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josé luis hopffer c. almada
estes poetas são meus
(alguns marcos na poesia cabo-verdiana
contemporânea)
Sinais de pluralismo estético
Assiste-se no período imediatamente subsequente à liberdade política, de
74, e pátria, de 75, à reconfiguração da poesia cabo-verdiana e a uma
doravante menos negativa recepção das suas experiências de renovação
temática e estética. Tais experiências reforçam-se, em especial com os
livros Pão e fonema (1974), de Corsino Fortes, O Primeiro Livro de Notcha
(1975), de T. T. Tiofe, e mais n’O cântico do habitante, seguido de duas
gestas (1977), do que Caboverdiamadamente construção, meu amor
(1975), de Oswaldo Osório, que se
vêm juntar ao labor pioneiro de João Vário (um dos heterónimos de João
Manuel Varela), iniciado, nos inícios dos anos sessenta, com Exemplo geral
e Exemplo relativo, e prosseguido no imediato pós-independência com
Exemplo dúbio, de 1975, e Exemplo próprio, de 1980. Acrescem ainda a colectânea
Jogos florais 1976 (ICL, Praia, 1977), onde se consagram “a
musa breve de Silvenius” de Arménio Vieira (integrado no seu livro
Poemas,
de 1981, e o vanguardismo surrealista de Jorge Carlos Fonseca, e as
revistas “Raízes” (Praia, 1977-1984) e “África” (Lisboa, 1978-1983), a
marcar os primeiros sinais de um vivenciado, senão assumido, pluralismo
estético.
Isso ocorre, não obstante a muito provisória hegemonia da poesia
cantalutista, especialmente na sua perversão panfletária, e a continuidade
da tradição claridosa, mais na prosa de ficção, magistralmente renovada
por Teixeira de Sousa em “Ilhéu de Contenda”.
Na verdade, esse tempos primevos do primeiro quinquénio da independência,
caracterizam-se pelo terçar de armas estéticas e pela coexistência, nem
sempre pacífica, entre diversas tendências estético-ideológicas
(construtivistas, críticas, de indagação metafísica ou existencial ou
deliberadamente desenraizadas de um chão assumidamente cabo-verdiano).
Assiste-se, assim, nesse período, à plena e desinibida aparição e/ou pleno
reconhecimento de diversas correntes radicalmente modernas, por vezes
assumidamente e/ou satiricamente distanciadas do telurismo identitário ou
do comprometimento político-social, como estirpes poéticas cabo-verdianas
de pleno direito, a par da consagração estética da poesia nacionalista da
Nova Largada e das tentativas da sua reformulação estético-ideológica para
os tempos das primícias de um “homem novo”, sujeito que se quer
consciente, mesmo que a contragosto, das mudanças sociais propostas pela
vanguarda política, o PAIGC/CV, tal como intentou fundamentar o espírito
lúcido e intelectual orgânico que era Manuel Duarte (“Breves notas sobre a
literatura cabo-verdiana”, Raízes, nº 21, Praia, 1984).
... E indagação de novos paradigmas
A experiência poética universalizante fora reencetada por João Vário com
Horas sem carne, livro de poesia publicado em 1958/59 e repudiado, pouco
tempo depois, pelo autor, por alegadamente resultar da “má factura de um
poeta neófito”. A despeito da sua retirada do mercado, excertos e poemas
do mesmo livro foram integrados (à revelia do autor, diga-se) em
antologias marcantes como Modernos Poetas Cabo-Verdianos, de Jaime de
Figueiredo, ou No Reino de Caliban, de Manuel Ferreira. A atestar a
valoração estética positiva dessa poesia por parte desses antologizadores,
mesmo se, por vezes, considerada “defasada” de uma realidade estritamente cabo-verdiana, tenham-se em conta as seguintes palavras de Jaime de
Figueiredo: “João Vário nos primeiros passos ainda da realização poética,
surge revestido de forte armadura de conceitos de ordem metafísica, e
entre bela construção de palavras, e imagens, debate-se em íntimas
contradições, cuja problemática profunda não se desprende de válido
conteúdo existencial” (Prefácio a Modernos Poetas Cabo-Verdianos, 1961).
