luiz vilela
perdição
Na ocasião em que este relato
se inicia, Leo, com 25 anos, estava casado – com Gislaine, uma morena
bonita, dois anos mais nova do que ele – e tinha uma filha, Kelly, de três
anos.
Eu, com 27 anos, não me casara nem tinha filhos. Não tinha também com
relação a uma coisa e outra – casamento e filhos – quaisquer planos.
Talvez, como Leo dizia da escola, eu tivesse por eles alguma “alergia”.
Especialmente ao casamento, em todos os seus aspectos. Tanto que, quando
Leo me convidou para o dele, eu, achando difícil escapar, lhe disse:
“Eu vou, mas com uma condição...”
“Qual?”, ele perguntou.
“Eu não ter, depois, de ver o álbum de retratos.”
Ele riu e disse:
“Combinado...”
E assim fizemos.
Para não dizer que não vi nenhuma foto do casamento, eu vi a que saiu no
nosso jornal – cortesia minha, aliás, para com o jovem casal e que lhes
deu, ao que parece, muita alegria.
Bem, mas não é de mim que estou aqui para falar: é de Leonardo, do meu
amigo Leo.
Leo tinha também, nessa ocasião, uma pequena casa, que fora dos pais e
ficava numa vila. Jardim na frente, quintal no fundo, era uma casinha
simpática. Ele tinha, ainda, uma Kombi, que comprara de segunda mão e que
era, naturalmente, imprescindível ao seu trabalho.
Um dia – pouco antes dessa ocasião –, um dia em que estávamos os dois à
beira do lago, preparando-nos para uma pescaria, Leo disse:
“Ramon, eu não tenho muita coisa; na verdade, não tenho quase nada; mas
tudo o que tenho eu devo a esse lago.”
Sacudi a cabeça, escutando-o enquanto eu colocava na vara o anzol,
preocupado com o tempo, que ia rapidamente se fechando e ameaçando nossa
pescaria.
“O dia que eu morrer”, ele continuou, arrumando também sua vara, “o dia
que eu morrer, eu quero que vocês me joguem lá no meio, para eu servir de
comida aos peixes.”
“Pode deixar, que nós te jogamos”, eu disse. “Mas trate de engordar um
pouco, senão os peixes só vão ter ossos para comer.”
Ele riu.
“É, eu estou mesmo precisando de dar uma engordada”, disse, levantando a
camiseta branca e passando a mão pela barriga, bronzeada pelo sol e lisa
como a de uma estátua.
Poucos minutos depois, a chuva despencou. Corremos para debaixo da velha e
imensa gameleira, e lá ficamos, sentados nas pedras, meio amuados,
esperando a chuva passar – se é que ela passaria...
Foi então que Leo, não muito dado a reflexões, fez uma série de perguntas
das quais eu, algum tempo depois e em mais de uma ocasião, me lembraria,
pelo seu caráter premonitório.
Ele começou meio de repente:
“Para que a gente está aqui?”, perguntou.
“No lago?”, eu, por minha vez, perguntei.
“Não”, ele disse, “no lago, não: aqui, na terra; aqui, no mundo.”
“Ah.”
“Para quê?”
“Não sei”, eu disse, “mas, pelo que já vi até agora, desconfio que não é
para muito boa coisa...”
“A gente está aqui como poderia não estar...”
“É.”
“Era só a gente não ter nascido.”
“Isso.”
“Mas a gente nasceu.”
“Nasceu.”
“E então?”
“Então o quê?”
“Para que a gente nasceu?”
“Muitos já tentaram responder a essa pergunta”, eu disse. “Uns ficaram
doidos, outros cortaram os pulsos, outros escreveram livros...”
“Eu acho que a gente nasceu”, ele disse, “eu acho que a gente nasce porque
a gente tem uma missão a cumprir – não é, não?”
“Missão?”
“Eu acho; senão para que a gente nasce?”
“A gente nasce para morrer”, eu disse.
“Para morrer?”
