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c. d. wright
dos que podem se dar ao luxo de serem gentis
Como ter uma luz às suas
costas que você não consegue ver
Mas mesmo assim consegue sentir
Como se estivesse escorrendo para dentro do seu ouvido.
Os cantos de um cômodo há muito desaparecido.
Ela não está de fato ouvindo o que ele de fato está dizendo.
O brilho vai se apagando do terreno,
mas eles estão seguros do seu caminhar.
Já estiveram aqui mil e uma vezes.
Há maços e maços de botões de rosa e eles são barulhentos.
Andar para a frente não exige esforço algum.
Junto a esta sensação de harmonia,
outra aparece, menos confortável.
Não de estar perdida, mas de não pertencer.
Mesmo assim eles não preenchiam o espaço
com falsas palavras.
Moviam-se sem se falar,
sem se tocar.
Usavam seu próprio cheiro. O ar
era salgado.
Outros estavam longe, vagando.
É uma baía na Nova Inglaterra
fechada para a coleta de moluscos depois do temporal.
A casa não fica longe daqui. Perto do antigo
cemitério.
A maioria das noites não é escura o bastante para se poder ver as
estrelas.
Se um filme ruim, um filme ruim. Se uma refeição ruim,
uma refeição ruim. Se vinho ruim, vinho ruim.
Eles lêem. E vão cedo para a cama. Ele põe uma máscara de dormir.
Ela quer que uma luz fique acesa. Ela quer ler.
Não, diz ele, Desliga isso.
Deixa eu terminar o capítulo.
Desliga, C.
A página, então, diz ela. Você está de máscara.
Eu consigo sentir a luz, ele diz, Consigo senti-la
escorrendo pelo meu ouvido adentro. Além do mais,
ele é categórico,
À noite você apenas dorme
Eu vou viajar.
Perguntei a ele, ao poeta chinês visitante, já que seu trabalho era assim
tão diferente, tão distinto de muito do que eu andava lendo, de autoria de
poetas da China, como ele havia chegado a cultivar aquele estilo de
escrita; então, tive que lhe perguntar, ao visitante, onde estivera na
noite de 4 de Junho de 1989 (sabendo que era da idade certa, que àquela
altura já estava se tornando um jovem poeta influente; por tudo isso, me
parecia razoável supor que tivesse estado lá), e ele me disse que estava
em casa. Contou que outro poeta, de fora da cidade, lhe telefonara; queria
encontrar-se com ele, e, assim, foram se encontrar. Ficaram fumando e
conversando até altas horas e ele não soube, senão por meio de um
telefonema no dia seguinte, o que tinha acontecido, e quando dirigiu-se
até a grande praça, ela estava fechada, a antiga artéria que ia de leste a
oeste da cidade estava bloqueada por tanques, muitos tanques atravessados
em Chang’an Jie (conhecida como a primeira rua da cidade, construída pelo
último Grande Khan, Kublai, para uso de seus exércitos de cavalos), e, no
entanto, o que o poeta mais precisava dizer não era basicamente a respeito
do seu envolvimento ou do seu alheamento diante do centro dos
acontecimentos, mas apenas isso: que ele era um, entre quatro amigos muito
próximos.
Um deles tinha fora levado de ambulância, da Praça para o hospital, tinha
entrado em coma durante as semanas em que ficara deitado lá , junto com os
estudantes, e fora levado de ambulância para o Hospital de Tiantan, mas
não sobrevivera; ele seria cremado junto com os estudantes que morreram no
protesto. Outro daqueles grandes amigos tinha se deitado no trilho da
estrada de ferro em Março, três meses antes, enquanto as tensões estavam
aumentando, e o terceiro amigo tinha fugido para o exílio e depois
enlouquecido, em Paris (de Paris seguiria para Roma, de onde escreveria
cartas cada vez mais perturbadas, cartas às quais o poeta visitante não
conseguiria mais responder, não sabia mais o que dizer para tentar
apaziguar seu amigo). Ele, o poeta visitante, não cometeu suicídio, não
morreu no hospital, nem fugiu e perdeu tudo, até mesmo própria mente, para
começo de conversa – ele permaneceu em Beijing.Casou-se com uma artista.