Seguem-se os vários Exemplos, dados a lume, desde os princípios dos anos
60, primeiramente na revista coimbrã “Êxodo” e depois em livro, num total,
até agora, de nove dos doze previstos e datando o primeiro livro, o
Exemplo geral, de 1966. Trata-se de um conjunto de doze longos poemas
narrativos, de interpretação ontológica, para usar a terminologia ensaística de T. T. Tiofe, organizados em
“Cantos”, abertos e fechados por
uma “Ode”. Dois dos Exemplos (Exemple restreint e Exemple irreversible)
foram escritos em francês, estando previstos dois volumes em inglês
(European example e American example).
A experiência universalizante valeu ao poeta João Vário a ostracização por
parte da generalidade dos literatos e ensaístas nacionalistas e teluristas
cabo-verdianos da sua geração, tendo sido apodado de poeta desenraizado por
uma grande parte da crítica académica, com destaque para os universitários
Russel Hamilton e David Brookshaw, e da crítica impressionista da geração
dele. Críticas que João Manuel Varela parece compreender e, até, aceitar,
quando na introdução a O Primeiro Livro de Notcha escreve, pela pena de T.
T. Tiofe, que até então tinha dado a público, sob o pseudónimo de João
Vário, “uma poesia que nada tinha a ver com os problemas específicos de
Cabo Verde”. Na verdade, T. T. Tiofe repudia veementemente essas críticas,
a que, aliás, respondera a priori iniciando, em 1961, a escrita da obra
que a sua geração alegadamente dele aguarda ou aguardava, pouco depois de
ter começado a elaboração dos Exemplos. A escrita das duas obras
iniciou-se, assim, quase simultaneamente, no dealbar dos anos sessenta,
como explica o próprio autor no prefácio a O Primeiro Livro de Notcha, e
reitera em algumas das Epístolas ao meu irmão António.
Quanto ao qualificativo negro greco-latino constante da fala chã e
telúrica de Bia d’Ideal, reprodutora da erudição de Corsa d' David (um
quase pseudónimo de Corsino Fortes para a poesia e a escrita em crioulo),
no poema “Carta d' Bia d'Ideal” do livro Pão e fonema, de Corsino Fortes),
cremos ser possível constatar nela uma irónica censura a Junzin, agora
chamado João Vário ou T. T. Tiofe, por parte da mãe Bia, pelo seu
alegado distanciamento das coisas cabo-verdianas e da “água da nossa
secura”, ao mesmo tempo que a voz erudita do poeta Corsino Fortes
reconhece a permanência das fontes e das ressonâncias islenhas na poesia
certamente de T. T. Tiofe: “Junzin! Até na boca de Soncente/ bô nome agora ê
Vário ô T. T. Tiofe/ E Corsa de David dzê/ C’ma bô ê um negro negro
greco-latino/ Ma! Dvera dvera/ As ondas/ já trepam/ os degraus do teu
poema/ E quebram no violão da ilha/ Tectos da Europa/ sob as nossas
cabeças”.
Reconhecendo que Vário foi “vítima inicial de uma injusta e generalizada
acusação de desenraizamento”, explica Arnaldo França tal atitude “por os condicionalismos epocais marginalizarem qualquer não comprometimento
evidente à autonomia nacional”.
Ultrapassados esses constrangimentos podia Oswaldo Osório homenagear o
poeta João Vário em Clar(a)idade assombrada: “ó vár…/ varão ilustre que
cavalgas o dorso do mundo/ nosso epos após ti!”.
A cultura ocidental como arma miraculosa
Referindo-se à universalização (no sentido de destelurização na temática,
nos motivos e/ou na linguagem) proposta e praticada pelos heterónimos
poéticos de João Manuel Varela, bem como por uma franja significativa da
poesia cabo-verdiana actual, diz T. T. Tiofe numa das epístolas ao seu
irmão António (“Segunda Epístola ao meu irmão António
– A propósito de
Pão
e fonema, de Corsino Fortes”, in O Primeiro Livro de Notcha e
O Segundo
Livro de Notcha, Edições Pequena Tiragem, Mindelo, 2001):“sirvo-me da
cultura ocidental como duma arma miraculosa, como dizia Césaire, para
elaborar a partir de coisas nossas, de raízes específicas, uma poesia de
interpretação ontológica ou uma poesia cabo-verdiana de vigor novo. E para
ter uma consciência aguda deste mundo ou deste século. Admito, como Senghor, que tudo é mais fecundo adentro duma tal mestiçagem cultural”.
