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marçal aquino o que ela estava dizendo
Ela estava dizendo que eu era
diferente dos outros caras. Um homem especial, entende? Ela estava dizendo
que eu era muito engraçado – eu tinha contado aquela da mulher do bombeiro
que aparece de surpresa para visitar o marido no quartel, sabe qual é?
Ela estava dizendo que era
fraca pra bebida. Cinzano, imagine. Ela estava dizendo que o ex-marido era
um bêbado que acordava esquecido das coisas que aprontava de pileque. Ela
estava dizendo que o ex não era muito chegado no trabalho, meio
“braço-curto”, sabe como é? Estava contando que o sujeito era um filho da
puta que batia nela quando bebia.
Ela estava dizendo que tinha
duas manias na vida: chocolate e jóias. Podia ser bijuteria, não tinha
problema. Ela estava dizendo que não pintava o cabelo, era daquela cor
mesmo. Loiro, fininho, cabelo de milho. Ela estava dizendo que não se
achava bonita, mas que também não era de se jogar fora. Ela era a cara
daquela menina que veio do Paraná, uma que foi miss, lembra?
Ela estava dizendo que o pai
era analfabeto e abusou dela dos 14 aos 19 anos. Ela estava dizendo que o
pai falava que as outras mulheres eram sujas e que ela era limpinha. Ela
estava dizendo que a mãe sabia, e sempre fingiu que não via.
Ela estava dizendo que, depois
do marido bêbado, andou amigada com um assaltante de banco. Ela estava
dizendo que foi uma época feliz e que, por isso mesmo, sempre teve a
certeza de que não ia durar. Ela estava dizendo que no tempo bom iam para
hotéis chiques, com direito a champanhe, e o sujeito cobria o corpo dela
com notas novinhas em folha. Ela estava dizendo que na fase ruim ia
visitá-lo na penitenciária agrícola e os caras de lá faziam ela tirar toda
a roupa, com a desculpa de que precisavam revistá-la. Só que faziam fila
pra ver ela pelada, imagine.
Ela estava dizendo que, embora
não se cuidasse, nunca pegou filho do marido bêbado nem do assaltante de
banco. E que se tivesse acontecido, não teria abortado de jeito nenhum,
era contra. Ela estava dizendo que a melhor amiga dela, uma tal de Daisy,
tinha morrido num aborto malfeito. Daisy, com “a” e “y”, ela fez questão
de soletrar, como se estivesse rezando uma prece pela falecida.
Ela estava dizendo que me
achou interessante desde o primeiro momento em que me viu. Estava dizendo
que não entendia como a gente não tinha se cruzado antes. Destino,
dissemos ao mesmo tempo. Ela, a sério; eu, de gozação.
Ela estava dizendo que
gostaria de conhecer o Rio, Foz do Iguaçu e também Fortaleza. Eu disse que
conhecia essas três cidades e mais Natal, João Pessoa, Recife e Salvador,
mas não mencionei o caminhão. Ela estava dizendo pra eu largar mão de ser
misterioso e contar logo o que fazia na vida. Pedi para ela adivinhar. Ela
estava dizendo que talvez eu fosse um espião. Espião, no Brasil?
Ela estava dizendo que, por
influência de uma amiga, freqüentou por uns tempos uma dessas igrejas em
que as pessoas gritam para se comunicar com Deus. Ela estava dizendo que
parou quando percebeu que sua vida não estava indo pra frente, como a
amiga garantiu. E que agora rezava por conta. Bem baixinho.
Ela estava dizendo que já
estava com mais de 20 anos quando ouviu falar de orgasmo pela primeira
vez. Que não sabia que tinha esse nome aquele tremor, que ela chamava de
tremor mesmo.
Ela estava dizendo que não
saía de casa sem ler o horóscopo no jornal. Era sagrado. Perguntei se
naquele dia o horóscopo falava de algum encontro bacana. Não, não falava
nada, ela estava dizendo. E que não funcionava desse jeito, precisava
saber interpretar. Ela estava dizendo que, além do mais, já tinha passado
da meia-noite e aquele horóscopo não valia mais.
Ela estava dizendo que não
vivia sem música, não conseguia. E que tinha um rádio praticamente em cada
cômodo da casa – e eu gostei quando ela disse isso, adoro gente que fala
“praticamente” sobre coisas que quase são verdade. Ela estava dizendo que,
em certa época, começou a aprender violão. Depois desistiu. Ela estava
dizendo que ficaria até sem comer, mas não passava sem música. E citou uns
cinco ou seis nomes, os caras que ela gostava de ouvir, e eu não conhecia
nenhum.
Ela estava dizendo que a
primeira coisa que notava num homem era a boca, os lábios, os dentes e, se
possível, o sorriso. Depois, analisava o resto. Eu pensei em contar a
verdade e dizer que eram os seios a primeira coisa que eu reparava numa
mulher. Mas não tive coragem. Então falei que a primeira coisa que me
chamava a atenção numa mulher eram os olhos. E, depois, as mãos, acredite.
(Ela aprovou.)
Ela estava dizendo que não
ligava pra futebol, nem entendia direito, mas era capaz de passar horas
diante da televisão vendo uma partida e pensando em outra coisa. Ela
estava dizendo que o ex-marido era louco por futebol, torcia pelo
Atlético. E que se o time perdia, ele bebia de desgosto; quando ganhava,
enchia a cara porque estava alegre.
Ela estava dizendo que adorava
usar minissaia, porque sabia que tinha as pernas bonitas. E que as pernas
eram a coisa que ela mais gostava nela mesma. E que o assaltante de banco
era vidrado nelas. Ela estava dizendo para eu ir com calma, que ia chegar
a hora certa de me mostrar essas pernas. Eu disse que, para certas coisas,
a gente mesmo que fazia a hora. E acenei para o garçom, como se estivesse
escrevendo na palma da mão.
A caminho do carro, ela estava
dizendo que existia uma coisa importante que eu precisava saber, que ela
não tinha um dos seios, se aquilo seria um problema para mim. Eu disse que
nem se notava por causa da blusa folgada que ela estava usando, mas não
disse que saber daquilo tinha me deixado com mais tesão por ela.
Quando saímos do
estacionamento, ela estava dizendo que gostaria muito de mudar de vida,
que estava doida para ser feliz. Só isso.
MARÇAL AQUINO é
escritor e jornalista free-lancer. Publicou o volume de contos O amor e
outros objetos pontiagudos, Faroestes e Famílias terrivelmente felizes
(antologia), além das novelas O invasor e Cabeça a prêmio. Atuou como
roteirista nos filmes Os matadores, Ação entre amigos, O invasor e Nina.
Recebeu diversos prêmios por seu trabalho literário, como o Jabuti (2000).
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