|
revista |
editora | links | ||||||
|
|
carmen lucia tindó secco algumas tendências da poesia cabo-verdiana hoje
Pretendemos, com base em alguns poetas de Cabo Verde, refletir sobre o espaço da poesia pós-colonial no Arquipélago, tendo em vista o desencanto contemporâneo resultante de distopias sociais. Nossa intenção é investigar se, a par destas, as produções poéticas caboverdianas se instituem como “lugares revolucionários”, afirmando-se como escritas de compromisso estético e político. Desejamos, ao fim e ao cabo, verificar se, embora estilhaçadas, as consciências poéticas atuais se oferecem, nessas literaturas, como “espaços de novas memórias”.
Após a euforia da independência, no final dos anos 80 e início dos 90, as novas gerações de escritores caboverdianos, em seus textos literários, começam a denunciar o vazio cultural no Arquipélago, além de constatarem que a fome e a miséria não foram extintas. Delineia-se um forte desalento em relação às ideologias que animaram a poética da Independência.
Em 1991, a publicação de Mirabilis: de veias ao sol, antologia organizada por José Luís Hopffer Almada, que reúne os “novíssimos poetas de Cabo Verde”, divulga a produção poética caboverdiana pós-25 de Abril. O não cumprimento das promessas de justiça social, depois da Independência, gera um clima de decepção. Entretanto, lembrando-se de que, mesmo no deserto, cresce uma planta chamada mirabilis, surge a geração mirabílica, oferecendo-se como resistência poética a esses anos de “mau tempo literário”. Na apresentação da antologia, seu organizador, José Luís Hopffer Almada, define a profissão de fé desses novíssimos poetas, cuja poesia empreende uma profunda reflexão sobre o presente caboverdiano:
Fustigada pelos ventos (da incompreensão!), pelo sol (da hipocrisia!), pelos tempos vários do mau tempo literário, desse tempo querendo-se vegetação literária. No deserto, cresce a geração mirabílica, feita signo na margem desértica do mar. De veias ao sol. As veias da indagação. As veias alagadas da terra das estradas, da poeira do dia-a-dia, do massapé dos campos, do lixo dos caminhos suburbanos, do desespero recoberto de moscas, baratas e outros vermes. As veias loucas do mar, do marítimo lirismo dos dias afogados nos ciúmes dos montes. As veias, veias de vida, de morte, de desespero, das quatro estações místicas do que se medita no refúgio do silêncio. Veias do camponês e da enxada neste coito de séculos com a terra. Ao sol, hipócrita por entre a bruma e os cerros. Sol, signo de luz. Sol que ilumina. Sol que queima e ofusca o caminhar. Sol dependurado da perseverança secular. Mirabilis – de veias ao sol. Geração mirabílica indagando o sol. “No Deserto cresce a Mirabilis”. Diz o poeta Orlando Rodrigues. “Embora de veias ao sol”. Adita Rodrigo de Sousa, para que das imagens do deserto cresçam as palavras da nossa geração e delas reste, ao menos, o cadáver da poesia. Sugere Mito, o poeta plástico, ou que o cadáver se metamorfoseie em flor e espinho, num panorama azul, de onírico, sugere Mito, o plástico poeta. Uma única rosa é a Mirabilis, e dela queda um sol de sangue. O sol da poesia mirabílica.
Entre os poetas da geração mirabílica, há Dina Salústio, Vera Duarte e outras que aprofundam essa vertente da poética feminina caboverdiana. O mar, entre outros temas, é também recorrente na produção poética dessas mulheres.