“É, para morrer. Como que a gente morreria se a gente não nascesse?”
Ele ficou pensando. Depois disse:
“É... Essa eu acho que eu não entendi...”
“Eu também não”, eu disse.
Nós rimos.
“A gente nasce...”, ele recomeçou.
“Eu vou te dizer, Leo”, eu o cortei, “eu vou te dizer para que a gente
nasce... A gente não nasce para alguma coisa; a gente nasce, apenas. A
gente nasce. E aí a gente vive. E então a gente morre. E pronto, acabou-se
a história.”
“Não”, ele disse, negando com a cabeça; “eu não acho que seja assim... Eu
acho que a gente nasce com uma missão; cada um nasce com a sua missão...”
Eu me calei, menos interessado naquelas questões – nas quais, aliás, eu já
vinha desde os quinze anos pensando – do que na chuva, torcendo para que
ela terminasse logo e pudéssemos realizar a nossa pescaria.
“Qual será a minha?”, ele disse.
“A minha?”, eu perguntei, voltando-me para ele.
“A minha missão”, ele disse.
“Hum.”
“Qual será?”
“Descubra”, eu disse.
“Será que eu vou ficar a vida inteira pescando? Será que se eu fizer
noventa anos, eu vou chegar lá arrastando um caniço na mão e uma rede na
outra?”
Eu ri.
“Ou será que eu não descobri ainda a minha missão, como você disse? Às
vezes Deus não me mostrou ainda qual é ela.”
“Então peça a ele para mostrar logo e não ficar enrolando.”
Ele riu.
Acendeu um cigarro e ficou algum tempo em silêncio, contemplando também a
chuva, o lago, as matas...
“Às vezes, Ramon”, ele disse, “quando eu estou sozinho aqui, eu fico
pensando uma porção de coisas, coisas como essas... Tem hora que me vem
tanta pergunta que parece um enxame de abelhas num jardim florido – ou
então um bando de mosquitos num monte de bosta.”
Eu ri.
“Quer ouvir uma?”
“Eu já ouvi várias”, respondi.
“Só mais uma...”
“Tá...”, eu disse, fazendo um gesto de tolerância.
“A pergunta é: o que tem no fundo do lago?”
“No fundo do lago?”
“É.”
“Areia.”
“Só areia?”
“O que mais que você quer?”
“Não sei...”
“Areia, pedra, planta...”
“Pedra eu ouvi dizer que tem mesmo; muita pedra. Quem já mergulhou até o
fundo diz que é difícil enxergar, que é muito escuro. As pedras são
pretas, iguais a estas aqui. Diz que dá para ver umas locas, algumas de
dar medo: se o cara entrar numa delas, não sai mais e ninguém nunca mais
encontra.”
“Deve ser interessante...”
“Mas não é nisso que eu estava pensando.”
“Você estava pensando em quê?”
“Eu estava pensando em... Não sei... Algum peixe que ninguém jamais viu...
Alguma pedra preciosa... Esqueletos...”
“Você andou vendo algum filme...”
Ele riu.
“Sei que eu gostaria de mergulhar até o fundo; se eu soubesse nadar...”
Eu balancei a cabeça.
“Às vezes também, sabe?”, ele disse, “às vezes me dá uma saudade...”
“Saudade? Saudade de quê?”
“De uma porção de coisas... Às vezes até de coisas que eu não sei bem o
que são...”
A chuva caindo, imperturbável. Pensei, chateado, que acabaria não dando
para pescar, e eu voltaria para casa com aquela frustração.
“Saudade de minha mãe”, Leo continuou, “saudade de meu pai, de meu tempo
de criança, quando eu brincava no quintal lá de casa... Ou então dos
tempos em que o Papai trazia nós dois aqui e a gente ficava ali, na
margem, pegando lambaris...”
“É.”
“Era bom, né?”
“Era...”
“Às vezes eu fico lá, no meio dessa água toda e dessas matas, fico lá
pensando essas coisas...”
Eu balancei a cabeça.
