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victoria saramago


noite no boteco

 

 

 

Por isso, confesso que fiquei meio apreensiva quando, pouco depois de termos voltado com o namoro, o Dédi começou a contar aquela história escabrosa no botequinho da Lapa. A verdade é que me deixava puta da vida. Não era nem por mim, porque nunca me enojei com essas coisas. A questão toda era o Sandro, coitado, era a gente retomar esse tipo de tema na frente do Sandro. Já fazia mais ou menos uns dois anos, eu ficava bolada só de lembrar. Às vezes é pouco demais o tempo que resta, a gente não percebe. Aquela casinha tão simpática no alto de Santa Teresa que eles arranjaram, ele recém casado com a Tati e o tanto que se amavam, coitado, não merecia. O Sandro tinha viajado, quando soube voltou correndo, desesperado. A Tati estava sozinha em casa quando aconteceu, ao que tudo indica. Encontraram-na na noite do dia seguinte, o cheiro insuportável já chegando às casas vizinhas. Assassinada brutalmente, o sangue já seco espalhado por todo o quarto, e o pior: os vários indícios parece que no final comprovaram o estupro.


Claro que todos nós tentávamos resguardar o Sandro das histórias fortes que o Dédi teimava em contar, tão alterado que ele ficou na época do assassinato. Bebia por dias inteiros, teve de ir para o hospital em milhares de ocasiões para tomar glicose – eu mesma o levei lá uma boa meia dúzia de vezes. Era mais que uma depressão, era como um desespero, uma vontade de se estragar. Me diziam às vezes que eu era uma pessoa complicada, mas perto das doideiras do Sandro naquela época, as minhas deviam ser brincadeira. O pessoal chegou a acreditar que ele não ia segurar a onda, que alguém ia ter de tomar uma providência, sei lá, pensar numa internação. Era ao menos alguma certeza de que não ia fazer uma merda maior. Mas o tempo passou, e a verdade é que nesse último semestre até que melhorara bastante, todo mundo reparava. Eu achava engraçado é ele mesmo agir como se não notasse, como se fingisse continuar no fundo do poço, a despeito das coisas começarem a ficar sob controle.


Ainda assim, achei inadequado o Dédi contar esse tipo de história na frente do rapaz. Quis detê-lo, cheguei a cutucar o seu braço por debaixo da mesa, ele fazendo que não reparava. Me dava uma puta duma raiva, e eu tentando levar numa boa. Não queria voltar a brigar com ele, ainda mais por termos acabado de nos reconciliar, e essa a primeira saída com os amigos – só o Sandro e o Tom, mas já era alguma coisa –, depois de tanto tempo, ainda que só para beber uma cerveja na Lapa. Apesar do movimento por lá tão fraco naquele dia, uma terça-feira chuvosa. Várias mesas vazias à nossa volta no boteco, só uns gatos pingados aqui e ali, uns peões jantando, umas secretárias cansadas.


- Mas então, vocês não lembram dessa história? Não faz muito tempo, acho que não tem nem dois anos, saiu nos jornais, na internet, em tudo!


Os outros abanavam a cabeça, ninguém lembrava. Só o Dédi para ficar guardando essas coisas que saem nos jornais. Eu não tirava os olhos do Sandro, já mais bêbado do que todos nós, a voz pastosa e enrolada. Eu claro que a princípio tinha medo da sua reação, mas ele ouvia tudo com naturalidade, parecia interessado. Por isso, e mais ainda para evitar outra discussão, deixei o Dédi prosseguir.


- Foi lá na Alemanha, numa dessas cidades microscópicas, vocês sabem. Juro, o sujeito era canibal de verdade. Botou um anúncio na internet procurando alguém para ser morto e devorado. E o mais louco é que apareceu mesmo um sujeito se candidatando. Não dá para acreditar que vocês não lembram disso, saiu em todos os jornais. O canibal decepou o pênis do outro com ele ainda vivo, os dois comeram o pênis flambado. Já pensou comer o próprio pênis flambado? Depois o cara foi morto, o canibal cortou seu corpo em vários pedaços e colocou no congelador, para ir comendo aos pouquinhos. Pior que passou um tempo assim, ninguém reparou. Só quando o sujeito colocou outro anúncio na internet procurando mais um maluco para ser devorado é que se ligaram.


- E aí, o que aconteceu? – o Tom perguntava.


- Ah, o cara foi preso, lógico. Esse daí vai pegar prisão perpétua, no mínimo.
O Sandro interviu:


- É, se na Alemanha não tem pena de morte...


