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josé eduardo costa silva
como ouvir música
Porventura é o pintor que
entende como devem ser feitas as rédeas e o freio? Ou o que as fabricou, o
ferreiro e o correeiro? Ou antes aquele que sabe servir-se delas, o
cavaleiro somente? – Exatamente. – Acaso não afirmaremos que se passa o
mesmo em tudo mais? (...) Grande é, pois, a necessidade, para quem se
serve de cada coisa, de ter delas a maior experiência e de se tornar
intérprete, junto do fabricante, da boa ou má qualidade do objeto de que
se serve quando utiliza.
Platão, República
Nesta célebre passagem do Livro X da República, Platão estabelece uma
hierarquia daqueles que estão mais próximos à verdade. Entre o fabricante,
o artista (que representa o objeto fabricado) e o usuário, seria este
último o maior conhecedor, posto que captura e julga o objeto segundo sua
finalidade. Poderíamos aplicar este raciocínio quando o objeto em questão
é a música? O que é a música? Quem está mais próximo de sabê-la como ela
é? Estas questões não parecem ter sido estranhas a Platão. É que se infere
da leitura de Leis, obra em que Platão, ao referir-se à música, dá sinais
de rever sua visão negativa da arte: a música seria uma imitação do bem,
não como cópia fotográfica, sendo, por isso, passível de servir à fins
morais e pedagógicos. Todavia, urge saber se os fins identificados por
Platão correspondem às expectativas dos usuários, justamente aqueles que
somos e com os quais nos relacionamos. Apresento então um tipologia dos
usuários contemporâneos.
Um primeiro tipo de usuário é o que se distrai. Ele insere a música em
seus afazeres cotidianos sem, contudo, se dispor a ela. O usuário
distraído é, por exemplo, aquele que abre as portas do carro e põe o som
no último volume, enquanto bebe, grita e joga cartas. Também pertence à
ordem dos usuários distraídos o que ouve música no trabalho, no trânsito,
no clube. É provável que o usuário distraído nada tenha a dizer sobre a
música, porque dela nada colheu; ele estava distraído.
Um segundo tipo de usuário é o que associa música a entretenimentos e
comemorações. Este alcança o âmbito significativo das referências que
devem estar adequadas à ocasião. Pergunto, porém, o que fundamenta a
adequação entre música e ocasião? Amiúde, multiplicam-se convenções sobre
uma tal adequação. Por exemplo, a prática de esportes radicais deve vir
acompanhada pelo rock'n'roll. Da mesma forma que momentos românticos são
embalados por boleros e tangos e momentos festivos requerem músicas de
andamentos rápidos e harmonias previsíveis. A indústria cultural chega
mesmo a estabelecer gêneros de ocasião; música de carnaval, de natal, de
rodeio etc. A meu ver, não há nada aparente nas obras e nas ocasiões que
justifiquem a adequação entre elas, o que induz à conclusão de que as
convenções são produtos de interesses externos à vivência estética. Elas
induzem as pessoas a se adequarem aos estados de espírito coletivos. Nas
festas de fim de ano, por exemplo, devemos estar emocionados, solidários
e, naturalmente, mais dispostos a gastar dinheiro. Mas qual a relação da
música com a criação de tais estados de espírito?
Ainda no campo dos significados convencionados, cabe destacar a
tradicional associação entre música e crença. Nesta associação fica
evidente o intercâmbio semântico que há entre música e fenômeno ao qual
ela adere. Sendo as crenças carentes de fundamento, a substancialização
delas em muito depende da gama de sensações provenientes da música e
também das outras artes. Assim, esta associação parece ser natural, como
se crença e música fossem matérias de uma mesma proveniência. O resultado
disso é que muitos compositores perdem o direito à autoria de suas obras
para deuses, anjos, espíritos e energias subtendidas.