As metáforas marítimas sempre estiveram presentes nas composições poéticas de Cabo Verde, mas, nas primeiras gerações, o oceano aparecia como elemento enclausurador. As mulheres encontravam-se presas ao cais, esperando, submissas, os amantes, filhos e maridos que saíam para a pesca da baleia, emigravam para a América ou iam estudar em Portugal. O mar como magma da memória e do inconsciente feminino é uma conquista da novíssima poesia caboverdiana que persegue os labirintos interiores do desejo da mulher-poeta. Representante dessa poética atual é Vera Duarte, cujos versos assinalam o direito feminino à eroticidade do próprio corpo e da voz:
Fechemos as cloacas fétidas da cidade e deixemos inebriarem-se os ares de recendidos perfumes estivais. É o preço da liberdade. Palmeiras ao sol e longas praias de areia molhada a manterem desperto o fervilhar anímico das paixões. A voz da libido. Em toda a sua violência incontrolável.
Vera inaugura com sua poesia um universo poético assinalado pela “cumplicidade das fêmeas”, no qual a mulher almeja ser sujeito de seu próprio desejo:
... choro da dor de me saber mulher feita não para amar mas para ser amada. Choro porque sou e amo. (...) Sinto-me escravizada, tiranizada, violentada. E meu ser nascido livre se revolta. (...) Por isso quero desvendar os universos proibidos e purificar-me.
Com essa poética de contestação da submissão feminina, o eu-lírico rompe com a idéia do “cais da saudade” (“cais da sôdade”, em crioulo) que sempre aprisionou as mulheres caboverdianas ao espaço circunscrito das ilhas. Assumindo-se também narrador, o sujeito-poético mergulha em uma poesia confessional, autobiográfica que instaura uma “escrita de mulher”. Uma escrita que se rebela contra a longa espera das “mulheres-sós de Cabo Verde” a que se referiu a professora Maria Aparecida Santilli, fazendo uma crítica ao machismo caboverdiano.
Nos poemas de Vera Duarte, a mulher não se encontra na terra, mas flutuando no imenso mar, símbolo de sua memória e do inconsciente coletivo de seu povo:
... eu penetrava no mar, um mar verde e lodento que se me escorregava debaixo dos pés e me causava náuseas. Com a água pela cintura e os braços em arco, passava por entre os barcos de minhas viagens de antanho, marinheiro descobridor do mundo...
Realiza, desse modo, uma travessia imaginária em relação às próprias origens. O mar é o local da busca da identidade caboverdiana, mas é também o lugar da liberdade existencial onde a poesia feminina se descobre. Uma poesia dialógica, à procura do amante e do leitor, em que os versos, em cópula constante, fazem a libido se derramar e brotar do próprio ato de produção da leitura que se abre a reflexões metalingüísticas: Para que servem as palavras? Para flutuar, perdida à mercê delas?
A mulher-poeta se quer senhora não só de seu corpo, mas também de sua linguagem, porque toma consciência de que só pode pensar o mundo e a si com o domínio das palavras. Essa é uma tendência da poesia africana contemporânea. Não só em Cabo Verde, como em Angola e Moçambique, vozes poéticas femininas e masculinas enveredam pelo caminho da metapoesia e buscam um novo lirismo em que a mulher se torna fiadora e tecelã de seus próprios desejos, sendo amada e, ao mesmo tempo, amante, capaz de conduzir e expressar seu erotismo e seus sonhos, conquistando seu próprio destino de mulher.
Além de Vera Duarte, destacam-se também entre os mirabílicos: Manuel Delgado, Canabrava, David Hopffer Almada, Kaliosto Fidalgo, Orlando Rodrigues, Euricles Rodrigues, Alzira Cabral, Alberto Lopes, Ana Júlia Sança, Binga, José Cabral, Luís Tolentino, José Luís Tavares, Paula Martins, Vasco Martins, José Luís Hopffer Almada, entre muitos outros. Essa geração reúne tendências bastante variadas.