Teve um filho. Lecionava na Academia Central de Belas Artes.
Senti uma certa reticência da sua parte quanto a falar sobre seu
envolvimento, ou, melhor dizendo, sua falta de envolvimento. Senti que ele
tinha razões violentamente pessoais para se manter afastado, razões as
quais ele não sentia necessidade de explicar.
Razões que podiam ter mais a ver com seu temperamento do que com política.
Ele não queria, nem tampouco alguém esperava isso dele, explicar sua
distância do local crítico, naquela hora crítica. Mas ele era um jovem
chinês. Um intelectual. Era um poeta. Que perdera seus amigos. Três
poetas. E então, tinha parado de escrever. Parado por muitos anos. Não
porque não pudesse escrever, ou não soubesse como escrever (ele fora
jornalista atuante. E eu pergunto a vocês: já conheceram algum jornalista
que fique sem saber o que dizer?). Antes, já havia lançado revistas
não-oficiais de poesia, já era um escritor conhecido, mas simplesmente não
queria mais continuar seguindo do modo em que vinha seguindo – tentando
ser um “bom” poeta – escrevendo como seus companheiros, escrevendo como
seus heróis, escrevendo como os modernistas –como Yeats, por exemplo,ou
Eliot, ou como os Poetas da Neblina (1), que já escreviam então da maneira
em que continuariam escrevendo– porque, mesmo o fato de ser jovem,
intelectual, e editar jornais não-oficiais, mesmo o fato de ser, então, um
poeta não-oficial, significava estar envolvido e significava, em algum
nível ou noutro, perder. Começou a considerar-se um idiota, um impostor, e
que, agora que seus amigos tinham partido, agora que apenas ele restara, o
resto não importava mais. Decidiu não escrever sobre o 4 de Junho, nem
como jornalista, nem como poeta (embora publicasse uma coletânea de mil
páginas de um de seus amigos mortos). Precisava, disse ele, “de algo tão
forte, tão pesado, tão escuro, louco e turbulento quanto aquele ano”.
O modo antigo de escrever “não atingiria seu objetivo”. Ele queria criar
seu próprio microcosmos literário, capaz de responder à onda gigante da
história. Começou a desenvolver a idéia de escrever “num lugar entre dois
extremos – entre poesia e história, entre poesia e filosofia, poesia e
religião”. Como todos nós certamente sabemos, o movimento estudantil foi
massacrado – os intelectuais e os trabalhadores da cidade que não tinham
sido beneficiados pela glasnost na Rússia, conforme haviam esperado, os
operários, que não tinham ganho nada com as reformas de mercado, e os
oficiais que haviam simpatizado com os protestos –os que não morreram,
fugiram para o exílio ou enlouqueceram – foram detidos, cerceados ou
expurgados. Seu próprio silêncio fora auto-imposto. Ele também contou, o
poeta visitante, que tinha sido apenas quando estivera num encontro de
escritores em Copenhagen, quinze anos mais tarde,que alguém lhe fizera o
que então chamou de uma “pergunta súbita” - sobre o porquê de ter
permanecido na China. Parecia-lhe muito natural, sendo ele chinês,
permanecer na China. “Eu escolhi”, respondera, “permanecer com o meu
destino”. Contou que precisava encontrar sua linguagem, encontrar “uma
simetria entre [sua] escrita e a sociedade chinesa”. Isso o levou a não
escrever durante vários anos; e, depois, a escrever, conforme ele mesmo
chamava, “em zigue-zague”.