Dissecando especificamente a poesia do heterónimo que se ocupa da poesia
ontológico-metafísica, prossegue o autor na Oitava epístola ao meu irmão
António: “O esforço de Vário, quando escreve, consiste em ter presente,
tanto quanto possível, no seu espírito ou na sua arte poética, toda a
tradição (ou as técnicas significativas) da poesia universal”. Num outro
momento da mesma epístola e prosseguindo na análise da poesia de João
Vário, escreve T. T. Tiofe: “Essa poesia ontológica surpreendeu muitos
compatriotas ou não foi, simplesmente, aceite (…) embora como frisei
algures (cfr. entrevista a Filipe Correia de Sá, Voz di Povo, 1992)
espante que num país, como o nosso, com um passado de mortes, pela fome,
pela doença, uma história de múltiplas carências várias, tal como o
próprio continente, não tenha visto de imediato que isso levava,
naturalmente, a reflectir sobre a vida, o destino, a mortalidade, numa
palavra, sobre a condição humana, que tudo isso levaria a seu tempo a uma
criação literária de índole ontológica, que poderia dar a impressão de
nada ter a ver com o arquipélago, mas que, no entanto, estaria a ela
ligado por essa reflexão assim suscitada. Uma problemática que provocaria,
algum dia, o aparecimento dum poeta, duma poesia dessa natureza no seu
seio. Tive a má ou a boa sina, enquanto João Vário, de ser o primeiro
desse tipo de poeta, de forma mais manifesta, porque já tenho dito que tal
também é o caso da poesia de Osvaldo Alcântara (…)”. Na alocução que
proferiu, em Paris, em 1984, por ocasião do Colóquio Internacional sobre
Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian, João Manuel Varela considera o
“período actual”, subsequente ao chamado período de cantalutismo, como de
“procura de
inefável identidade”. Segundo o exegeta, é característico desse período
uma poesia, da qual “dimana um tom novo” que “nada tem a ver com os
problemas específicos de Cabo Verde” e que “começa a pensar Cabo Verde,
não mediante interpretações limitadas a dados geopolíticos restritos,
circunstanciais ou locais”, mas no seio da cadeia de peripécias
ontológicas, que fazem o homem universal pelas pulsões gerais, que não
pela veracidade transitória, imposta pelas conjunturas, mesmo inóspitas
e falazmente definidoras de individualidade ou identidade” (“Artefactos
poéticos e Arte poética na poesia cabo-verdiana. Reflexões sobre os
últimos cinquenta anos da poesia cabo-verdiana” in Literatures Africaines
de Langue Portugaise, Actes du Colloque International, Fundação Calouste
Gunbenkian, Centre Culturel Portugais, Paris, 1984). Assinala, finalmente,
o mesmo autor na “Oitava Epístola ao meu Irmão António
– Dos Desacertos da
Crítica”(in obra supra-citada): “há já alguns anos que muitos patrícios
começaram não só a aceitar esse tipo de poesia, como a praticá-la. Em
suma, mudou-se de paradigma”.
