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aderaldo luciano
a volta do filho pródigo e a seara de Saramago (ou
como se deu a demissão do professor Aderaldo)
É verdade, fui demitido. O
processo foi lento, gradual e doloroso. Não que eu esteja assado, mas que
fui sendo assado. Ou fritado, como se diz na política. E o melhor: havia
começado a ler O homem sem qualidades, de Robert Musil. Se vocês já
o leram devem se lembrar de que a frase inicial do romance inacabado, de
mais de mil páginas, é “Uma pressão barométrica mínina pairava sobre o
Atlântico”. Deu-se o contrário comigo e meu romance poderia iniciar-se
assim “Uma pressão apoplética máxima pairava sobre meus santos”. Mas não o
direi, sei da ignorância dos dirigentes do mísero futebol educacional
brasileiro, no qual a educação é apenas um detalhe, mínimo. Nem aqui é
genuflexório para lamentação. Vou apenas relatar minha última noite.
No dia 20 de dezembro, a partir das 19:00h, iniciaram-se as defesas de
monografia de três orientandas minhas. Entre elas, Suzana seguiu a
literatura infantil, a Rosana, a literatura de cordel e a Rosiane
resolvera trabalhar certas intertextualidades no poema A seara de
Saramago, de José Nêumanne Pinto. Contei o fato para o Zé e ele
prontificou-se a ajudar no que fosse preciso. Paraibano de Uiraúna (e os
paraibanos formam uma estranha confraria de quasímodos determinados), ele,
o Nêumanne, é autor do premiado O silêncio do delator e ficou
entusiasmado. Quando soube da defesa, na impossibilidade de se fazer
presente, pediu que Ipojuca Pontes, o cineasta de A volta do filho
pródigo, o representasse à mesa examinadora.
Comentei com alguns colegas o fato de termos o Ipojuca na faculdade e
marcáramos as defesas para a biblioteca, o lugar mais apropriado para a
recepção, em meio a livros, computadores e um pouco de silêncio. Descobri
que o professor Antonio Niddan tinha consigo guardado a sete chaves o
original do roteiro do filme de Ipojuca. Imaginei ser uma boa hora para,
depois de 20 e poucos anos, o material retornar às mãos do dono e convenci
o Niddan a devolver, em solenidade, durante a defesa da Rosiane, o roteiro
perdido. E assim foi feito. Era o nosso último dia letivo e haveria logo
depois uma confraternização entre os alunos do curso de letras, promovida
pelas recém licenciadas.
Terminadas as defesas, atribuídas as notas, todas aprovadas com nota
máxima pela excelência dos trabalhos, aconteceu o que eu não esperava. Foi
projetada na parede uma apresentação em minha homenagem. E ali, no calor
daquela hora, me emocionei e quase fui às lágrimas, aplaudido pelo público
de alunos e amigos. Mas a festa não era minha. Era das graduandas, era do
Nêumanne, era do Ipojuca. Notei que na platéia estava a chefe do
departamento de pessoal da instituição. Quando tudo acabou, os comes e
bebes findos, a biblioteca rearrumada, os equipamentos guardados, os
alunos já partindo para casa, fui abordado por ela parabenizando-me pelo
trabalho, mas escondendo aquele ar indescritível de quem vai produzir uma
nódoa, dizendo querer falar comigo a sós.
E assim se deu o fato às 22:20h, término do último horário de aula do
último dia letivo do ano. Ali, na sala do famigerado relógio de ponto,
recebi o aviso de dispensa, sem precisar cumprir aviso prévio. Naquele
momento desceu sobre mim um alívio por todo o corpo, uma alegria pela
alma, o descanso de um período de atrito e atribulações, de enfrentamento
e boicote, de discussões e bate-boca. Era o fim dos meus salários sempre
atrasados e o início de uma temporada de paz. Se o trabalho é o jugo da
humanidade, os patrões, desde Labão, são, em tempos diferentes, o algodão
doce e a esponja de fel no paladar do professor.
Cumpriu-se o ciclo inexplicável da vida. A volta do filho pródigo
voltou para o seu autor, A seara de Saramago retornou ao berço da
história literária, os alunos encaminharam-se para seus sonhos
individuais, as monografias desceram ao mofo da biblioteca, suas autoras
desceram ao vazio do pós-guerra, a faculdade emergiu na escuridão de suas
lâmpadas e luzes apagadas. Eu voltei para casa, onde me esperava,
indiferente às calamidades e celebrações, O homem sem qualidades.
Nunca mais tive insônia. Boa noite!
ADERALDO LUCIANO é
paraibano, nascido em Areia, poeta, professor de Teoria da Literatura e
cozinheiro amador.
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