Outra afirmação surpreendente, feita pelo poeta visitante, foi a de que as
literaturas do resto do mundo, particularmente do Ocidente, não tinham
chegado à China convenientemente divididas em períodos e categorias. A
China não recebeu o Romantismo, depois o Simbolismo, depois o Surrealismo,
nem muito menos o Dadaísmo e então o Situacionismo. Nem, dos Estados
Unidos, a China recebeu: os Beats, a Escola de Nova Iorque, o Imagismo
Profundo e a Language Poetry, como linhagens ou movimentos ou moedas de
troca específicas de seu próprio tempo e lugar. A China recebera tudo de
uma vez – o quer quer que estivesse sendo traduzido pelos sinólogos; o que
quer que estivesse sendo apresentado a partir de sua língua original,
através de intercâmbios não-autorizados, os exemplos estavam entrando, por
bem ou por mal, no país central. Isso poderia desencadear uma torrente de
atividade – o fato das fronteiras literárias de um povo, depois de tanto
tempo restritas, subitamente sofrerem um transbordamento. Isso também
poderia levar um poeta de certo temperamento a buscar o ponto de
equilíbrio (o ponto de silêncio). Poderia resultar numa Babel, ou numa
página aberta e vazia, um espaço onde as conexões se formam
independentemente da sua cronologia, da sua taxonomia, das suas filiações.
É verdade que, desde o primeiro desafio significativo para o estado chinês
em mais de quatro décadas, já houve contagens de cadáveres de civis
consideravelmente mais altas, em outras partes do mundo (embora apenas
raras vezes em retaliação frontal a demonstrações pacíficas). Os poetas
que se tornaram símbolos importantes dos eventos de 4 de Junho são aqueles
que, ou não estavam no país naquele momento e não puderam mais retornar,
ou tiveram que abandonar o país, alguns sob risco de detenção, enquanto
outros, não. E do lado de dentro, a partir de Tiananmen, muitos começaram
a usufruir, ainda que de forma limitada, da autonomia de uma vida urbana
internacional. O escritor visitante, o poeta que se manteve fiel à sua fé,
permaneceu em silêncio e começou tudo outra vez, reconectando-se com sua
linguagem uma palavra de cada vez: pássaro, bicicleta, cidade, incêndio,
peônia, na série de poemas em prosa “Close Shots and Distant Views”
(Ângulos Fechados e Vistas Distantes), os quais começam com elaborações
literais e ingênuas dos substantivos comuns, e se voltam para uma
investigação cética, se não antogonística, dos processos de nomeção e
atribuição de sentido. Tudo isso com que objetivo, com que objetivo,
“Somente quando um prego é enfiado em minha mão é que a verdade emerge da
minha mão; somente quando uma nuvem de fumaça negra me asfixia de tal modo
que lágrimas me correm pelo rosto, é que experimento a minha existência.
Dez fadas, eretas, cavalgando um cavalo branco, rasgam meu coração em
pedaços”. Zigue-zague. Aprenda a amar o enigma, aprenda a amar o paradoxo.
Fale outra vez.
