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marpessa de castro


cotidiano no diminutivo duas fábulas

 

 

 

História-fábula com um tigre, um anjo e uma boneca

 

O anjo e a boneca não ficaram contentes quando o tigre chegou.“Preferia um gato”, sussurrou a boneca na orelha rosada do anjo. “Eu também”, respondeu ele. O tigre não fazia nada, só dormia. Mas era um estorvo. Ocupava espaço demais, naquela sua postura descansada e inofensiva. Agora, com a presença do indesejável animal, o anjo e a boneca conversavam menos. Ficavam constrangidos. O tempo demorava muito a passar. Trocavam rápidas palavras em voz muito baixa, sempre a respeito do tigre, sobre o desconforto, a inconveniência. Mas de nada adiantava reclamarem e maldizerem o tigre, disso sabiam muito bem. Quem os ouviria? Impotentes, anjo e boneca recolhiam-se aos seus murmúrios.


O tigre só dormia. Seu dorso era bastante alaranjado. Quando o sol se debruçava nele pela manhã, transformava-o em ouro puro, uma beleza viva e ofensiva para o anjo e para a boneca. Não que fossem feios, mas o tigre! Todos o adoravam. Todos o acariciavam entre as costumeiras interjeições de agrado. Todos o queriam. Era insuportavelmente belo.


O que mais irritava tanto o anjo como a boneca era o fato de que o tigre os ignorava. Nos raros momentos em que estava desperto, não se dignava a dirigir-lhes a palavra; por entre os olhos semicerrados, espiava o vestido verde e dourado da boneca e a túnica azul do anjo, e até os considerava bonitos, mas logo voltava sua atenção para coisas mais interessantes: seu sono, por exemplo.


Em uma manhã na qual a boneca despertara particularmente histérica, esta propôs ao anjo que expulsassem o tigre. O anjo concordou. Foram até o tigre e ordenaram a ele, sem rodeios, que partisse. Deixaram claro que não o queriam por perto. Mas, como não souberam explicar seus motivos, o tigre decidiu ficar onde estava. E pronto. Não desistiriam tão fácil, no entanto. O anjo deu a idéia de tornar a vida do tigre bastante desagradável, até que ele resolvesse, por conta própria, ir embora. Passaram, os conspiradores, a incomodar o tigre. Atiravam-lhe objetos vários sobre o corpanzil. Espirravam água em seus bigodes. Espetavam-lhe a barriga com alfinetes. Divertiam-se com as travessuras, as quais o tigre suportava com resignação e suspiros. Pensava: “um dia se cansam”.


Mas não se cansavam. A cada dia inventavam novas formas de incomodar o tigre, uma mais perversa do que a outra. A boneca chegou mesmo a tocar fogo em sua cauda, mas antes que o tigre acordasse o anjo apagou a chama. Não deviam esquecer de que estavam lidando com um espécime perigoso.


Numa tarde quente de novembro, o anjo teve a triste idéia de matar o tigre. Aproveitaram o silêncio vespertino e, munidos de uma grande pedra, esmagaram o crânio do bicho sem piedade. O infeliz nem sequer teve tempo de sentir dor. A boneca aplaudiu a vitória. “Conseguimos, anjo, conseguimos! Como somos corajosos!”. O anjo: “sim, boneca, somos corajosos e decididos!”.


Dias depois, anjo e boneca estavam em seus lugares quando um novo tigre chegou. Era em tudo semelhante ao anterior: tamanho, cor e hábitos. Muito bonito, muito grande e muito dorminhoco. Ignorava o anjo e a boneca; pode-se dizer que este tigre os desprezava. Enfurecidos pela audácia do recém-chegado, ambos decidiram matá-lo também. Conseguiram uma nova pedra, ainda maior e mais pesada. No escuro da noite, aproximaram-se em completo silêncio para executar a tarefa que, uma vez, dera-lhes a liberdade de volta. Não se soube o que deu errado. O plano era muito bom e à prova de falhas. A intenção era justa. Eram dois contra um. O erro foi, possivelmente, o fato do tigre tê-los devorado antes que pudessem pensar em fugir.
 

 

Cotidiano no diminutivo

 

Acabou a farra
Formigas mascam
Restos da cigarra.
Paulo Leminski


Um ângulo qualquer do quarto. Uma aranha rajada, ínfima, adormecida. A poeira mascada e regurgitada, compondo uma fina malha protetora, junto aos fios de teia. A aranha move suas quelíceras. Seus olhos estão abertos, mas pouco vê. Em sua curta existência, almoça o mundo inteiro. Uma traça incauta aproxima-se, rastejando, arrastando-se em seu invólucro duro e acinzentado. Respirando, a aranha aciona os perfeitos mecanismos e captura a traça, que tenta inutilmente libertar-se. Assistimos ao inevitável, sem dor. A aranha enrodilha sua presa com rapidez.


Chegará o dia em que a traça devorará respeitosamente a aranha. Incrédula, duvidará da própria existência; duvidará da existência de um Deus que torna possível que as coisas fiquem tão completamente fora de lugar. Os procedimentos serão certeiros, como os da aranha, mas carregados de indescritível espanto: a traça puxará para dentro de seu invólucro a aranha aos pedaços, enquanto pensa “isto não está certo, não está certo, mas me faz feliz”. Ao final da refeição, em sua forma alada, riscará um silencioso desenho no ar.



MARPESSA DE CASTRO é jornalista e escritora. Publicou textos em diversos sites e participou de projetos literários na internet. Os contos publicados aqui fazem parte de seu livro inédito Cotidiano no diminutivo & outras histórias.  Mantém o blog Casa dos espelhos: casadosespelhos.blogspot.com
 


 

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confraria do vento

 

 

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