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claudia roquette-pinto
diários do graffiti I
Uma exposição
Dia 1
O grafiteiro Acme está acabando de montar sua peça: uma cruza de barraco
de favela com casinha de boneca, como uma miniatura daquelas casas-malucas
dos antigos parques de diversão. Feita toda em madeira reaproveitada, com
vários telhados e janelas idiossincrásicas, ora redondas, ora
retangulares, ela não é nem uma coisa nem outra: é a versão
tridimensionalizada do seu tag (ou, em grafitês, assinatura).
Se olharmos com cuidado, veremos que o tal barraco é, na realidade, o seu
próprio nome, transformado em casa e em abrigo - um nome dentro do qual se
mora, dentro do qual aquele que responde por ele pode habitar. Fico
pensando em como é bonita essa idéia, do nome como lugar de proteção, o
nome como refúgio.
Todo grafiteiro tem um estilo próprio de letra, e o do carioca Acme é essa
combinação com formas de casa, barracos, etc - provavelmente uma
referência às suas origens, no morro do Cantagalo. Em seu blackbook (livro
de esboços), momentaneamente contrabandeado por esta escriba interessada,
encontrei vários sketches da casinha-nome, e, no canto de uma das páginas,
as frases “Casa pequena mas suficiente para mim/não dependente de
ninguém/me sinto bem/mesmo sem nenhum vintém/sozim/sem cupim porque é de
boa madeira/nem barata nem rato e nenhuma sujeira”.
Acme é apenas um entre os dezoito artistas convidados para esta mostra,
sete dos quais dividem com ele a mesma sala. Cada um, neste momento,
ocupado em executar seus trabalhos nas paredes ou em estruturas de
madeira, que vão desde um painel de compensado representando os contrastes
entre a favela e o “asfalto” - ao qual o artista (Ment) acoplou um túnel,
forrado de referências a vários elementos da cultura urbana já íntimos de
quem mora no Rio, e que o espectador pode atravessar - à escultura de uma
criatura não-identificada, semelhante a um gato com máscara de oxigênio,
curvado sobre as patas da frente (Stohead). Alguém ali providenciou um
aparelho de mp3, que, devidamente protegido dos jatos dos sprays, toca
alto num canto do salão: rap espanhol, além de Madlib, Public Enemy, De La
Soul, e também muito dub. Além do descaso pelo cheiro forte da tinta, a
seleção musical parece ser outro elemento que todos compartilham com
equanimidade. O vapor do spray em suspensão inunda não só esta
sala como a seguinte, se espalha pelo foyer e vai tomando todo o primeiro
andar do centro cultural que abriga a exposição.
Os grafiteiros nesta mostra são, em sua maioria, bastante jovens. Quase
todos na faixa dos vinte aos, no máximo, trinta anos. As exceções aqui são
os estrangeiros, que estão majoritariamente alocados na sala em frente.
Ali, em meio a artistas do grafite internacionalmente reconhecidos, como o
alemão Loomit (papa do 3-D style, uma espécie de estilo “Salvador Dalí” do
grafite) e o norte-americano Daze (expoente da chamada old school de Nova
Iorque), o paulistano Zezão dá os últimos retoques em um de seus
trabalhos, uma das flops pelas quais é conhecido. Segundo ele, suas peças
são resultado de anos de estudos da sua própria caligrafia, a qual, com o
tempo, “foi se dissolvendo até virar essa forma orgânica azul”. Paulista
do Brás, Zezão costuma aplicar esse trabalho “nos subterâneos das cidades,
em lugares baldios, fábricas abandonadas e nos lugares mais sujos e
perigosos, como a cracolândia, favelas, embaixo de pontes e nos lugares
onde muitas pessoas sem teto vivem”. Foi numa dessas suas solitárias
explorações pelo (literalmente) underground da cidade - as quais nem mesmo
o risco de enchentes ou doenças puderam até hoje deter - que Zezão
conheceu o casal de sem- teto Toninho e Teresa, moradores do esgoto há
sete anos. Acabou fazendo amizade com eles, e, no Natal de 2006, foram
ceiar em sua casa.
