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rod britto
expropriações invejosas
– Eu sou o samba
A voz do
morro sou eu mesmo sim senhor
Quero mostrar ao mundo que tenho valor
A Voz do Morro, composição de
1955
do sambista carioca Zé Kéti
Hoje em dia, no campo da apreensão cultural e de seu desenrolar, não é
muito difícil observarmos o quanto algumas coisas são adaptadas para
atender a outras, na busca de entreter e gerar fáceis lucros – qualidade
maior e irresistível sempre notável da raça humana; e aqui, façamos notar,
até por isso mesmo, já não conseguiríamos não falar em atender aos outros
também. O fato aí marcante, e talvez sem volta, é que em muitas das vezes
em que isso ocorre, quando de uma adaptação, cai muito a qualidade do que
provenha de sua forma original, ou ao menos nela inspirada – uma cultura
qualquer com seu valor inestimável –, senão ocorrendo por completo a perda
de valor e qualidade (mas desta vez, por outro lado, entrando valores
contáveis e a qualidade duvidosa no que já nem tão certo se poderá chamar
cultura verdadeira – também não havendo cultura falsa; cultura ou é ou não
é cultura, não cabendo gradações de minimização ou maximização, no emprego
do termo). Ou seja, desde que isso aconteça, visível, aparentemente, como
uma adaptação, aí se estará forjando uma identidade cultural, e uma nova
cópia dela, se depois de adaptada novamente, a partir da primeira
adaptação. E daí faz-se o coro dos expropriadores invejosos, como que
através de carimbos culturais disso ou daquilo, numa chamada mais do que
genuína da publicidade: pode chegar, que aqui tem um pouco disso e
daquilo, como numa feira, ou muito disso, ou muito daquilo, original de
fábrica, alguém já passará para recolher o valor dos ingressos, tomem seus
assentos, a presente sessão demora esse tanto de tempo – isso o mesmo que
se pode chamar um deslocamento cultural e instantâneo, muito bom a quem o
participa (ou ‘o adquire’), pagando pra ter (mas também marcadamente a
sensação de pertencer àquela cultura, ou seja, de agora em diante, ela o
tem como membro ou representante, no que talvez o façam acreditar, ou quem
simplesmente se considere assim, tomando parte), após recolhimento do
ingresso. Mas como dito acima, a inserção cultural, após maneirarem-se,
mesmo deixando-se razoáveis os termos da própria cultura aos não iniciados
nela – e se me é possível falar assim – ainda aqui, será de qualidade
duvidosa, decorrência de uma sede de exploração cultural, desta vez da
parte de quem muitas vezes acredita estar distribuindo cultura,
amaneirando-a, ou que acredita contratar e dirigir seus fatos mais
urgentes, ou vendendo-a, mais acertadamente. Mas, por ora, vejamos aqui
apenas os casos – esses sim mais urgentes – da manipulação de algumas
culturas pela sociedade, ou, mais especificamente, por grupos mais
individuais da cidade do Rio de Janeiro.
Seja vendendo cultura no formato de pacote (um dia por dentro de uma
cultura especial da sociedade, essa manipulada de forma que permita a
melhor recepção – quando não encenada, e então artificializada – aos que
queiram tomar parte por ali, estrangeiros numa favela do Rio de Janeiro,
por exemplo, integrando-se à paisagem mais pobre, como se ali fosse o
normal que os desejassem por perto). Seja por uma noite (no caso de uma
casa noturna feita para ser ‘tipicamente carioca’, ao gosto dos turistas,
chapéus de malandro distribuídos, também as letras do samba, este e seus
objetos também tão socializáveis, como alegorias, onde todos nós, até
mesmo os cariocas, esforçamo-nos para que sejamos sambistas de primeira e
última hora, uma cultura que não é de todos os cidadãos, mas, mais
apropriadamente, de apenas uma parte, digamos, os mais musicais entre eles
– se é que podemos afirmar que o samba é mais de um que de outro carioca,
ou baiano, ou paulista, sua própria origem ainda muito discutida hoje, mas
que, sem dúvida, de uma última geração de turistas europeus em visita ao
Rio é que não é). Seja o que for, da forma que manipularem – no sentido de
meterem as mãos, as mesmas mãos que enfiam nos bolsos –, deixando claro
apenas, se tanto, algumas adaptações, certo é: haverá cultura para todos
os gostos, tamanhos e preços. Não obstante, a partir de sua pretensiosa e
irregular divulgação, a cultura do samba como outras no Rio, ficam sendo
também de ‘quem quiser pegar’, numa gíria aqui tão bem combinada da
própria cultura do samba, e pegar após mínimo exame de temperamento
cultural e de adesão competente, por quem seja. Ou antes, a quitação de
ali se admitir, naquela cultura, pra depois falar que possui tal cultura,
tão desarrazoadamente.