Numa entrevista, estruturada em forma de ensaio, concedida a Danny Spínola
(“Uma Entrevista Possível”, in Evocações, INBL, 2002) debruça-se João
Vário especificamente sobre a questão da linguagem na poesia constante de
Exemplos: “Para a longa poesia narrativa, tal a minha, como geralmente para
outras formas de criação de certa extensão, as dificuldades surgem no
essencial ao nível da articulação, da textura, que deve criar variação e
diversidade para evitar a monotonia, ou a linearidade narrativas, que
podem desbotar ou sufocar o texto; os ingredientes usuais do verso devem
ser trabalhados na perspectiva da arquitectura global da obra, que não
deve ser fruto apenas da palavra, por mais sedutora ou bela que seja; o
suporte mais fiável e mais sólido para esse tipo de poesia deve ser uma
reflexão, presente em cada página. Esta reflexão estabelece os alicerces
dos versos, fornece-lhes o léxico e o ritmo, as unidades estruturantes de
som e sentido”. Prossegue João Vário na mesma entrevista: “Estou
convencido de que é neste tipo de poema que o extracto das ideias
metafísicas se apresentam como verdadeiramente crucial, porque é um motor
ou promotor dos nexos e do temperamento órfico do discurso, quando os
restantes extractos dão mostras de estagnação, de esgotamento e de
impasse, apesar da pesquisa de diverso teor que tiver preparado a escrita
(…). Como se depreende da obra de grandes mestres do longo poema
narrativo, Homero, Virgílio, Dante, Milton, Eliot, Pound, Perse, a
reflexão é o fio da meada: dita a regra de ouro da construção, da coesão,
do comprometimento entre a unidade e a variedade, e alinha tudo, uma
espécie também de fio-de-prumo. Chamei a esse fio de meada e esse fio-de-prumo metafísicos, no caso da minha poética, a
cogitação irrepreensível”.
Desenvolve o poeta: “O que tinge a voz de um poeta tão originalmente (…) é
sobremaneira o que a reflexão faz do léxico ou o que exige que ele faça, a
inesperada metamorfose que ela opera com palavras comuns, a bem do
esplendor e de uma luz que não se esperava que fosse própria do homem”.
Conclui o poeta João Vário: “A cogitação irrepreensível, que também
recolheu todos os prefácios aos mais diversos sortilégios, porque é assim
que, com intermitência, pode decalcar o texto do destino, a estupefacção
mais barroca possível para semear a sonoridade metafísica, a versão que o
poeta privilegia da verosimilhança”. Quanto ao instrumentário imagético
utilizado na obra, diz o autor: “como é feito o utensílio, a metáfora pode
ser inferido do que se tem dito: é feita, por via de regra, de palavras abstractas fornecidas por uma meditação sobre o mal, o sofrimento, o
perdão (ou a misericórdia) e o carácter imponderável da verosimilhança,
esses meus temas primordiais. Ou seja, há uma estrutura gnoseológica
produzindo e manipulando o estado da metáfora, ou da semântica, se
preferir. Quando não é assim, é porque por amor da beleza, não quis que a
opacidade do mundo passasse à frente da leveza do lirismo e da primeira
sensibilidade, a que tudo entende atravessando esse miolo alegre da
consciência e do tempo”.
Indagação existencial e destelurização da linguagem literária
A mudança de paradigma a que acima se referia João Manuel Varela (T. T.
Tiofe) tornou-se, na actualidade, opção consciente e deliberada de ruptura
quer com a mundividência telúrica enclausurada do homem insulado na sua
resignação, quer com a palavra rudemente imprecativa de alguma rebeldia
cantalutista (na acepção que lhe é também atribuída por João Manuel Varela
como “artefactos poéticos” destituídos da arte poética intrínseca à
verdadeira poesia), quer ainda com a linguagem especificadora, na sua
pertinência identitária, e oficinalmente depurada na sua chã indumentária,
no seu “vocabulário concreto” do português literário usual na poesia cabo-verdiana de feição telúrica.
Tal opção representa um dos signos maiores da nossa contemporaneidade
poética e é por demais visível na poesia de vários vates cabo-verdianos.
Desse
assíduo cultor da revisitação da cultura greco-latina que é Arménio
Vieira, a partir sobretudo da sua recusa em participar na nojenta
gastronomia poética que seria a escrita de ortopoemas, transitivos
na sua degradação utilitária ou instrumentalização político-ideológica.
Não obstante a consciência de que setembro dói e sangra, as
opções estéticas de Arménio Viera decorrem da descoberta de que "ser
poeta a sério implica uma espécie de suicídio" e que "é pela
metaforização do discurso que se salva o pensamento". A poesia mais
significativa dessa ruptura e tomada de consciência metacrítica (como a
caracteriza José Vicente Lopes no estudo "Novas Estruturas Poéticas e
Temáticas na Poesia Cabo-Verdiana", in "Ponto e Vírgula”, nos 16 e 17,
de 1986) consta sobretudo dos cadernos "A noite e a lira", "A musa breve
de Silvenius" e "Poesia Dois" do seu livro Poemas (1981) e
vem sendo retomada nos poemas dispersos dados posteriormente à estampa.
