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régis bonvicino


fábulas poéticas para os olhares de Nunca

 

 

 

Francisco Rodrigues da Silva, 24, que inventou para si o pseudônimo artístico de Nunca, começou a grafitar em Itaquera há mais de uma década. Foi criado por uma tia dos seis aos doze anos, em razão de sua mãe, dona Rubenita, ter vivido na Itália durante seis anos, para seguir trabalhando como empregada de uma família italiana. Conheceu seu pai apenas no início dos anos 1990. Nunca se mudou, em 1997, para o Cambuci, bairro onde viveu e manteve seu ateliê Alfredo Volpi. Participou de exposições coletivas na Galeria Triângulo, em 2005, na Fortes Vilaça, em 2006 (neste caso, com Adriana Varejão, Ernesto Neto, entre outros), no Museu AfroBrasil, na Grécia, e fez uma individual no MAM, dentro do Projeto Parede, também em 2006.


Nunca se distingue pela concepção dos olhares de suas personagens, pelo uso da cidade como suporte dinâmico, por um figurativismo crítico e por explorar quase nada o universo da pop art popular, ao contrário da maioria dos grafiteiros. Ele está fora do mainstream do grafite e o transcende. Seus trabalhos são verdadeiras narrativas: contam histórias, muitas vezes complexas. Está voltado para a recriação das figuras indígenas e afro-brasileiras – por meio da técnica chamada trama holandesa – em situações urbanas agudas, reinserindo-as – sobretudo as indígenas, vítimas de um genocídio – no dia-a-dia da cidade, lembrando – pela violência ostensiva das figuras – um dos trechos do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade: “Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz”. Ou então volta-se para a recriação estilizada, como caricaturas, de figuras advindas da pop art erudita de um Roy Lichtenstein e seus traços duros e secos. No grafite Imitação de vida (avenida Brigadeiro Luís Antônio), que comento a partir de uma foto do poeta chinês Yao Feng, feita em maio de 2006, em São Paulo, a personagem tem o olhar vazado: suas íris, uns círculos quase completos, lembram vagamente cobras saltando do globo; o rosto (delineado pela cor branca e nítida, tanto quanto o nariz negro e proeminente) revela-se tenso, bastante contraído, com o nariz incisivo e a boca severa, raivosa, provocando medo em quem o vê. Alguém mais apressado poderia dizer que o olhar é vazio e expressa o vazio deste tempo. Mas, além disso, o rosto da personagem revela igualmente temor. Desse modo, os passantes, num diálogo silencioso com o grafite, estão inexoravelmente incorporados a ele, numa trama de paranóia e susto. Este é o trabalho mais lichtensteiniano de Nunca: seu exercício de compor com traços bem recortados. O título, inclusive, já o diferencia da maior parte de seus pares: Imitação de vida, quando – é de se supor – outros artistas do grafite escreveriam “imitação da vida”; na locução “imitação de vida”, pode-se ler, entre outras coisas, “imitação devida”, num tom agressivo com o modelo, no caso, Lichtenstein.


Em outro grafite (num muro de Atenas), que se desenrola num mural gigantesco, uma personagem com características mais afro-indígenas ajuda um braço imenso, que sai praticamente da calçada, a enfiar um Cadillac na boca de uma personagem com características mais americanizadas, esta com máscara (de plástico?) e aquela com um cabelo-capacete, que nos remete ao corte de cabelo dos índios. Os narizes são diferentes: o do afro-indígena é menos saliente, o da personagem que engole à força o Cadillac é tão proeminente quanto o nariz da personagem de Imitação de vida; há um rosto solto, com um colar, que se assemelha a uma cobra, sobre o braço gigantesco; essa personagem traz, nas proximidades de uma de suas orelhas, penas, como aquelas usadas pelos índios. Na foto, o grafite imenso esmaga a pequena calçada para dialogar diretamente com a pista, de onde parece ter sido arrancado o Cadillac. A interação mural/pista desmonta qualquer idéia de figurativismo passivo. Nunca inventa personagens que, na verdade, testemunham e interagem com a cidade. Daí a relevância dos olhares que cria para suas testemunhas e do traço figurativista de seu trabalho, um figurativismo reinventado e revitalizado pela pressão das ruas, aliás, não há grafites exclusivamente “abstratos”, que não seriam peças pertinentes para a comunicação a que se propõem nas cidades. A personagem afro-indígena tem um olhar determinado, e a personagem que engole à força o Cadillac, um olhar perverso.