Diante disso, o fato cultural da revolta, do poder de se inquietar, desde
sempre, comum a quase todos os povos; e saltando igualmente do chão de
pedras do Rio colonial, até os dias de hoje – ou pelo menos é o que se
espera de grupos sociais, culturais e excepcionais – constituindo esses
juntos uma enorme sociedade variada e passível de todo tipo de revoltas e
contra os assanhamentos mais sem respeito – povos dentro de povos, que
desejem se afirmar por seus direitos mais esclarecidos; e então,
acredita-se, esse poder de revolta, na sociedade, o líder cultural em
naturalidade, discurso fundamental, mas dessa vez, o todo cultural pelas
partes culturais, soltas, assim sendo: ninguém pode falar tão
tranqüilamente, partindo do nada, em tomar assento e descansar em uma
cultura, seguindo à risca uma publicidade, nem tomar parte como se uma
cultura possa de uma hora para outra, ou por uma noite, pertencer a
alguém. Muito menos alguém achar que pode contratá-la, explorá-la e fazer
o controle das suas entradas e saídas, admissões e demissões, sob a
tabuleta inflacionária em vigor – esse o ponto mais crítico (o que nos faz
até lembrar como o são algumas religiões); mas, que, é provável, isso não
exista de nenhuma forma teórica, por vários estudiosos e entendidos
naturais de cada cultura, fora escrito nos catálogos publicitários de
cultura, visando um público-alvo. E não há mesmo termo-expressão mais
improvável do que este público-alvo, em se tratando de cultura, dado que
uma cultura é para ser atrativo dela mesma, pelos indivíduos naturais, e
não aos seus agarrados culturais mais urgentes, que não se demorem por ali
nela – sendo a cultura social (e aqui nesse estudo estamos lidando
exclusivamente com culturas sociais, ou seja, apenas as culturas
observadas entre seres humanos e seus grupos mais prováveis como
improváveis) de um lugar (por exemplo, com efeito,
seria, sim, após uma troca de gerações, após maior termo de aferimento
cultural, um fato comumente percebível, e não de passagem, turisticamente,
só para ver como é que é) –, ou mesmo nela – detendo-se na própria
cultura, em se tratando de uma prática cultural sui generis – como uma
libação apoteótica ou uma auto-imolação, por exemplo, observada por alguns
indivíduos, mas sem localidade definida. E mais: cultura também é objeto
de lazer e distensão, um discurso, harmônica e naturalmente, aos seus
sujeitos de junção, esses que, avizinhando-se dali ou dela, amansando-a
como devorando-a, enfim, levando-a a outros lugares e regiões,
‘adaptando-a com respeito e propriedade’, também na forma de cultura,
podem se afirmar com tranqüilidade que portadores dela ou simplesmente
nela; ainda assim, como os mais circunscritos nela e a ela,
não-possuidores dela, sem sabermos ao menos a extravagância de formas que
possa vir a ter e por onde ainda possa vagar aquela prática cultural, seus
objetos naturais e agentes diretos de expansão, mas esses sem a menor
fecundidade comercial quanto menos raquítica). Como exemplo, eu de uma
hora para outra não poderia me afirmar um descontente, um revolto, se não
fizesse olhado ou mesmo simplesmente não fizesse parte de uma família ou
grupo que, sendo social, tradicionalmente se levantasse contra uma
quantidade mínima de coisas, se inquietasse e pedisse por transformações –
senão nem mesmo saberia dessa possibilidade reivindicatória, a de me
rebelar, da qual me utilizo aqui com naturalidade, sabendo bem que de onde
eu vim – de uma sociedade na qual ainda estou e que quis me fazer um
comentarista dela – esse foi sempre o discurso corrente de outros
indivíduos antes de mim, atrás eles de suas questões ou pelas dos outros.