A poesia, concluí tardiamente, não apenas busca o silêncio, ela aspira ao
silêncio.Não quero dizer com isso que ela busque a perfeição, mas uma
abertura, uma abertura não-oficial. Ou, como já chamei anteriormente, uma
clareira, uma zona na qual a linguagem permita associações inesperadas e
resultados alternativos. Para o poeta George Oppen, o rompimento público
entre palavra e palavra resultou num silêncio (mais uma vez, auto-imposto)
de vinte e cinco anos. (Depois de Auschwitz) “apenas uma coisa permaneceu
ao alcance”, escreveu Paul Celan, “próxima e segura em meio a todas as
perdas: a linguagem... Mas ela tinha que atravessar sua própria ausência
de respostas, atravessar o silêncio aterrorizante, atravessar as mil
escuridões da fala assassina”. Talvez ele exigisse demais das palavras,
que atravessassem, que passassem para o lado de cá. Elas não puderam
impedi-lo de se matar, apesar do esforço radical de sua parte em refazer
ou destruir a língua alemã, de modo a salvá-la. Não que escrever poesia,
estando próximo a um massacre ou no torvelinho das transformações sociais,
não seja algo realizável - mas é que a escrita da poesia consiste numa
atividade altamente flexionada e reflexiva. Os poetas podem reagir aos
acontecimentos conforme estes se apresentam, mas a poesia requer seu
próprio decurso, seu custo, seu curso. Ou assim fui condicionada a pensar
e esta não é a primeira vez em que o estou ressaltando. Não é que escrever
poesia na sequência de um pesadelo histórico após o outro seja obsceno,
conforme a famosa e desesperançada declaração de Adorno, feita depois do
Holocausto, ou mesmo que não escrever poesia possa consistir na verdadeira
obscenidade, segundo o próprio Adorno mais tarde desdiria – mas, primeiro,
o silêncio – e depois, zigue-zague: pássaro, bicicleta, peônia. O escritor
William Vollman concluiu um tratado sobre violência em sete volumes em
menos tempo do que a maioria dos poetas consegue produzir um poema
obstinado sobre todo o sangue que continuamos a derramar. “O homem isolado
está morto, seu mundo exausto ao seu redor// e ele falha! Ele falha,
aquele homem meditativo!(2)”, escreveu George Open; no entanto, algumas
passagens mais adiante, resumiu, em apenas cinco versos, o mais que
comprovado hábito humano de guerrear: “É o ar de atrocidade,/Um
acontecimento tão banal/ Quanto um Presidente//Um penacho de fumaça,
visível à distância/No qual pessoas ardem” – versos bastante de acordo com
esta ária Mongol do século 13, cujos versos, infelizmente, percorrem as
eras: “Impérios se erguem/ As pessoas sofrem//Impérios caem/As pessoas
sofrem”.
Talvez seja preciso conceder que a comprovada lentidão da poesia seja
parte da razão pela qual ela, também, esteja se tornando uma vítima. Não é
apenas o fato de que as imagens deslocaram sua autoridade, mas também que
a velocidade acabou pondo de lado sua função de retransmitir informação.
Embora eu precise temperar essa avaliação com a sensação insistente de que
a nossa duradoura função de visionários não apenas permaneceu intacta,
como está sendo urgentemente instada a realizar este trabalho. Obviamente,
alguns de nós enxergam melhor e mais longe do que outros, e por enxergar
não me refiro a nada tão hierático quanto realizar profecias, mas à coisas
mais cotidianas, como corrigir informações.
É claro que os longevos épicos poéticos estão repletos de atos terríveis
da parte dos deuses e dos homens, incluindo-se aí Gilgamesh (aqueles
pobres cedros); os embates prolongados do Kyrgyz pela independência em The
Manas; as hecatombes prolíficas no “poema de força”, como cunhou Simone
Weil, d’A Ilíada, e o Mahabarata, que já foi chamado de A Ilíada sob o
efeito de ácido. Rios de sangue correm através da história da poesia.
“Abrir o livro do que já aconteceu” é apenas uma das motivações
definidoras por trás da poesia, agora. Penso no poema On Earth, de Carolyn
Forche, e no menos conhecido To Remain, de Edward Kleinschmidt. Mesmo na
elegia, a poesia persiste, não apenas para lembrar, mas para justificar
nossa existência. “Que nós, também, passamos”, (Hardy escreveu, sobre a
nossa impermanência, mas também sobre a nossa presença). Mesmo nos confins
do mundo, a poesia almeja uma visão abrangente. Allen Grossman afirma que
sua função é o discurso humano, sua função é “guardar a imagem de pessoas
tão preciosas, no mundo”. A poesia pertence à solidariedade universal. Uma
tenda foi armada em Bagdá, para que poetas lessem ali. Sunitas de um lado,
Xiitas do outro. Separados, mas juntos. Ali para ouvirem. Uns aos outros.
Ali, uns para os outros. Discurso humano. Quebrando o silêncio. Detendo o
curso da violência.