O graffiti, para Zezão, foi a porta de saída de uma grande crise pessoal.
Talvez por isso não veja nenhum problema em pintar, como ele mesmo diz,
“com o pé na merda, cheio de baratas andando pelo teto e com boa parte do
corpo embaixo d’água”. Na maioria dos locais onde pinta é obrigado a usar
uma lanterna. Presto muita atenção ao seu vocabulário preciso, e ao uso
peculiar que faz, ao falar sobre a cidade, de imagens que remetem a ações
ou características do corpo. Como, por exemplo, “o esgoto que vomitou para
dentro do rio”, ou “limparam o Tietê mas deixaram de cuidar das veias da
cidade (as galerias subterrâneas). Além de, como ele próprio confessa, ser
afeito à idéia de “sobrevivência no limite”, Zezão acredita que o seu
trabalho pode apontar para esses e outros tipos de problema dos grandes
centros urbanos e, assim, exercer uma função social para além da própria
arte.
Dia 2
O clima nesta tarde está um pouco diferente: a música, mais irritada, os
artistas, mais cansados - e, talvez por isso, um pouco impacientes. Alguns
deles praticamente viraram a noite trabalhando, outros estão chegando hoje
pela primeira vez para, só agora, a pouco mais de 24 horas da abertura,
começarem a trabalhar. Mas ninguém se estressa. Neste ambiente
predominantemente masculino (a única artista presente, a francesa Klor,
faz parte de uma dupla com o marido), paira um ar de camaradagem aberta e
competição muda, conforme os trabalhos vão tomando forma, segundo a
segundo, debaixo dos nosso olhos fascinados. O cheiro de tinta está ainda
mais concentrado do que ontem, e quem fica nas salas por mais de meia hora
já começa a sentir os efeitos na garganta e nos olhos. A maioria dos
trabalhos têm dimensões consideráveis, ocupando espaços de aproximadamente
3m X 4m; não fosse o graffiti, tradicionalmente, uma arte mural. A
exposição vai lentamente se revelando. Um dos artistas conversa com o
assistente de produção, o qual, por sua vez, tenta angariar a simpatia de
um dos porteiros para conseguir mais uma escada, já que as duas únicas
disponíveis estão em uso, sendo objeto de constantes e diplomáticas
negociações. O nível de concentração aumenta sob a pressão do tempo. Mas,
se passadas algumas horas, o grafiteiro considerar que sua escolha de
tintas não foi a mais feliz ou que algum traço não está fazendo jus ao seu
propósito ou ao seu talento, ele não hesita, para pasmo dos poucos
não-iniciados ao seu redor, em apagar parte da própria peça e fazer tudo
de novo. Segundo Bragga, carioca integrante do coletivo Nação Graffiti, o
desapego pela própria obra é um aprendizado que todo grafiteiro precisa
fazer. Afinal de contas, com exceção da performance, talvez seja o
graffiti a forma de arte visual mais impermanente.
Dia 3
É a noite de abertura. Depois de atravessarmos o foyer, agora repleto de
gente, vamos direto para a sala da esquerda, onde passamos boa parte do
final de semana, imersos numa nuvem de tinta Montana, ao som de raps e
dubs, com direito até a uma improvisada “batalha” (desafio entre rappers
que muito se assemelha aos desafios de cordel) entre os grafiteiros Flip e
Marinho. Agora, nada ali lembra o clima de imenso ateliê dos dois últimos
dias, com rolinhos destroçados, latas de tinta espalhadas
pelo chão, ao lado de marcas acidentais de stencil, além de máscaras,
rolos de tape, tesouras, escadas e outros apetrechos, tudo isso em meio à
música alta e à a energia frenética dos artistas, concentrados em dar o
melhor de si. As salas, muito amplas e ainda assim muito brancas (apesar
dos trabalhos coloridos nas paredes) readquiriram, sob a luz dos
refletores, seu ar de galeria, e parecem mais vazias sem a presença dos
grafiteiros em ação. Os próprios trabalhos parecem agora meio deslocados.
