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beatriz bajo
fogo-fátuo e os
cordéis de encantamento
Era rua agora. Bisbilhotices
em roda de gentes pela casa da comadre. Minha mãe infiltrou-se na
residência como um falcão peregrino, fazendo levantar os vestidos
atrevidos das vizinhas e a surpresa despeitada dos homens que tumultuavam
pelos arredores da casa. Foi então que a estupefação alcançou suas pernas
quase cedendo o chão aos joelhos. O desespero enlaçado entre mãe e filho,
amplexados em meio à cena aterrorizante.
Eu tinha uns 6 anos, lá no início da década de 60, quando iniciei a minha
coleção de histórias de família nordestina. A grande migração para sampa
advinha do auge da construção civil. Cada tijolo era um parágrafo dos
grandes contos edificados em cimento e ped-aços de grades que começavam a
arranhar o céu da minha cidade que já se acinzentava.
Eram de Recife João e Virgínia — paulista que se preza metonimiza
torpemente todos os nordestinos a baianos — e, como rochedos à flor da
água, abeiraram-se na rua perto da cachoeira, ou seja, próxima a nossa
casa. O homem de vincos em torno dos olhos, como se tivesse observado a
vida com firmeza aguda, carregava a aspereza da mão que prepara o chão da
alma, montando o teto das idéias e erguendo as paredes que direcionam os
desejos alheios. Tinha como ofício amassar barro o pedreiro; ela, senhora
da casa, arriscava-se às contas e aos pontos que se costuravam em meadas
com fios de fábula a alguma vizinha que carecia de fatos.
Nos arrabaldes encontrávamos e desencontrávamos todos nós, que recheávamos
qualquer habitação. Um revisor de jornal que ouvia óperas pelo rádio,
distribuía balas para a molecada e voltava sem quinhentos réis para casa
era o marido da minha tia, que possuía mãos de sempre fada e nunca dor de
cabeça. O casal era pai e mãe de uma filha de maria, a prima de voz
acanhada por não ter boca pra nada. O irmão da tia era o meu pai, um
caçula de outra grande família. Talvez por isso, planejava uma filosofia
hippie de vida, caçava rãs e amava futebol, tinha pernas arcadas
combinadas a uma boina. Piscou verde para seduzir minha mãe. Bem, esta era
a dona das histórias todas. São através dessas veias que nas minhas corre
a fibra das mulheres que admiro. O amor fabricou o primogênito que cedeu
lugar para a gêmea da minha alma que me viu aparecer roxa de tudo — resto
de tacho — confirmando assim as contas brilhantes do terço da parteira.
Assim, Maria. Vim metendo o pé no mundo. Aparecida.
Éramos oito pessoas que descendiam de italianos. Isso significava
macarronada aos domingos, conversas atropeladas por muitas vozes e gestos
expansivos com as mãos. Enfim, transbordantes e calorosos. Quando dei
conta, meu povo era amigo do casal baiano...ops, pernambucano.
O tempo, à espreita, testemunhava o primeiro filho de João e Virgínia
assim como nós, que nos deparamos com os olhos acesos de quem principia a
buscar, a pele fina porque sem corte e a mudez típica de aprendiz. Josias
Valci não combinava com o bebê porque quem ouvia o nome e olhava-o, notava
que o menino tinha mais letrinhas que corpo. Seus pais tinham, realmente,
um gosto engraçado e extravagante. Fui cuidando de perceber que faziam uma
combinação, muitas vezes sem sucesso, de nomes compostos que traziam as
iniciais J e V.
Bem, Josias foi dado ao primeiro sacramento. A partir daí, meus tios eram
padrinhos e ele afilhado. Além disso, entre os adultos, por conta do
vínculo, passaram a tratar-se de comadre e compadre. Muito mais pra frente
é que entendi porque mudavam de nome depois da festinha na igreja.
Piscamos e os anos passavam grandes, como pulando os degraus da vida.
