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claudia roquette-pinto


entre lobo e cão

 

 

 

O cavalo de espuma se ergueu sobre as patas traseiras e escoiceou o ar, uma e outra vez. De início branco, seu pêlo lentamente escurecia, enquanto a crina golpeava, ritmada, antes de desfazer-se pelas pontas, no vento. O cavalo agora era negro, e novos cavalos subiam, verticais, do mar revolto, que estourava na areia em socos cheios de fúria, debaixo de um céu farrusco, no lusco-fusco de um entardecer de temporal. A mulher e seu vestido estampado também tremulavam naquela ponta de praia, seu rosto voltado para as falésias que despencavam do continente, metade para a curva de areia de onde os cavalos surgiam. O jovem negro, um pouco mais atrás e próximo à água, puxava-a pela mão, insistia:

– Vem...

Enquanto a canoa, feita de madeira clara e tão lisa, flutuava vazia à espera de uma resolução.

Sem uma palavra, ambos compreendiam que aqueles cavalos, feitos inteiramente de espuma, não pertenciam à natureza. Estavam ali criados por alguma força (ou mão) que, externa ao mar, à ventania, a toda a paisagem, a eles mesmos até, deliberadamente invocara ao coração do oceano a sua cota de selvageria, e à sua pele, na forma de espuma, o grão de rarefação necessário para que se formulassem. Obra de magia, sem dono ou nomeação.

Então, quando pela última vez ele tomou-lhe a mão, puxando-a na direção do barco sozinho, ela compreendeu, ao olhar novamente os cavalos, alguma coisa que até ali sempre lhe escapara – úmido peixe veloz, rutilante, a escorregar por dentro dela mesma.

E só assim pôde pronunciar o seu definitivo não.

 

CLAUDIA ROQUETTE-PINTO nasceu no Rio de Janeiro em 1963. Formou-se em tradução literária pela PUC-RJ. Dirigiu, durante cinco anos, o jornal cultural Verve. É autora, entre outros, de Zona de Sombra (1997); Corola (2001 – Prêmio Jabuti de Poesia/2002) e Margem de Manobra (2005). Seus poemas foram incluídos em várias antologias e revistas nacionais e internacionais. Nesta edição, apresentamos um conto inédito do novo livro da autora.
 


 

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