Um terceiro tipo de usuário é o que faz da música um instrumento de
identificação a grupos ou classes sociais. Geralmente, este usuário possui
conhecimento técnico, servindo-se de informações contidas em manuais,
cadernos de CD, programas de concerto, revistas especializadas, ou de
informações que capta em conversas. Este usuário relaciona-se mais com o
dito sobre a música do que com aquilo que ela diz. As sensações que
descreve já foram vividas alhures e ocorrem à revelia da experiência.
Um quarto tipo de usuário é o que confere valor pedagógico e terapêutico à
música, partindo do pressuposto de que ela expressa e molda afetos. No
decorrer da história, não faltaram teorias para esclarecer e codificar
este tipo de associação; quais foram a “Teoria do Phatos” na Grécia e a
“Teoria dos Afetos”, na Europa barroca. Porém, os fundamentos da
associação entre música e afeto nunca foram esclarecidos. Não há nada, por
exemplo, que nos permita inferir que a tonalidade de sol maior esteja
relacionada ao júbilo, como muitos teóricos prescreveram. A associação
entre música e afeto expressa um duplo temor: primeiro, de que não há nexo
necessário entre linguagem e referência; segundo, de que a linguagem é
insuficiente no que concerne a circunscrever e substancializar o
indeterminado. Por isso, o usuário afetivo pressente a recusa da linguagem
que por um lado nem tudo alcança e, por outro, não diz completamente. Mas
trata-se de pressentimento, posto que sua angústia lhe impõe a crença. O
usuário que está diante da recusa, limita-se a dizer o que sentiu ao ouvir
a música, e não o que ela é.
Um quinto tipo de usuário é o que concebe a música como instrumento de
persuasão. As situações deste uso provêm de três estratégias de persuadir:
a primeira é aquela em que o persuadido se vê projetado no plano
referencial da obra, ou seja, no plano do dito da música. As referências
estimulam sua memória, fazendo-o reviver determinado estado emocional, tal
o que ocorre nas situações em que incidem músicas de ocasião; a segunda é
a que se dá no âmbito da congenialidade entre ouvinte e obra. Através
desta, o ouvinte se identifica ao processo formativo que dá estatura à
obra, a ponto de se tornar parte dele, e a ponto de ele acreditar que as
referências presentes na obra são suas. Decorre que a impressão de que a
correspondência afetiva entre o plano referencial e ouvinte é necessária e
anterior à experiência estética. Ao ouvirmos, por exemplo, um hino,
estamos tão acostumados ao seu processo formativo que nos distraímos dele,
aderindo, por completo, à crença que suas referências impõem. (PAREYSON,
Os problemas da estética,
1997, p. 104)
A terceira estratégia de persuasão é a que pressupõe um ouvinte capaz de
reconhecer ou mesmo aplicar conhecimentos técnicos. Nessa situação, o
ouvinte aproxima-se dos signos musicais em seu caráter auto-referencial,
isto é, do não dito da música. Todavia, o ouvinte nega o não dito da
música, ao substancializá-la na forma de um organismo reconhecível.
Entretanto, esta negativa afirma uma forma, como se ela fosse a única
possível. Ou seja, a negativa é o dito da música, que se afirma como a
possibilidade única e unívoca. É este sentimento de impossibilidade da
impossibilidade que caracteriza o gosto. Não é por acaso que o senso comum
diz: gosto não se discute. Não é também por acaso que o músico reconhece a
obra de arte como sendo a única forma possível de si mesma. Por exemplo,
há músicos que tocam ao piano uma peça escrita para cravo e, no entanto,
acreditam que esta é a opção mais correta.
Um sexto tipo de usuário é o que insere a música na estrutura de uma outra
obra de arte. Em geral, este usuário se orienta pelos princípios poéticos
que regem o uso cotidiano da música: o do dito (referencial) e o do não
dito (signos musicais auto-referentes). Todavia, no contexto das obras de
arte, abre-se uma perspectiva peculiar, qual seja, a da explicitação do
caráter do não dito. Pensemos, por exemplo, em uma peça de teatro. É
evidente que a inserção de uma música coaduna-se às referências do texto.