E quando Josias-homem vinha para comemorar o natal conosco, trazia uma
garrafa que, na verdade, parecia com o vinho que a gente tomava (bem, eu
saboreava-o aguado e com açúcar) e meus tios enchiam a boca com o tal
vermute para falar que ganharam um Cinzano de presente do afilhado. Sempre
o padrinho brincava chamando o garoto de lampião e era um acanhamento de
bochechas avermelhadas que eu nunca entendia. Josias já tinha mais três
irmãos, o JV magrelo de mãos compridas e longos cambitos, o JV cabeça mais
chata e Julião Veraldo, o pequeno.
Minha mãe poderia ter seguido muitas profissões, porque nasceu com o dom
de adubar o mundo. Além de genetriz e professora da criançada toda da rua,
tinha uma mão pra tratar dos bichos que só vendo, ainda comprometia-se
como uma enfermeira de primeira. Era ela quem tratava do umbigo das
crianças e cuidava da comadre durante as gravidezes e depois dos partos.
Tudo se encaminhava à criação dos filhos que já largaram as mamadeiras há
um tempo, embora alguns estavam jogando os dentes de leite no telhado e em
outros já se via a penugem de uma barba. Às vezes, na minha casa, que
ganhava em quantidade e em mulheres, comentávamos dos hábitos diferentes e
do carinho que sentíamos por eles.
Vez ou outra Virgínia era visitada por dois irmãos que vinham da mais
antiga capital brasileira. Um deles, lembro-me, tinha o nome de Antônio,
um galalau que mangava de todo mundo. De índole extrovertida, dizia sempre
“avia xodó” e adorava distribuir cheiros por toda parte. Exibia a sanfona
que se curvava toda em gemidos de saudade. Tonho, então, cantava pra irmã
um forró que acalorava a rua inteira enquanto os outros dois manos
ensinavam o pessoal a dançar o bate-coxa.
Nunca deixavam de passar as festas de São João perto dos parentes da terra
da garoa e a espera pela chegada deles era de um entusiasmo de levantar
defunto. Virgínia espalhava a notícia pela vizinhança e corria para deixar
a casa brilhando. Assim, como era o hábito da época, ela, nessa ocasião,
cismou de encerar o chão. Evidentemente, porque era muito humilde, na sua
dispensa só havia o necessário, não podia dar-se ao luxo de comprar
produtos supérfluos com facilidade.
Ainda hoje, angustia-me a recordação dessa cena e do quanto o instante é
passível de fatalidades que não se consertam. Em meio ao grande furdunço
de vozes e braços e lágrimas do céu paulista, orgulhei-me da coragem de
mamãe — foi assim que iniciei minhas concepções acerca da fragilidade
humana — ao agir bravamente diante da desastrosa lambida.
Virgínia...bem, com a ingenuidade dos simplórios, na tentativa de que a
cera rendesse, procurou derretê-la em lata que ardeu toda de labaredas
ágeis em distribuir suas cores. O desespero arremessou a lata ao quintal
que vestiu o pequeno. Julião parecia que corria ao encontro de boitatá.
Seu corpo inteiro dominava o fogo que mais se matizava em volta de seus
olhos de fera enlouquecida.
A dona da casa que aclarava a noite chuvosa, entre tantas outras que
banharam a vila durante a semana, ainda tentou afugentar as chamas e urrar
pedidos de socorro. Foi quando mamãe chegou com a lucidez dos heróis para
rasgar as roupinhas do menino e enrolá-lo num cobertor. Mas fogo-fátuo,
vestido de todo o azul, concedeu o reino da luz a Julião, que era
brilhante demais e ascendeu. Apesar de encharcar os corações de sua
família, desde então lhes guia com sua claridade de eleito.
A comemoração da festa de São João não foi das mais dançantes na rua perto
da cachoeira, mas eu olhava a fogueira com tanta fascinação e podia jurar
que Julião ria entre uma fagulha e outra, traquinando brasas noite adentro
sob o xote que abençoava as pessoas que teciam seus trapos com novos
cordéis de encantamento.
BEATRIZ BAJO é escritora, bacharel em Letras e especialista em
Literatura Brasileira. Participou de algumas antologias e publica
freqüentemente em revistas literárias e espaços virtuais. Nas noites de
insônia, mantém seu blog www.lindagraal.blogspot.com
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