Na foto de um outro grafite (Minhocão), o rosto maior tem os olhos negros, nítidos, de um negro. O olhar dessa personagem expressa crítica. O segundo rosto, um pouco menor, é feito num trançado preto e marrom, de aparência indígena, e seus olhos são losangos. Seu olhar expressa agressividade, mas, ao mesmo tempo, dúvida: não se sabe se ele apóia a aspereza do olhar da personagem de feição negra. Há uma razão: Nunca escreve a palavra “canibal”, o que explicita a competição entre eles. Um morcego, que leio a partir da mão que surge de modo abrupto na cena, com olhos vazados (unhas pintadas de branco), vem logo a seguir em busca de sangue (talvez de um desastre que possa acontecer no asfalto), e uma terceira personagem, um tipo de inca, com olhos verdes, mostra-se pronta para a guerra, enquanto os carros passam, com as caras de seus motoristas expostas, visíveis, em diálogo com o mural, que, aliás, mostra as laterais de concreto do viaduto. Os rostos dos motoristas, atados aos cintos de segurança, olham para frente e parecem nada enxergar, a não ser a pista, ou seja, a competição frenética, acirrada. Na palavra “canibal”, do jeito que Nunca a escreve, partida em duas (“can” e “ibal”), lê-se portanto “can”, lata em inglês, e, por alegoria, igualmente “prisão” ou “aprisionamento”. “Iba”, que nos veio do tupi “iwa”, quer dizer “árvore”, “fruto”. A solidariedade se desfaz diante da luta pela sobrevivência, como nos aponta a palavra “bala”, contida anagramaticamente em “canibal”. Os vários tons de vermelho mostram-se adequados como escolha de cores para o painel.


Os dois mais melancólicos olhares de Nunca estão em dois grafites que retornam a suas recorrentes personagens afro-indígenas: figuras descaracterizadas, distorcidas, como todas. A primeira é um elaboradíssimo índio negro (avenida Brigadeiro Luís Antônio), grafitado ao lado de uma porta de garagem. Na porta, lê-se: 03/ MCs/ AND./ NUN/ CA. Excetuando-se a assinatura Nunca, os outros dizeres representam uma pichação alheia, incorporada ao trabalho. A notação remete, como toda pichação e todo grafite, às adivinhas, aos enigmas da tradição popular. O ponto final em “AND.” é significativo e dialoga diretamente com os losangos perfeitos dos olhos extremamente entristecidos da figura: um conectivo, todavia, estancado por um ponto final. O nariz é adunco. E os dentes, muito brancos, com a boca meio aberta, contrastam com a tristeza dos olhos, revelando – “entre dentes” – raiva e vida. O outro grafite de olhar melancólico (Largo do Cambuci) traz, na figura distorcida de um negro de orelhas pensas e imensas; dois outros homens, fazendo as vezes de olhos; um índio nu, de costas, faz as vezes de nariz. As três bocas estão abertas. Os olhares dos homens que substituem os olhos expressam, o do lado esquerdo, indignação, e o do lado direito, um vazio, como na personagem de Imitação de vida. Não bastam dois olhos, é preciso quatro para testemunhar o que se vê, no entanto, o que se vê é omitido pelo autor da cena; não bastam duas orelhas, é preciso três para ouvir palavras ou sons, que também o autor omite da cena (que cena terrível seria essa?). Sim, três orelhas, porque a quarta, do lado esquerdo, é um pneu. O rosto parece se erguer de uma espiral de arame, que representaria o corpo (um corpo empalhado?). O índio-nariz parece querer empurrá-lo para longe do que ele vê e ouve: instala-se o paradoxo, como no poema “Áporo”, de Carlos Drummond de Andrade: “Um inseto cava/ cava sem alarme/ perfurando a terra/ sem achar escape...”. Os olhares de Nunca não encontram escape: revelam por subtração, num plano ideológico, o desgaste acentuado do mundo e a falta de um pensamento eficaz que o transforme, inclusive, por meio das artes; é como se cumprisse o roteiro que Murilo Mendes viu em Malevitch: “Situa o objeto abatido/ Esgotado pelo futuro...”.
 

 

RÉGIS BONVICINO é autor de diversos livros de poesia, entre eles 33 poemas (1990), prêmio Jabuti, e Primeiro Tempo (1995), que reúne seus três primeiros volumes de poemas. Tem traduções reunidas no livro A um, de poemas de Robert Creeley. Muitos de seus poemas estão traduzidos para o catalão, o chinês, o dinamarquês, o espanhol, o francês e o inglês. Régis é co-editor da Sibila – Revista de Poesia e Cultura.
 


 

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