Anote-se que a poesia transitiva, isto é, socialmente comprometida,
constante do caderno "Poesia Um" ou dispersa e anterior a 1971,
caracteriza-se por também fugir ao usual cânone estético da poesia
cabo-verdiana, quer pela forte presença da ironia e do sarcasmo, como
meio estético de trangressão, quer pelo papel que nela desempenham a
aliteração, o desencanto metafísico e o jogo com o absurdo, mesmo quando
recorre a mitos greco-latinos, dessacralizando-os. De interesse é também
o parentesco linguístico, estético-formal e filosófico entre alguma
poesia de interpretação ontológica de Arménio Vieira (por exemplo,
"Canto do Crepúsculo" e "Homenagem a quem…", e a poesia de João Vário.
De Oswaldo
Osório, que segundo Arnaldo França é "um dos mais lídimos representantes
da moderna literatura cabo-verdiana" ("Os loucos poemas de amor e outras
estações inacabadas de Oswaldo Osório", in "Artiletra", no 75, Janeiro
de 2006). Outrora cultor da conjugação do cantalutismo (no sentido de
poesia de exaltação da terra cabo-verdiana e do seu habitante) e do
incansável labor da linguagem, inserta mais em Cântico do habitante,
seguido de duas gestas do que em Caboverdiamadamente construção,
meu amor (poemas de luta). Oswaldo Osório alia, de forma marcante,
nos livros Clar(a)idade assombrada e Os loucos poemas de amor
e outras estações inacabadas, a depuração e a concisa lapidação da
palavra, a uma meditação aturada e, simultaneamente, saturada de
descrença e de um cepticismo, que, permanecendo entre os estertores de
um ainda sobrevivo e, por vezes, eufórico optimismo, sobrevoa a
dialéctica das convulsões e da passagem do tempo, da idade e das utopias
(como se verifica, por exemplo, nos poemas "signo poético",
"quotidiano", "horoscopografia", "quando formos passado", "país",
"crónica do cavaleiro de má fortuna"). Cabe nessa mundivisão, a eufórica
e comovida saudação de "julho nosso orgulho" e da liberdade pátria ("bom
dia, cabo verde") e a, por vezes disfórica, interrogação dos novos
tempos, dos novos desapontamentos, do Oswaldo Osório de Clar(a)idade
assombrada e das "estações inacabadas". Por exemplo, em “país”, das
“estações inacabadas II”: “este país dói-me:/ como uma faca de dois
gumes/ atravessada no coração/ se rio, alcanço/ se choro, fujo/ alvoroço
bêbedo/ entre o não-saber e um copo/ ou intervalo de que fujo/ resisto a
quem ministra o ranço”. Ou em “quotidiano”: “II (…) com o verde ocupado
pelo seco castanho/ que resta da esperança de antigamente? (…) VI (…) E
todavia, cabouqueiros que fomos deste mundo/ quem, de justas
consciência, ousaria acusar-nos de antropofagia?”. Ou ainda em “crónica
do cavaleiro de má fortuna”: “aquém
–
espelho engano mágoas desventura/ do lado de lá a coroação prazeres a
boa estrela/ tudo imensa fraude passageiramente real”. De todo modo, a
herança permanece intacta, pois que “a chama que foi ardente/ não se
arrepende de ter brilhado”, como conclui o poeta.
A propósito
do carácter multifacetado da poesia de Oswaldo Osório, escreve Danny
Spínola: ”O percurso poético de Oswaldo Osório equaciona-se em três
vertentes diversificadas, correspondendo a três níveis semiológicos
(semióticos): positivo-nacionalista, em que sobressai principalmente um
tom eufórico; contestatário e amargo, com um jogo de disforia/euforia;
contemplação pura ou constatação, correspondente à nomeação de valores
humanos e materiais com um certo pendor filosófico”.