- Fato é que o sujeito se fudeu. – concluía o Dédi, quase triunfante.


- Que nem a história daquela freira – começou o Tom uns minutos depois, uma tragada mais funda nos cigarros. Tom tinha um jeito de tragar que me dava sempre uma vontade irresistível de fumar, no que puxei um cigarro para mim também.


- Que que tem a freira?


- Ela cuidava de leprosos, algo do gênero. Lavava as feridas deles com um pano molhado, tratava de todo mundo, e depois pegava a água que tinha usado para lavar, aquela água suja de lepra e das feridas, sei lá o que tinha, sangue, pedaço de pele: pegava isso tudo e bebia.


Pronto. Mais um para desestabilizar o rapaz. Só podia ser de ciúme da Tati ter sido tão apaixonada pelo Sandro, apesar do Tom nem parecer que ligava mais para essas coisas, apesar do tempo demais que passara. O Sandro agora tinha a cabeça virada para baixo, os olhos fixos nalgum ponto perdido. Não parecia tão mal quanto eu previra. O Dédi todo empolgado, caralho, que bizarro, que nojo, como é que pode, e o Tom:


- Mas é verdade, é verdade mesmo. É como se fosse uma humilhação suprema, sabe? Um ato de humildade.


- Isso não é humildade, é perversão – acrescentei distraída, ainda observando o Sandro. Definitivamente ele não devia mais beber naquela noite. E tive também vontade de contar uma dessas histórias de bizarrices. Estavam todos no clima, o Sandro calado mas atento, o Dédi quase carinhoso mesmo após eu ter tentado impedi-lo de contar o primeiro caso. Falei de um padre francês do século XIX que regia um coral infantil numa dessas igrejas do interior da França. Era um padre muito, muito gordo, desses obesos mórbidos gigantescos, fora de escala. O cara ficava regendo o coro normalmente, mas às vezes, quando dava, puxava de repente uma criança para um canto. Daí ela estava perdida. Era estuprada pelo padre, e depois, quando ia matar a vítima, ele se jogava em cima da criança, esmagando-a sob toda a sua gordura.


O Dédi ficou bolado, perguntou porque até hoje eu não tinha contado essa história. O Tom de olhos arregalados, o Sandro ainda do mesmo jeito, parecia um autista.


- Mas ainda tem um detalhe – continuei.


O Tom e o Dédi, quase ao mesmo tempo.


- Conta, Milena, conta!


- É que esse padre foi preso, e no julgamento ele contou tudo com a maior riqueza de detalhes, na frente de todo mundo. A platéia ficava lotada, e era interessante é que as pessoas ouviam deliciadas aquelas histórias. Quase como se tivessem prazer em ouvir tanta atrocidade, e com as próprias crianças da aldeia.


Os três se meteram num silêncio ligeiramente constrangido, até o Sandro, que afinal voltava a prestar atenção no que dizíamos. Tom acendeu outro cigarro, Dédi acariciando o meu pescoço, eu terminando o copo de cerveja. Sandro acabou de beber o seu também, nos encheu novamente os copos e interrompeu a pausa:


- Então agora só falta eu para contar uma história.


Sua fala estava tão enrolada que, de início, me pareceu óbvio que não conseguiria contar nada. Mas à medida que prosseguia começava a articular melhor as palavras, parecia inclusive recuperar um pouco da lucidez.


- É a história do marido que matou a esposa. Não é muito nova, mas acho que vocês não conhecem. Foi assim. Eles moravam sozinhos, sem filhos nem nada. Eram jovens, ele com tipo uns 26, 27 anos, ela com 23, 24. Numa noite qualquer, não tinha nada demais. Não haviam brigado, ninguém estava bêbado. Ele via televisão na sala, um jogo de futebol. Ela no quarto tomando banho. De repente ele quis que ela viesse para a sala, desejou a sua presença. Gritou para ela, pediu que se sentasse ao seu lado no sofá e visse também o jogo. Ela gritou do chuveiro que já saía do banho. Esperou. Cinco minutos, dez minutos, nada. Ela não vinha. Então começou a ter uns pensamentos estranhos. Em como seria vê-la morta. Não era nem por qualquer suspeita de traição, não era nada. As pessoas sempre desconfiam mais do que deveriam, e ele sabia que não tinha por que entrar nas paranóias. Era só mesmo a vontade de matá-la, sim, a ânsia, a sensação de matar alguém. Ainda por cima a mulher da sua vida, a coisa ficava mais interessante. Porque ela às vezes dava uma raiva, apesar de se amarem tanto, ela às vezes parece que pedia. E ele era com cada vez menos dificuldade que admitia a si próprio: que tinha vontade de vê-la cadavérica, de tê-la fria na pele de estátua. Como essas taras que não se assumem mas estão sempre lá, insistentes, martelando.