O lábio inferior levantava-se inteiramente e depois afundava, voltandoà
sua posição original. Ela então juntava ambos os lábios e esticava-os num
bico, pegando fôlego, com o qual poderia pronunciar alguma coisa (Uma
coisa. Só uma.). Mas o fôlego lhe escapa. Com uma leve inclinação da
cabeça para trás, ela reunia força em seus ombros e permanecia nessa
posição.
– Theresa Hak Kyung Cha
Pelo menos entre poetas americanos, a visão documental entrelaçada com o
impulso lírico tem se afirmado com intensidade esporádica, geralmente em
resposta a eventos e conflitos de importância histórica – a Grande
Depressão, a luta pelos direitos civis, a guerra, sempre a guerra.
Lembro-me imediatamente do poema Testimony, de Charles Reznikoff, composto
a partir de sua leitura de registros de tribunal, desde o ano de 1885, e
do Book of the Dead, de Muriel Rukeyser, que denuncia a ocultação ilícita
das condições de trabalho dos mineiros de sílica no oeste da Virgínia:
“Quais as três coisas que nunca podem ser feitas”, pergunta ela.
“Esquecer. Manter silêncio. Ficar sozinho”, responde. Penso também no
poema de Frank Stanford, The Battlefield Where the Moon Says I Love You,
um ataque picaresco à divisão racial. E do poema do ano passado, What I
Heard About Iraq, de Eliot Weinberger, largamente inspirado na coleção de
informações publicadas na imprensa mundial, feita por outro poeta:
Ouço o Coronel Nathan Sassaman dizer: “Com uma dose maciça de medo e
violência, e um monte de dinheiro para projetos sociais, acho que podemos
convencer essa gente de que estamos aqui para ajudá-los”
Ouvi Richard Perle dizer: “No ano que vem , por volta desta época
,vislumbro a existência de um comércio em franca expansão nesta região, e
assistiremos a um rápido desenvolvimento econômico. E em um ano, a contar
de agora, ficarei muito surpreso se não houver uma grande praça em Bagdá
com o nome do Presidente Bush.”
Exemplos que demonstram que até mesmo uma transcrição pode reter o que
Maurice Blanchot chamou de “aquela transcendência das grandes palavras”.
Falando no período mais recente, mas ainda dentro do modo lírico
dominante, refiro-me outra vez ao poema On Earth, um alfabeto elegíaco de
Carolyn Forche; a Burning Towers, Standing Wall, de Forrest Gander, uma
meditação em série cujo assunto é uma muralha maia, na qual todas as
coisas, ao mesmo tempo evanescentes e terríveis – a composição geológica
da muralha, o “par de pássaros [que] se sentam como senhores sobre a
ruína/onde as pedras se esfarelam sob chuva e excremento de aves”, a
sombra de meninos que correram à sombra da muralha, o aroma e os sons
particulares, “quase os mesmos sons que eles ouviam”, e as lanças da
vingança e o sangue que os séculos absorveram – são meticulosamente
imaginadas.
Entre os títulos na minha mesa atulhada de livros estão All Day Permanent
Red, um dos irreverentes ataques do poeta Christopher Logue à Ilíada, e o
alphabet, da escritora dinamarquesa Inger Christensen, o qual, de maneira
elegante e formal, abre os leitores ao meio, diante da capacidade e do
pendor da nossa espécie para o aniquilamento total. “Poesia”, disse Allen
Grossman, “é a fala de alguém que está em apuros”. Existem definições mais
elegantes, mas essa certamente aponta para o seu aspecto mais primitivo.
Entre a primeira e a última palavra, entretanto, muitas declarações
mal-educadas precisam ser feitas de modo a interromper o silêncio, a
maioria delas causada pela violência real à qual estão sujeitas. (E acabo
de eleger, para esta ocasião, uma discussão breve da violência coletiva –
mas também poderia ter abordado a violência da página em branco, a
violência da quebra dos versos, o tão celebrado convulsionamento da beleza
ou seu cáustico declínio).