Indagação identitária e universalidade literária
A
preocupação com o domínio dos meandros e das nuances da língua de labor
literário e da linguagem literária como signo distintivo do discurso da
arte na literatura esteve assaz presente na escrita literária
cabo-verdiana. É o que denotam a obsessão perfeccionista dos nativistas,
hesperitanos e outros pré-claridosos, e a busca pelos claridosos de uma
linguagem e de uma estética em língua portuguesa identitariamente
sincronizadas com as nossas raízes crioulas (de que deveriam ser
indícios, vestígios, testemunhos e repositórios sociológicos,
antropológicos e linguístico-literários). Tal afirmação não desvaloriza
o facto de a linguagem e a estética terem sido descuradas por um certo
cantalutismo, mais peremptório na sua premência e veemência combativas,
tendo atingido o limiar da catástrofe estética no panfletarismo do
pós-25 de Abril e nos actuais e apressados escrevinhadores de
palavras em escadinhas.
Por outro
lado, a mudança de paradigma que vem ocorrendo nas letras nacionais
evidencia-se fundamentalmente no plano da linguagem e tem suscitado
também mudanças de monta nas estirpes poéticas socialmente engajadas e
comprometidas e com uma motivação e temática especificamente
cabo-verdianas, numa tradição, aliás, que remonta a ícones da poesia
cabo-verdiana, como Gabriel Mariano.
Tais sinais
verificam-se, fundacionais, na poesia bíblico-telúrica, de fortes
ressonâncias épicas, constante de O Primeiro Livro de Notcha e
O Segundo Livro de Notcha, cujo autor, T. T. Tiofe, vem,
aliás, e como assinalado no presente texto, desde há anos, chamando
repetidamente a atenção, em circunstâncias as mais diversas, para essas
questões, intentando, até, teorizá-las, quer a partir da obra de T. T.
Tiofe e de João Vário, quer da obra de outros poetas, em especial de
Corsino Fortes (neste caso, numa postura deliberadamente polémica,
conquanto esclarecedora).
Publicado,
na sua primeira versão e sem o "Discurso V", em 1975, O Primeiro
Livro de Notcha foi reeditado em 2000 como parte integrante de O
Primeiro Livro de Notcha e O Segundo Livro de Notcha. A publicação
do livro provocou, na altura, um grande alarido no seio da crítica,
sobretudo porque João Manuel Varela, agora utilizando o heterónimo
T. T.
Tiofe,
parecia distanciar-se da escrita de interpretação ontológica,
considerada desenraizada, de João Vário.
Concluindo
A
pluralidade de estirpes poéticas afere da plena maturidade literatura
cabo-verdiana, a qual também se evidencia no descomplexado
auto-reconhecimento e na plena assunção da nossa identidade literária,
que não mais carece de ver confirmada a sua legitimidade pela unicidade
da constante e, por vezes, castradora referência a temáticas, a motivos
e a um dizer tido por especificamente cabo-verdianos.
Assim,
construída a identidade literária cabo-verdiana, graças fundamentalmente
ao labor dos nativistas e hesperitanos, dos claridosos das várias vagas
e dos émulos da Nova Largada – fautores, em tempos históricos diferentes
e com linguagens e estéticas diversificadas, da independência literária
cabo-verdiana
–, a
questão da cabo-verdianidade explícita ou assumida nos textos
literários, quer nas suas vertentes telúrica e combativa, quer nas suas
vertentes existencialistas, de indagação metafísica e lírica, torna-se
cada vez menos um problema ontológico para um número crescente de
escritores e, especialmente, de poetas cabo-verdianos. Uma franja
representativa dessa categoria, aqui presente a título exemplificativo,
quer também ser compreendida como criadores, tout court, no
sentido de artífices da linguagem, cuja única missão, se alguma missão
lhes cabe, tem como essencial fundamento ético e estético a liberdade
plena de criação e, no plano da obra, consiste na disseminação de
máscaras da condição humana, quer ela se situe em Cabo Verde, na
Diáspora, na "Macaronésia", no Antigo Egipto, ou nenhures no mundo ou na
morte, desde que seja um algures da resplandecência do verbo.
JOSÉ LUÍS HOPFFER C.
ALMADA nasceu a 9 de dezembro de 1960, em Santa Catarina, Ilha de
Santiago. Licenciado em direito pela universidade Karl Marx, de Leipzig.
Sob o pseudônimo de Zé di Sant´iagu, publicou À sombra do sol, 1990, e
Assomada Nocturna, 1993.
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