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horácio costa


cuneiforme

 

 

 

Noturno de New Haven

Ao Francisco, namorado
 

Oggi è sciopero generale.
Eugenio Montale, Xenia

 

Sopra um estranho vento neste planalto.
É verdade que já começa a estação chuvosa,
Já o sub-trópico com monções se parece.
Com a previsível chuva veio o frio.

Mas, e este vento? As grandes vidraças
Agitam-se nas esquadrias, batem as portas
E as árvores assobiam músicas como
Dedilhados infantis sobre xilofones.

E levanta-se no meio da noite o vento
E o súbito silêncio me desperta exato.
Por meio minuto está a cidade suspensa
No devir e ausente faz-se pura memória.

Em São Paulo só há silêncio se de chofre
Desassobia o vento no meio da noite.
Com o primeiro carro atualiza-se o espaço.
Coalesce, para o futuro, o poema.

Chegam as horas mortas da vida, noites
Medidas pelo passo do nada a desoras.
No campo, não há pausa, atentai-me:
Piam as pontuais corujas, mugem bois

E não raro ouve-se o tropel de um boi
Que persegue e cobre uma vaca no cio
E o orvalho abafa o ruído dos cascos
Que ao longe se perde na algazarra de rãs.

Na cidade e no campo o fio da vida tece
O pano da noite e embala o sono das gentes.
Nestes trinta segundos repasso ruídos,
Escuto sentidos e ajusto presenças.

Só em New Haven houve silêncio a lembrar,
Quando nevava na madrugada e a queda
Da neve estendia a sua câmara acústica
Sobre o mundo dos vivos e suas mazelas.

Nada mais silente do que o meio da noite
No meio da neve, e alguém respira a teu lado
Então como agora, e nesses corpos tão únicos
Dá-se para ti o turbilhão silencioso:

O frio de ser. Lá fora imensa houve neve,
Como agora esta parca ausência de vento.
Espera: já te latejará a têmpora graças
À descoberta amorosa. Então, viste

Os rastos do primeiro viandante ou do
Primeiro animal que maculou o império
Do branco, véu que te resulta estranho:
Aqui não pertences, a esta altura chegam

As chuvas que recordam monções e o sol
Quando brilha, clama o cio da terra nas aras
Da infância. Aqui não nasceste, te afugentam
O frio e o silêncio e a nívea beleza mortal.

Mas na manhã estrangeira abriu seu sorriso
O companheiro e o edifício por completo
Habitado por ires e vires que produzem
Vizinhos, sacode-se do sono e da neve.

Foi este o silêncio que me trouxe o vento
Detido no meio da noite em São Paulo
E o tempo e a neve, a viuvez e New Haven
Trocam posições e se esfumam no poema,

Enquanto antes de sentar-me a escrevê-lo acordo
O novel companheiro e lhe falo da neve
Da Nova Inglaterra, que o vento que retorna
Agora em São Paulo, despiciente, funde.

 

 

 

Cuneiforme

Para o Marcel, filho
 

 

Continuo “imerso em mim e
na água dos meus pensamentos”, mas me interessa
mais do que eles esta praia e mais do que ela em si
a presença das três garças pequenas, brancas
e de olhos amarelos e agourentos e talvez
jovens, que por sua vez muito mais me interessam
do que tratar de compreender alguma “jeune parque”
cujos desígnios
não há por que negá-lo e mais a esta altura
sempre foram para mim para sempre desconhecidos
não: incognoscíveis. Fiai o que quiserdes, na suave companhia
de vossas viscosas irmãs: confesso que vivi entremeado
a tais fibras o que pensei ter querido e o que
vossa caprichosa e parcíssima escolha nelas soube
mais do que sorrateiramente, incognoscivelmente entremeter.
Ainda, e por falar nas palmípedes três,
convenhamos: atraem-me mais os olhares e a alma
que os oito nada discretos cavalheiros que observo
enquanto as observo, desnudos todos frente ao mar,
ao abrigo entre as pedras deste reino naturista,
no Abricó (diga-se o lugar, pois), Recreio dos Bandeirantes,
Rio de Janeiro, Brasil. Hoje
a praia está ampla, o mar turbulento do outono
perde agora em sua cotidiana labuta
contra a areia. Regozijemo-nos.
Os nudistas, sem dúvida, mais do que
as graças, digo, as garças, me interessam:
enquanto observo estas e penso naquelas (Maillol,
volta ao Museu, não me ocupes neste instante),
confiro se alguém há em ereção, ou se algum par
de casuais amantes neste instante se retira da areia
para esconder-se ainda mais entre as grandes pedras
por líquens cobertas e coroadas por bromélias
e por cujos dorsos escorrem suculentas como sêmen
natural, para dedicar-se, ora está óbvio,
a uma não menos natural seção de homo-sexo,
nefanda segundo o vulgo e, aqui, sur mer,
nada, nada surpreendente:
ninguém que proclividade afim não professe
a esta praia vem, e mais num dia de mar-alto
e vento não tépido, frio, e mais: constante.
Somos previsíveis como a presença das garças
que na extensa língua de areia escavam os seus pitéus.
Os meus são esses que se aninham entre as pedras
por um tempo variavelmente curto ou longo
e que menos do que as garças,
que não as graças e suas parcas primas,
me interessam. Há pouco disse o oposto
e agora percebo tal estratégia do dizer,
que como é sabido muito fingem os poetas
e, por que não, também neste inconclusivo texto
(falso: basta de mentiras).

Também nas duas extremidades visuais
há costões ao oceano expostos:
perfazem algo como um enorme anfiteatro
no qual de fato nada acontece: aqui há monólitos
quase a pique e tão gigantescos que a linha da estrada
em sua silhueta desaparece, quando vistos à distância.
Este é o Mar dos Atlantes num cenário deles digno:
aqui poderiam engalfinhar-se em sua guerra. Mas não.
A ele voltei já faz um tempo, e tanto como à dita
“água do meu pensamento” (já não sei o quanto
nela há de verdade ou se a emana caso exista:
água lustral ou mero torvelinho liqüefazente?
E existirá de fato? Em caso positivo,
nela prossigo imerso ou naufragante?).
Há vinte e cinco anos, em Santa Bárbara, em
outro poema, houve falésias, e um convite que jamais
faria de novo a alguém, nem às garças nem às graças,
nem a nenhum sequer amante: já mais. Je vous en jure.
Minha viagem pela matéria hoje é solitária.
Observo
novamente
as ditas garças.

Sobre a areia em trânsito para o mar
ainda me obceca a impermanente escritura cuneiforme
dos tatibitates pèzitos das gratuitas
aves.

 

 

HORÁCIO COSTA atualmente leciona literatura portuguesa na FFLCH-USP. Publicou a antologia Fracta (2004), Homoeróticas e Paulistanas (2007) e o livro de ensaios Mar abierto: ensayos sobre literatura brasileña, portuguesa e hispanoamericana (2001). Como tradutor, verteu para o português Octavio Paz, César Vallejo, Xavier Villaurrutia e Elizabeth Bishop. Organizou o evento A palavra poética na América Latina, avaliação de uma geração (São Paulo, 1990).

 


 

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