Em minha mesa também está o relato arrebatador de Ishmael Beah sobre seus
dias como um criança-soldado em Serra Leoa.Enquanto assistiam a um
episódio de Rambo, os garotos interromperam a sessão para dar uma saída e
dizimar um vilarejo, voltando, em seguida - como num intervalo comercial -
para acabar de assistir ao resto do filme; depois saíram outra vez,
floresta adentro, para matar mais gente. Num dia surpreendente, ao
chegarem de forma inesperada num vilarejo, um dos meninos mais novos pediu
a Beah (por sua vez, também uma criança) que retardasse um pouco a marcha
do grupo sob seu comando, porque queria aplicar seus golpes de Rambo antes
dos outros invadirem a vila de vez. Uma criança, carregando armamento
pesado como um AK-47, alucinada de cocaína misturada a pólvora, e Rambo.
Quer o ataque incessante e furioso de imagens sem sentido influa ou não no
massacre - igualmente sem sentido- minha opinião é de que a poesia tem um
papel a desempenhar na repulsa dessa situação. A chama da continuidade, o
discurso humano, flameja dentro de suas estruturas. Por mais que se trate
de uma atividade altamente flexionada e reflexiva, ela é, até certo ponto,
uma empreitada em conflito consigo mesma.
Cha outra vez:
Há um murmúrio por dentro. Um murmúrio. Dentro está a dor da fala a dor de
dizer. Maior ainda. Mais forte do que a dor de não dizer. Não dizer. Não
diz nada contra a dor de falar. Apodrece do lado de dentro. A ferida,
líquida, pó. Precisa quebrar. Precisa lacunar-se.
Numa época em que meu próprio país está engajado numa guerra sem fim, sem
fronteiras nem responsáveis - incluindo aquilo que a CIA apelidou de
rendição extraordinária e que a jornalista Jane Mayer, por sua vez, chamou
de tortura com fins confessionais – (seu texto relata prisioneiros sendo
pendurados no teto, surrados, chicoteados com cabos elétricos, queimados,
acorrentados a vasos sanitários, urinados, tendo seus genitais amarrados a
fios elétricos, os braços e pernas fervidos; levando surras de jatos d’água,
tendo supositórios colocados à força, e sendo forçados a ficar de pé, com
água até a altura do queixo) – é difícil imaginar a poesia, muito embora
seu movimento geral seja o de estabelecer uma clareira, alcançando seu
silêncio essencial,. A poesia pode prosseguir em zigue-zague (ver Xi Chuan).
Pode arrancar as palavras por trás dos sorrisos mentirosos (ver Weinberger).
Pode erguer um monumento com o alfabeto (ver Christensen, ver Forche), ou
um memorial a partir de roseiras plantadas nos pontos cardeais (ver
Kleinschmidt). Pode passar um longo tempo perscrutando um muro (ver Gander).
Quando os poetas querem penetrar “a insanidade nos altos escalões” (ver
Oppen), a poesia precisa compensar sua timidez inerente, suas tendências
isolacionistas. E falar. Outra vez.
Os exemplos mencionados são acidentais. Podem ser suficientemente
adequados, mas existem inúmeros outros. São apenas simples exemplos ao
alcance da mão, mas estão entre aqueles nos quais os poetas encontraram,
pegaram emprestado, reviveram ou inventaram recursos que poderiam aplicar
aos seus meios e ligar “à subcorrente comum” na qual “o assunto se torna
mais do que um objeto”. É apenas nesse ponto que Adorno ainda pode validar
a poesia: “Quando... a poesia realmente leva em consideração o todo, e não
é simplesmente uma expressão do privilégio, do refinamento ou da gentileza
daqueles que podem se dar ao luxo de serem gentis.”
