se sentissem orgulhosos da ventura da leitura que cada um poderia aceitar. Essa é a sua atividade de simples leitura, a humilde tarefa – leal serviço na mansão do ler. Mantinha-se fiel ao seu amor e combatia, só, as armadilhas da explicação que vinham à sua mente, ávido por arrebatar qualquer mínima gota da simples leitura, e, desde que estivesse cumprida aquela missão, a vida o instalava. A vida o aceita uma segunda vez, do mesmo modo em que se religa fido; pois para vida, a leitura é o melhor do seu ser, como uma apagada lembrança de quem é, com certeza, tão transfigurada como ela. E, se é necessário tempo, se ainda as nuvens da incompreensão apagam a recondução à vida que a leitura faz quando se põe em versos, este tipo de homem vem, e tanto vem, que se aliança quanto maior for o seu atraso em vir.
Movido pela simples leitura abandonou a terra sábia de seus preceitos intelectuais e foi à aldeia de Caeiro. Por um lado, abandonou algo: sua razão de ser alguém independente; já, por outro: as certezas juvenis recozidas quando queria conhecer. Por causa desta leitura foi, ouvindo, àquela aldeia, onde nada havia que evocasse o que antes poderia dizer ser a sua fé, onde a novidade, tão antiga quanto um nascer do sol, gravava em sua alma uma outra vez, sem amargo arrependimento. Entretanto, era ele um eleito da simples leitura, aquele no qual a eterna condição humana de estar no mundo se revia. Verdadeiramente, se fosse declarado leitor, compreenderia melhor esta situação que parecia ridicularizá-lo como homem de inteligência. Existiu. Não foi olvidado, como nunca esqueceu a sua queixa de alegria, ali onde ele, em sua melancolia de prazer, buscou caminhar sem achar qualquer coisa – já que nada procurava, só ouvia. Tal homem, de quase zero lamento, reteve a promessa da vida pela segunda vez e abençoou aqueles versos. O tempo corria – ele conserva-se na possibilidade e lia. Por ele ia, vendo canto VIII ressoar em cada pedra. O tempo correu, a tarde alcançou o seu ocaso, e o homem da simples leitura jamais teve a covardia de negá-lo; por esse motivo recitou alguns versos: tinha fugido do céu. / Era nosso demais para fingir / Da segunda pessoa da Trindade.
Conheceu depois a alegria humana e uma pequeníssima amargura de ser pouco para aproveitá-la inteira. Repleto de vida, uma segunda vez, fez em seu favor tudo o que era possível e, em suas esperanças, deu-se a posse de rir de modo a ouvir-se de longe; como se fosse o Menino Jesus da aldeia de Caeiro. Conhecer a alegria é humana condição, porém o “inumano” sorrir é mais reconfortante do que contemplar a gargalhada que o mostra aflito atrás da cortina. Tal homem de rasa lamúria, não contou os dias à proporção que corria o tempo e lia, não esteve inquieto observando sua face envelhecer, não deteve o curso do sol para obstar o clássico e com ele querer fugir do espelho. Fez-se o que era: um efeito de leitura – motejado naqueles versos.
Tal homem leu e leu para esta existência. Se a sua leitura dissesse respeito à vida futura, ter-se-ia facilmente despojado de tudo para deixar rapidamente um mundo ao qual já não pertencia. Não era, porém, este tipo de leitura de tal homem, se porventura isso é leitura no sentido comum do termo. A leitura de tal homem era para esta existência; acreditara que envelheceria nesta segunda chance.
A mim ensinou-me tudo. / Ensinou-me a olhar para as cousas – ouviu dos próprios lábios. Firme inspirou-se no mundo exterior e visível e, coisa curiosa, sentiu-se bem conformado à esfera que é, por excelência, acusada por muitos pensamentos filosóficos ou religiosos. Pois, se o mundo exterior governa-se pela lei da imperfeição, como todos sabem há milênios, é nele que o homem da simples leitura se observou e, como humano que era, freqüentou com as mãos o mesmo campo dos preguiçosos e ociosos. Não teve nenhum asco, pôs-se completamente ouvinte na simples leitura e trabalhou incansavelmente para ver. E, ressonando os versos, reconheceu que ali a chuva cai ao mesmo tempo sobre o justo e o injusto, sem resguardo garantido. Imprudentemente, admitiu que o mundo visível é uma criança, que, adulto de infância, conhece, sem necessidade de qualquer trabalho, o barulho que a vida faz. Do mesmo modo que ao receber o pão vê que tudo ao seu redor se transmuta solar e, à noite, sonha com o som dourado das sombras de seus medos. O homem da simples leitura leu: ele é o humano que é natural. / Ele é o divino que sorri e brinca.
continua no próximo número
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