- Mas não, não, que coisa repugnante. Veio uma censura, um nojo de si próprio, voltou à televisão. E o jogo tão monótono, o banho dela longo demais, ela fria, a camisola branca, a expressão dolorida dos olhos e ao mesmo tempo como que serena. Ela morta. Não dava mais para reprimir. Foi até o quarto – porque ela tomava banho no banheiro da suíte – e a viu calma, sentada na penteadeira – sim, ela tinha uma penteadeira –, penteando a cabeleira cor de mel e cantarolando. Tinha uma expressão serena, a pele de pêssego fresca do banho, cheirando a sabonete, coberta pelo roupão branco. Estava tão distraída, nem reparou quando o marido entrou no quarto com cuidado para não fazer barulho, nas mãos uma bengala que pertencera a seu bisavô e que, nem sei por que, ainda conservavam. Foi andando bem devagar em sua direção, procurando de todas as formas não ser visto, a bengala escondida nas costas. Ela obviamente logo notou a sua presença. Virou-se sorridente, inocente como sempre, disse algo como “Desistiu de ver o jogo, querido?”. Ele nem sabia dizer ao certo por que a coisa toda se apresentava tão inevitável à sua frente, um fascínio de tê-la assim desprevenida, mal dava para agüentar, para fazer tudo com calma, sem que ela se assustasse, sem que percebesse até o último momento. Vagaroso ele se dirigia a ela, tão ingênua, um sorriso nos lábios e os braços abertos, o que foi, querido? Sequer se deu o trabalho de lhe responder. Aplicou rápido um golpe na sua cabeça, um golpe tão certeiro que nem foi necessário outro para que ela caísse sobre a penteadeira. Os cabelos recém-penteados, manchados dum sangue muito vivo, davam a dimensão do quanto era linda.


- Tinha alguma coisa de apavorante nessa visão, foi mais ou menos o que bastou para ele logo se dar conta da idiotice que fizera, da merda toda que se seguiria. Porque não era só a prisão. O pior era saber que viveria para sempre sem ela. Caiu ajoelhado no chão. As lágrimas rolavam, o arrependimento na cara. Era para sempre. E ela ali imóvel à sua frente, mais linda que nunca, o roupão semi-aberto, os cabelos caindo pela cadeira e o sangue pingando silencioso. Levantou-a, fechou seus olhos, limpou um pouco do sangue com um lenço. Abraçou-a forte, seu rosto agora tranquilo e os lábios numa quentura, seria melhor se esfriassem. Que estivesse ela sempre ao seu lado, assim, linda e entregada. Sentou-se na penteadeira, a esposa no seu colo, sua cabeça apoiada nos ombros do marido. Encheu-lhe então as bochechas de uns beijos apaixonados. Algumas lágrimas se soltavam misturadas ao tanto de sangue que lhe sujava o rosto e o pescoço. Penteou os cabelos dela com a escova mais suave, sempre gostou de vê-la bem penteada. Antes, costumava gostar de puxar seu cabelo de brincadeira, ela ria dum jeito gostoso. Mas naquela noite ela não sorriu nem fez nada. Permaneceu completamente calada. Nem ele procurou puxar seus cabelos. Até porque algumas mechas caíam naturalmente, as que estavam mais próximas ao corte. Assim como o que deveriam ser os miolos, algum pedaço de pele desconhecida, quem saberá. A escova se enchia de sangue e ele não sabia muito bem o que fazer para estancá-lo. Acabava limpando no roupão da esposa, fazia uma sujeira infernal. Resolveu parar com aquilo e levá-la para a cama. Levantou-a com delicadeza, ela pesando muito, sem se segurar ao seu pescoço para lhe facilitar o trabalho, e a acomodou sobre o colchão que haviam comprado ainda na semana anterior. Deitou-a de costas. Estava tão linda, o roupão agora aberto e o seu corpo estendido, esfriado. Acariciou então seus cabelos, depois seu rosto, seu pescoço, seus ombros e já chegava aos seios, alguma auto-censura que vinha de repente, lógico, mas também a vontade incontrolável. Era afinal para isso que fizera o trabalho sujo, era para tê-la dessa forma que ainda pagaria um preço tão alto. Para tê-la inerte nos seus braços, e segurá-la forte como ela nunca que iria deixar, as manchas roxas que se formariam, mas que importava isso agora. Que se formassem, que cobrissem seu corpo todo, porque agora ele a apertaria e a morderia era mesmo para arrancar pedaço. Era quase para que ela sentisse de dentro da morte as mãos dele. Possuindo-a como então fazia, já o seu corpo todo cheio de sangue por cima dela – a minha pequena. E tão difícil até para ele entender que a amasse tanto ainda assim, que lhe infligisse isso tudo enquanto que tomado duma espécie de ternura, como se ela fosse perdoá-lo porque afinal todos nós acabamos fazendo uma besteira ou outra.