Nesse caso, há um reforço mútuo de significação. Pode ser ainda que a
música dialogue ou desloque o significado do texto, como nas cenas
cômicas, ou naquelas que se servem do recurso da ironia. Por outro lado, a
música é também utilizada como elemento articulador do texto, pontuando e
demarcando suas pausas. Há de se considerar que estas são necessárias à
captação do subtendido, do significado que se projeta alhures, enfim, do
silêncio do texto. Ao pontuar o texto, com seu caráter do dito, a música
converte-se em uma estrutura de suporte, sobre a qual o silêncio se
insinua. Isto ocorre devido às coincidências entre os elementos mélicos,
rítmicos e harmônicos que pertencem tanto à música quanto ao texto
teatral.
Porém, a relação entre música e texto é radical, quando ela ocorre no
âmbito exclusivo do não dito. Esta radicalidade reside no fato de que o
não dito é reserva ontológica que insinua as possibilidades múltiplas da
matéria da obra não circunscritas em um campo de significados: os signos
musicais ao referirem-se apenas a si mesmos nos situam diante da liberdade
da indeterminação, do poder-ser. Sendo o não dito da ordem do
indeterminado, funciona como força que confere à obra seu caráter de ser
recolhida em si mesma. É assim que a obra se afirma como estrutura
orgânica; negando-se em relação ao mundo de nossas referências cotidianas.
Contudo, tais características são inerentes a qualquer obra de arte. A
música, embora inserida na estrutura da peça, não deixa de ser uma obra em
si e, por conseguinte, comparece naquela totalidade, munida de seu
silêncio e recolhimento. Então, a inserção da música na peça é um
acréscimo de não dito.
Na peça, as personagens estão funcionalmente articuladas. Suas histórias
se cruzam, se negam ou mesmo se reforçam. É a função que cada uma exerce
em relação à totalidade que lhe confere a estatura da presença, posto que
esta se estabelece como efeito interpessoal. Entretanto, conferimos a uma
dessas personagens uma trilha sonora. Embora esta trilha possa estar
articulada aos seus conteúdos de dito e de referência, ela é acréscimo de
não dito. Um tal acréscimo provoca um retraimento da personagem em si,
posto que ela há de se manter individualmente e organicamente, mediante a
ameaça da indeterminação que a circunscreve. Contudo, ao retrair-se, a
personagem suspende suas funções orgânicas, destacando-se, por
conseguinte, da estrutura funcional da obra. Esta suspensão das funções
orgânicas é um movimento de des-substancialização, entendendo-se que a
substância é essencialmente funcional. Em outros termos, a personagem
permanece como uma não presença; como mera subjetividade.
A personagem destacada pela música é subjetividade, logo, incomunicável. A
música dá voz à sua incomunicabilidade, porém não lhe dá palavras. Assim,
a personagem possui intenção de linguagem, mas não linguagem. Tudo o que
ela diz é da ordem do vir a ser dito, posto que se disser algo,
individua-se e comparece à ameaça do indeterminado. Assim, a música revela
o dilema trágico da personagem: de um lado permanecer como
individualidade, permanentemente ameaçada pela morte; de outro,
desvanecer-se, tornando-se uma não presença, morrendo enquanto substância.
Portanto, a música diz o que não dito não quer dizer: que a morte é
inexorável e que nossas escolhas nos levam a ela. O não dito não é falta
de palavra, mas um excesso.
O sexto tipo de usuário alcança o não dito da música, mas não sabe ainda o
seu ser em si. Aquele que quer saber o significado da música deve viver a
sua experiência radical. Deve ele, pois, estar na situação da personagem.