Os poetas terão que se investir de uma determinação equivalente ao
meio-ambiente contemporâneo. Teremos que enfrentar a força irracional com
sabedoria selvagem. Teremos que fazer surgir nossa própria tecnologia,
nossa própria ordem, para “a felicidade geral da nação”. Por mais que a
poesia seja um domínio da mente, ela é também sua defesa. Mas nós, poetas,
teremos que nos livrar de algumas das nossas armaduras mentais. Teremos
que canalizar nossa reprovação para os objetos de negação que escolhemos;
abandonar o múrmurio suave (como diz Evan S. Connel, “Não resta nada de
inócuo”). Os poetas vão ter que parar de lamentar a posição perdida pela
poesia, e continuar a se opor à sua extinção. Aquilo sobre o qual não se
pode falar, não se pode mais deixar passar em silêncio.Na maioria das
vezes, os poetas fracassarão. As estruturas fracassarão. As palavras irão
tropeçar e cair. Mas é assim, tropeçando e falhando, que os poetas se
recusam a serem cúmplices. Continuamos a articular a possibilidade da
solidariedade. Discurso humano. Continuidade. No início de sua História da
Conquista do México, William Prescott escreveu sobre a “não-resistência ao
mal”, da parte de Montezuma. Chega disso. Ainda há marcas da nossa entrega
que precisam ser feitas, antes que o nosso abandono das palavras possa se
completar. Os poetas do nosso tempo terão que partir em direção à sua
própria capacidade de subversão latente e atravessar, com um golpe, o
reduto do sonho, até alcançar aquela abertura na qual o ato de ouvir seja
possível, e a violência não seja inevitável.
Partindo de trás do pescoço ela libera os ombros. Engole mais uma. (Mais
uma vez. Mais uma vez seria o bastante.). Em preparação.
A coisa aumenta. Até um tal timbre. Lenga-lenga sem fim, reabastecendo-se
a si mesma. Autônoma. Auto-gerada. Engole com as últimas forças o último
ímpeto contra a dor que quer que a coisa fale. (Ver Cha)
Como ter uma luz às suas costas que você não consegue ver
Mas mesmo assim consegue sentir
Como se estivesse escorrendo
para dentro do seu ouvido.
Os cantos de um cômodo há muito desaparecido.
Ela não está de fato ouvindo o que ele de fato está dizendo.
O brilho vai se apagando do terreno,
mas eles estão seguros do seu caminhar.
Não é que já tenham estado aqui antes, mas
são jovens e estão levando água.
Há maços e maços de botões de rosas e eles são barulhentos.
Andar para a frente não exige esforço algum.
Junto a esta sensação de harmonia,
outra aparece, menos confortável.
Não de estar perdida, mas de não pertencer.
Mesmo assim eles não preenchiam o espaço
com falsas palavras.
Moviam-se sem se falar,
sem se tocar.
Usavam seu próprio cheiro.
Ela sente o gosto de sal e eles devem estar chegando.
Outros estão longe, vagando.
Se isso estivesse acontecendo em qualquer lugar próximo ao palácio
presidencial,
seria completamente aterrorizante.
E pode ser essa a razão dela ter começado a gritar.
(poema de C.D. Wright)
tradução de Cláudia Roquette-Pinto
CAROLYN. D. WRIGHT
publicou numerosos volumes de poesia, nos quais se
incluem Cooling Time: An American Poetry Vigil (2005); Steal Away: New and
Selected Poems (2002), e editou com seu marido, o poeta Forrest Gander,
Lost Roads Publishers. Laureada com diversos prêmios e honras, como os da
Fundação Guggenheim e do Instituto Bunting, atualmente leciona na Brown
University, Rhode Island. O título
do ensaio foi pego emprestado de uma frase de Allen Grossman. C.D.
ressalta em nota que o poeta chinês pediu para não ter sua identidade
revelada, não porque temesse sanções oficiais, mas sim porque não queria
fazer uso de seus amigos, de suas mortes. A grande avenida que leva à
praça é o local onde o governo assassinou os manifestantes. Chang’an Jie é
a Rua da Paz Celestial. Os poemas que iniciam e enceram o ensaio são de sua
autoria e serão incluídos na coletânea Rising, Falling, Hovering, no
prelo.
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