- Quando se deu conta, já passava da meia-noite. Queria estar ao seu lado por toda a madrugada, pelos dias seguintes, para sempre que fosse. Dava um gosto de vê-la assim. Acontece que não era estúpido, sabia das conseqüências. Tomou um banho rápido, se vestiu. Voltara ainda naquela tarde de São Paulo, uma viagem de trabalho, sequer desfizera a mala. Abriu-a, trocou algumas camisas sujas por outras limpas, pouca coisa. A mulher ali, parada, descabelada. Não dava para deixar de observá-la, quase manchava as roupas de sangue e miolos na desatenção. Que sorte aquela viagem, meu Deus, que sorte. Tinha ainda as notas fiscais do hotel, do restaurante, de coisas que comprara, tudo datando daquela tarde. Ninguém o vira voltando ao Rio. Bastava ir para outro hotel, depois dizia que resolvera passar mais uns dias lá em São Paulo para resolver umas pendências, que trocara de hotel porque não estava satisfeito com o atendimento, sei lá, sempre tem desculpa para a gente arrumar. Ficaria por lá até que descobrissem, até que o contatassem. Aí não seria nem preciso fingir desespero, porque era desesperado mesmo que ficaria, porque amava a mulher e sabia até bem demais do arrependimento que o esperava. Antes de sair, ainda teve o cuidado de abrir as gavetas dos armários, jogou tudo para fora, escondeu no bolso as jóias, o i-pod e o celular dela, e recolheu todo o dinheiro que pôde encontrar. Seria mais fácil se acreditassem se tratar de um roubo. Quanto às impressões digitais, ora, ele estava na sua própria casa, não tinha nada de estranho. Mesmo assim, limpou as superfícies que acreditou suspeitas, as gavetas, as maçanetas, a bengala.


- Foi então até a cama, a esposa imóvel, nua, já bem mais fria, as marcas das suas mãos, o sangue todo que se espalhara, linda da mesma forma. Beijou-a uma última vez e agora era quase com repugnância, porque começava a se dar conta. A consciência finalmente ganhava terreno. Sequer teve coragem para um abraço mais longo. Não. Chorando feito um idiota, um pequeno beijo – que era agora a única despedida suportável –, e seguiu para São Paulo. E foi isso.


Quando o Sandro acabou de contar, nós éramos os únicos que haviam restado no boteco. Nos pegamos então metidos num silêncio irritante, um clima de hesitação em cada um. Tom não acendeu outro cigarro, nem eu. Sandro estava lívido, pareceu-me entrever algum brilho estranho nos seus olhos. Tomou um último gole, dessa vez duma cachaça que não sei quem pedira horas antes. Soluçou. Achei que fosse vomitar, mas se segurou. Notei que tremia de leve. Nem o Dédi falava nada, só apertava o meu braço com força, as suas mãos suadas. Vamos embora, Milena, ele me sussurrava. Eu tinha uma vontade louca de lhe jogar na cara que era um idiota. Fora ele quem começara aquilo tudo, era o primeiro culpado. Mas o garçom veio nos trazer a conta sem que tivéssemos pedido, pois era tarde, já estavam encerrando. Pus algumas moedas na mesa – tinha o dinheiro trocado –, daí levantei e disse a eles que esperava lá fora, que queria tomar um pouco de ar enquanto acertavam com o garçom. Quando saí do botequinho a Lapa já estava bem vazia, uns poucos ambulantes e umas putas na rua do Lavradio. Tinha passado tempo demais, eu não percebera. Como eu precisava de ar fresco, pensei, como precisava mais do que nunca respirar fundo e sair dali.
 

 


VICTORIA SARAMAGO é mestranda em Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. É autora do romance René Esfacelada (2007). O conto aqui publicado faz parte do livro inédito Meio-Fio.
 


 

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