O caminho para isto tem seu início naquela experiência vivida pelo quinto
usuário, ou seja, a da congenialidade. Porém, no âmbito desta experiência,
há de optar pela aceitação do não dito insinuado. Aí se constituirá o
Sétimo Usuário. Este possui existência poética. Assim, não foge à dúvida
essencial: edificar-se como indivíduo destinado à morte, ou desvanecer-se
diante da profusão de possibilidades abertas pela matéria da obra. O
Sétimo Usuário é indivíduo, na medida em que se edifica na relação de
alteridade radical com os entes que o circundam. Mas esta alteridade, ao
mesmo tempo que delimita topologicamente o eu e o outro, possibilita a
inclusão mútua entre o eu e o outro, posto que estes partilham de uma
necessidade recíproca. Nesse sentido, o Sétimo Usuário está nas coisas que
manuseia, do mesmo modo que elas estão nele. Há, por conseguinte, congenialidade entre indivíduo e mundo de significados, e, devido a esta
congenialidade, o Sétimo Usuário se individua no dito da música e no
referencial, vivendo intimamente a experiência do estilo. Por exemplo, é
ele que sobe e desce os degraus de uma melodia, como se andasse na escada
de sua casa. É ele também que finda ao final de cada cadência, como se o
fim de um trecho musical fosse o fim de um dia. É ele que oscila entre os
movimentos de atração e afastamento dos acordes. É ele, o Sétimo Usuário,
que infere a cor das tonalidades e decide chamar a tristeza de escuro e a
alegria de claro. É ainda ele que, segundo sua expectativa, pressente a
chegada de um novo evento musical, como se adivinhasse a aproximação de um
amigo. O Sétimo Usuário descobre, no tempo da música, a relação e a não
relação, e, por isso, captura a circularidade das estações do ano, a
linearidade dos encadeamentos causais e a aleatoriedade dos
acontecimentos. É ele, por fim, que, ao acatar as referências da música,
quais sejam as citações intertextuais e os textos exógenos, converte-se em
local, onde a música realiza sua historicidade.
Entretanto, o Sétimo Usuário deseja a forma em si; a forma genérica e
inominada, que é latente em qualquer forma individual. A forma em si é a
medida da medida das outras formas, o horizonte mirado pela intenção do
artista. A forma em si é o objeto do sexo sem gênero, a fonte de atração
inexorável que convida o indivíduo a sair de si mesmo e a oferecer-se ao
sacrifício. A forma em si é o princípio atuante que dá estatura a toda e
qualquer forma. Como tal, é constante e genérica. No entanto, ela
singulariza-se no processo que diz respeito a uma forma singular,
circunscrita em suas possibilidades ontológicas. O cessar do processo é
que dá o caráter de fechamento à forma. Porém, esta, enquanto composto de
intenção formativa e matéria, converte-se em um organismo que contém
possibilidades ontológicas latentes. Nisto reside seu caráter de abertura.
(PAREYSON, Estética: teoria da formatividade, 1993, pp. 204-210)
A forma em si é objeto da promessa de infinitude. Logo, seu discurso é a
recusa da linguagem, pois é esta recusa que a faz existir como promessa. É
por desejar a forma em si, que o Sétimo Usuário renuncia à individualidade
a atira-se à amplidão do ser. E neste âmbito, ele converte-se em não
presença imbricada à indeterminação da matéria, como se ambas fossem uma
só. O Sétimo Usuário, mesmo sabendo-se finito, convive com a promessa da
infinitude, posto que a intenção formativa é parte constitutiva de sua
estrutura existencial. Logo, a música em sua vida é um acréscimo de não
dito. Por isto, aparenta-se distraído ao dirigir um veículo, ou mesmo ao
olhar o abismo da janela de um avião. O Sétimo Usuário é um ausente,
porque suas funções orgânicas estão suspensas pela música que o faz
permanecer no equilíbrio tênue entre o determinado e o indeterminado. A
opção por qualquer um destes pólos é um gesto de morte. Então o Sétimo
Usuário vive morto e morre cada vez que sabe a música em si. Seu destino
trágico é anunciado pela música, portadora do convite à morte, ao
sustentar com seu caráter de não dito a ilusão da conquista da infinitude
no indeterminado. Esta ilusão, por sua vez, alimenta-se do desejo pela
forma em si.
JOSÉ EDUARDO COSTA SILVA
é professor de estética e alaudista. Mestre em Musicologia, atualmente cursa
o doutorado em música na UNIRIO.
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