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aderaldo luciano
Leandro Gomes de Barros
Não foi a protuberância glútea
da Mulher Melancia, seus requebros e reflexos auditivos, tampouco seu
minúsculo “short” e pernas bronze-torneadas. Nada disso. Também não foi a
barba de Fidel Castro e sua renúncia a comandante da outrora onírica ilha.
Nada disso. Minha comoção deu-se pela passagem dos 90 anos de morte de
Leandro Gomes de Barros: o criador do sistema de produção da Literatura de
Cordel.
Esse Leandro, além de ter escrito aproximadamente mil folhetos de cordel,
vertendo para sextilhas, décimas ou quadrões, velhas histórias da
Península Ibérica, fundou a tradição do herói nordestino, oferecendo
caracteres épicos à literatura feita por poetas que não frenquentaram a
escola nem se deixaram moldar pelos modismos europeus da época. Sim,
porque o cordel nasceu paralelo à escola romântica sem dela tomar
conhecimento.
Apesar de ser a única forma original de poesia brasileira, com temas e
forma únicos, essa poesia e esse poeta são vistos pela maioria dos que
estudam letras e produzem literatura no Brasil como menores, transitam o
caminho do exótico, enclausurados no folclore (essa palavra infame),
sucumbem às falsas teorias, harmonizam-se com a margem, são naufragados
pela ignorância geral. É uma pena. Mas a resistência pede passagem e nós
estamos aqui como bastiões da tradição cordélica.
De Leandro disse Carlos Drummond de Andrade: “Em 1913, certamente mal
informados, 39 escritores, num total de 173, elegeram por maioria relativa
Olavo Bilac príncipe dos poetas brasileiros. Atribuo à má informação
porque o título, a ser concebido, só poderia caber a Leandro Gomes de
Barros, nome desconhecido no Rio de Janeiro, local da eleição promovida
pela revista FON-FON, mas vastamente popular no Nordeste do país, onde
suas obras alcançaram divulgação jamais sonhada pelo autor de ‘Ouvir
Estrelas’.”
Acrescentava que Leandro “... não foi príncipe de poetas do asfalto, mas
foi, no julgamento do povo, rei da poesia do sertão e do Brasil em estado
puro”. Disse-nos desse mesmo Leandro, o velho e bom Câmara Cascudo: “Um
dia, quando se fizer a colheita do folclore poético, reaparecerá o humilde
Leandro Gomes de Barros, vivendo de fazer versos, espalhando uma onda
sonora de entusiasmo e de alacridade na face triste do sertão”. Sofremos
desse mal de memória e de preconceito.
Mais ainda foi dito de Leandro: “Viveu unicamente do produto de suas
histórias rimadas, que ainda hoje são as melhores da literatura de
cordel.” A sua importância transcende o simples fazer e editar e
comercializar versos de cordel. Foi o primeiro a preocupar-se com o
material físico, com o folheto em si. Passou a imprimir fotografias em
suas capas e desenhos de arte. Fundou sua própria tipografia, criou
campanhas de marketing para seus folhetos, distribuiu-os pelo Nordeste
afora, deu-lhes dignidade.
Foi o primeiro a se preocupar com direitos autorais. Passou a escrever
acrósticos nos versos finas de seus folhetos e não conseguindo, assim,
vencer a “pirataria”, sim, porque muitos se aproveitavam para reproduzir
seus folhetos assinando-os, passou a estampar sua fotografia na contracapa
dos mesmos com os seguintes dizeres: “ Aos meus caros leitores do Brasil —
Ceará, Maranhão, Pará e Amazonas — aviso que desta data em diante todos os
meus folhetos completos trarão o meu retrato.”
A seguir dá o motivo de tal decisão: “Faço este aviso afim de prevenir aos
incautos que têem sido enganados na sua boa fé por vendedores de folhetos
menos sérios que têem alterado e publicado os meus livros, comettendo
assim um crime vergonhoso.” Assina e data Recife, 9 de 7 de 1917. Como se
vê a fama de Leandro extrapolou o Nordeste e enveredou pelo Norte do
Brasil. Acredito mesmo que tenha sido o autor mais lido e publicado
naquela época. Se a famigerada lista de mais vendidos atentasse para isso
teríamos um “best seller”.
É uma pena, sob o signo da irresponsabilidade e preconceito, que a
literatura de cordel e Leandro, em particular, não figurem nos manuais de
história da literatura brasileira com a devida reverência. Se o cordel é
marca identitária nordestina, nada deve à produção poética dos gabinetes e
das academias, dos poetas herméticos e dos círculos literários do sul do
país. A espera da colheita, como disse, Cascudo, não surtirá efeito algum.
O que conta é a semeadura. Ainda estamos relegados à curiosidade.
Portanto, senhores, reitero minha emoção construída não com a bunda da
Mulher Melancia, nem com a barba empoeirada de Fidel, mas com a pena e a
atitude empreendedora do maior poeta nordestino de todos os tempos, aquele
que descortinou uma pátria nova, que fundou um caminho e uma tradição, que
nos ofereceu a dignidade de não esperar migalhas das grandes editoras nem
de incentivos do governo ou de empresas multinações, que acreditou em si e
na sua veia, o príncipe de nós todos: Leandro Gomes de Barros.
ADERALDO LUCIANO é
paraibano, nascido em Areia, poeta e sushiman.
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