Segundo Simone Caputo Gomes, as questões consideradas como tradicionalmente ligadas à crioulidade ou caboverdianidade – a seca, a chuva, a fome, o trabalho, a pesca da baleia, o mar, a insularidade, a emigração – são retomadas em outro contexto, em conjunto com novas questões como as lutas e as desigualdades sociais vistas num contexto pós-colonial, o desencanto, o desespero, a solidão, a morte, a existência pessoal, o humor, a ironia, a indagação de Deus, visando conjugar aspectos nacionais e universais.
Na novíssima poesia caboverdiana o mar não é mais visto como prisão, espaço de evasionismo ou metáfora utópica da liberdade social. Apresenta-se, agora, como território de reflexão, de mergulho nas profundezas interiores e existenciais, como local de passagem e de abertura para o mundo. Como declara Manuel Delgado, (...) venho do mar / e o meu amplexo / rodeia a cintura do mundo.
Os poetas dessa geração têm consciência do vazio cultural e social existente no Arquipélago, após a Independência. José Luís Hopffer Almada alerta para o perigo dos sonhos fenecendo, apodrecidos. Outros poetas efetuam esse tipo de denúncia, utilizando-se do humor e da ironia para evidenciarem a falência dos antigos ideais libertários.
Apesar do clima de descrenças, há também os que defendem o resistir pela ação da palavra poética, metaforizada na rosa mirabílica a desafiar o sol e o deserto. Canabrava, por exemplo, com lucidez política, propõe uma “nova largada”:
Na hora H
da largada Esse poema, em intertextualidade com o poema “Nova Largada”, de Corsino Fortes, ressemantiza a imagem do partir e o tema da evasão caboverdiana. O diálogo intertextual é, nesse texto, tríplice, pois, além de retomar versos do célebre poeta caboverdiano Corsino Fortes, faz a interlocução, também, com o poema “Adeus à Hora da Largada”, do angolano Agostinho Neto. Nesse texto, há a denúncia da dilaceração decorrente do tráfico negreiro. No de Corsino, o sujeito poético reagencia o tema da viagem, concebendo-a como partida e regresso; o sujeito poético vai carregado do sangue da terra e dos marulhos do mar, pretendendo voltar, já que seu polegar ficou plantado nas ilhas. No poema de Canabrava, o partir já é regresso. O sujeito poético está aberto aos oceanos do mapa-mundi; sabe da estreiteza cultural das ilhas e tem consciência de que o progresso precisa ser buscado fora de Cabo Verde, mas com “suor & sacrifício”. Propõe, assim, um partir que já é regressar, ambos prenhes de “pão & suor”, porque tem clareza de que a liberdade não pode ser conquistada só com fonemas, mas também com trabalho árduo e luta diária. A produção de Canabrava anuncia uma poiesis não mais apenas preocupada com a realidade caboverdiana. Quer uma poesia que singre os mares de todos os oceanos, pois compreende a urgência e a necessidade de um diálogo literário universal para que a poesia de Cabo Verde não se insularize e não fique fechada em si mesma. Intui que, em tempos neoliberais, a poesia precisa se irmanar com a de povos irmãos para não sucumbir às pressões do mercado.
Concluindo, observamos, entre outras, algumas das invariantes da atual poesia caboverdiana de língua portuguesa: o tema do erotismo, do amor, da amizade; a opção pela metapoesia; a reinvenção do passado através do trabalho criativo da memória e da linguagem poética.
Notamos que, diante do desencanto advindo do enfraquecimento e despolitização das utopias revolucionárias, os poetas passaram a construir novas imagens e metáforas voltadas para o interior do humano, numa procura de politização dos sentimentos. O compromisso, dessa maneira, deixa de ser um pacto tramado com instâncias exteriores aos homens e passa a penetrar na interioridade destes. Transforma-se, assim, em uma “política dos afetos”, espaço intervalar entre indivíduos capazes de criar uma cidadania ativa, uma vez que a liberdade não mais se apresenta como algo messiânico vindo de fora, mas como um processo tecido entre múltiplas e diversas subjetividades.
|
|||||||
|
|||||||||
confraria do vento |
|