Belos, certamente, e de excelente qualidade; mas, apesar de suas dimensões
serem
consideráveis, deixam a impressão de terem, de certa forma, encolhido. É
como se estivessem um pouco tolhidos. Como um torcedor suado, recém-saído
de uma final de campeonato que, de repente, tivesse que enfrentar uma
festa na embaixada.
Pelos salões circula, curioso, um público heterogêneo, que vai desde
senhoras de gestos curtos e olhar assustado, pontificando a favor do
graffiti e contra a “sujeira” da pichação, a jovens pixadores (sic), que
insistem em deixar o seu recado nas paredes do “túnel” de Ment. A certa
altura da noite, o artista constata, perplexo (mas sem deixar de lado um
certo humor corrosivo) que as duas canetas marker, deixadas ali para este
fim, foram discretamente surrupiadas...
No salão central, uma projeção segue mostrando várias etapas da montagem,
enquanto, no saguão, em meio ao burburinho dos convivas que aproveitam a
cerveja gratuita, um Dj devidamente instalado num canto faz esforço para
dar o tom musical do evento. Uma equipe de televisão roda, filmando, pelas
salas, e entrevista um grafiteiro aqui, outro acolá, para um programa
juvenil na tv a cabo.
Alguns grafiteiros retardatários ainda estão chegando para a festa. Alguns
com marcas de tinta nos tênis, os dedos manchados, o rosto cansado - mas,
ao que parece, felizes. Embora nunca percam de todo um certo ar
non-chalant e concentrado, e seus sorrisos sejam apenas esparsamente
distribuídos.
Existe uma grande controvérsia, entre os artistas, quanto à validade de se
apresentar uma arte que é, por excelência, da rua, num contexto de
validação cultural tão instituído quanto um museu ou uma galeria.
Afinal, a falta de cerimônia, a abordagem anárquica dos elementos
formadores de sua própria cultura, a perda de fronteiras rigidamente
delimitadas (sejam elas fronteiras sociais ou geográficas), a apropriação
do espaço público, a contravenção, a busca por uma excelência de execução
artística frente à uma urgência temporal e física – são, todas elas,
algumas das características e dos desafios do graffiti. As quais,
justamente, o tornam uma forma de arte das mais instigantes e sintonizadas
com a sensibilidade urbana contemporânea.
Assim como existem artistas, como o espanhol San, que se dedicam a pintar
apenas sobre superfícies degradadas. Ou o brasileiro Izolag, que grafita
em lugares remotos, becos perdidos em cidadezinhas sonolentas no interior
da Bahia. Ou, ainda, o já mencionado Zezão, imprimindo sua arte nos
esgotos de São Paulo. Perto daquilo que é dejeto, escoamento, abandono.
Próximo ao sujo, ao podre, ao esquecido. Embora nem todos os grafiteiros
concordem (há quem esteja conscientemente engajado na função social da
arte, assim como há aqueles que acreditam que pintar em lugares distantes
ou inusitados seja apenas mais uma “estratégia de marketing”), está claro
que esta escolha tem um sentido.
Esses trabalhos têm o mérito de questionar a idéia de perfeição, mostrar
que a beleza é perecível, tirar o foco das aparências, buscar a essência
das coisas. Como também a poesia.
CLAUDIA ROQUETTE-PINTO
é escritora e tradutora carioca. Formou-se em Tradução Literária pela
Puc-Rio e dirigiu, durante cinco anos, o jornal cultural Verve. Tem quatro
livros de poesia publicados, tendo ganhado o Prêmio Jabuti de Poesia, em
2002, com seu livro Corola. Seus poemas foram incluídos em diversas
antologias nacionais e internacionais, e em várias revistas brasileiras e
estrangeiras.
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