“De vez em quando um pássaro passa, atravessando o lago, e eu tenho
vontade de perguntar: ‘Aonde vais, pássaro? Aonde vais, tão certo, tão
seguro assim de seu destino?’”
“O quê, hem, rapaz?...”, eu disse, admirado.
Ele riu.
“Está virando poeta?”
“De vez em quando me vem umas inspirações...”, ele disse, meio
envergonhado.
“Muito bem...”
“Pois é... Mas”, ele prosseguiu, “eu fico vendo esses pássaros, e aí eu
penso: eu também queria estar assim, lá em cima, voando, livre, em direção
a alguma coisa...”
“Hum...”
“Então eu começo a pensar em minha vida e aí eu vejo que a minha vida não
é nada, que eu não sou nada, que... E aí vai me dando uma bambeza, uma
vontade de apagar o pensamento, de fechar os olhos, deixar o meu corpo
cair para trás e...”
“E...”
Ele não concluiu.
“Mas aí”, retomou, “como se eu despertasse de um sonho, eu digo: ‘Que
isso, rapaz? Acorda! E sua filhinha adorada? E sua mulher? E seus amigos?
E a cervejinha no boteco? E a lingüicinha frita? A vida tem tanta coisa
boa! A vida é tão boa! Você está ficando maluco? Lance o seu anzol na
água, lance o seu anzol e pegue o seu peixe!’”
“É...”, eu disse.
Ele então se calou e ficou olhando para a chuva, que, agora, finalmente, e
felizmente, parecia diminuir.
“A chuva está parando”, observou.
“É...”, eu concordei.
Ele deu mais uma tragada funda e, com um piparote, atirou longe o toco de
cigarro, na direção do lago.
“Ramon”, me perguntou de repente, virando-se para mim: “quanto tempo será
que uma pessoa leva para morrer afogada?”
“Quanto tempo?...”
“Uns dois minutos? Três?”
“Faça um teste”, eu disse.
Ele riu.
“Você me fez lembrar a piada do árabe e o judeu; conhece?”
“Árabe e judeu?”
“Um árabe e um judeu: os dois apostaram um real em quem ficaria mais tempo
debaixo d’água.”
“E aí?”
“Morreram os dois, afogados.”
Eu ri.
A chuva tinha de quase todo cessado. Eu, já impaciente, não quis esperar
mais.
“Vamos?”, eu disse, me levantando. “Vamos lançar o nosso anzol e pegar o
nosso peixe?”
“Vamos”, ele disse, levantando-se também. “É a melhor coisa. Sabe? Essas
perguntas só servem para deixar a gente deprimido. Bom é pescar; pescar é
que é bom.”
Então, de repente, ele deu um grito e um salto no ar, e aí saiu correndo
descalço, pela areia molhada, até a canoa.
“Você ficou maluco, rapaz?”, eu gritei. “Você ficou maluco?”
“É a vida!”, ele respondeu, com o rosto resplandecente de uma selvagem
alegria. “É a vida!”
É, a vida; a vida que, como se verá, reservava a ele (como a todos nós
reserva) umas boas surpresas...
LUIZ VILELA nasceu em
1942, em Ituiutaba, Minas Gerais, cidade onde voltou a morar, após viver
nos Estados Unidos e na Espanha. Formou-se em Filosofia, em Belo
Horizonte, e foi jornalista em São Paulo. Aos 24 anos estreou na
literatura com o livro de contos Tremor de terra, com o qual ganhou o
Prêmio Nacional de Ficção. Ganhou também o Prêmio Jabuti, de melhor livro
de contos do ano, com O fim de tudo. É autor de treze livros, todos de
ficção, entre os quais estão a novela O choro no travesseiro e o romance
O
inferno é aqui mesmo. Já teve obras adaptadas para o teatro, o cinema e a
televisão, sendo traduzido para várias línguas. Seu livro mais recente é a
novela Bóris e Dóris. O texto publicado aqui é um capítulo de seu romance
inédito Perdição, a ser lançado pela Record neste ano.
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