E como referido antes, é o que sempre aconteceu em muitas sociedades,
entre muitos povos, povos dentro de povos. Mas até aqui, em teoria.
É claro que isso tudo na prática é de outra modo, e nem indo muito mais a
fundo: existe, sim, nas sociedades capitalistas modernas os públicos
consumidores de cultura; estas as sociedades que tiram proveito –
literalmente falando – de seus bens maiores que são os seus fatos e
fatores culturais reunidos – e o normal é que esses sejam ainda os
identificadores mais legítimos de um país, de uma comunidade, de uma
cidade, um bairro, uma tribo, um povoado, uma região, etc, e que,
sobremaneira, são vistos apenas de perto; mas que estão sendo
grosseiramente sinalizados de longe como atração maior nesses lugares, por
fogos de artifícios publicitários, que não costumam falhar, como os
serviços culturais contratáveis, manifestamente sem qualidade aos olhos de
bons entendedores e dos próprios indivíduos naturais dessas culturas:
exemplo maior trabalhado aqui, o samba, exibido na cidade tanto turística
quanto política do Rio de Janeiro, e que já poderão chegar todos e dar
lotação máxima aqui em nossas casas – simuladas, mais e menos
dissimuladas. Que sobre a cultura do samba e seus objetos naturais, já
procuram esgotá-los, enxugá-los, pra não dizermos desastrosamente ainda
outras coisas, que fariam sumir de vez algumas culturas – e aí não seriam
nem mesmo apreciadas por elas mesmas, aos seus próprios controles e
cuidados, ou modificadas, ou passadas naturalmente adiante e às próximas
gerações.
Como não devemos ainda agora nos estender nesse tema, reparemos apenas um
exemplo (ou alguns, dentro de um mesmo) em situações dadas, na cidade do
Rio de Janeiro, em se pensando (e passando) o samba, e ao longo da
descrição tentemos, sem ir tão mais longe, identificar o causador primeiro
disso, ou seja, das adaptações em nome da cultura original (ou bem contra
ela), e, sem muita demora, mas com muito estrago, suas não tão claras
primeiras conseqüências a uma ou a várias culturas que, às vezes, de fato,
não possuímos, mas que vem também a reboque do samba, na esteira desse
pagode, sobre uma laje, lavando tudo. Então, convoquemos agora a uma
acareação, os invejosos expropriadores culturais para que possamos tentar
fazê-los entendidos, no mínimo; para que possamos já não nos furtar de
tais lesões, ou tampouco adicionarmo-nos a elas; uma cultura maior, quase
universalizante, a da revolta, para cima de uma outra igualmente
importante em grandeza, a da expropriação, para que desse choque sobreviva
apenas uma cultura menor, mal-assombrada, muito mal representada para o
mundo, desde que movimentando números de mercado e nas economias gerais;
senão sufocá-los de tanto samba, quem sabe, apenas desencorajá-los, os
expropriadores, pela muito mole certeza da parte deles de que não fazem
bem a ninguém com suas práticas supostamente adaptativas – já que os
agentes culturais mais originais não se vêem há muito tempo livres, nem em
condições, ou com chances iguais a eles, de rebater as expropriações de
seus códigos e objetos mais legítimos. Apropriemos-nos, de ora em diante,
aos poderosos expropriadores, de suas causas nervosas para com os jogos
culturais – assim, contemporaneamente, já podendo ser interpretadas as
muitas culturas espalhadas, devido à própria maneira e sem bloqueio que em
muitos casos vem sendo tratados os fatos culturais, até então sociológica
e historicamente amparados e imunes, se nunca aos olhares e às descrições
dos curiosos, pelo menos às mãos dos saqueadores que já buscam levá-las
para retransmiti-las, sem muito êxito cultural fora os lucros, em outras
regiões e através de outras pessoas estranhas a essas culturas – seriam
então, também, atravessadores fracassados, fosse essa a sua intenção
maior, a de aumentar o alcance das culturas – mas não, aqui, são apenas
amplificados e tão indefinidamente os jogos de samba, os jogos de favela,
jogos da cultura negra, jogos da cultura pobre; esta, aqui, cabe dizer,
até uma coisa não adaptada, mas forçosamente inventada e tão reproduzida
contra a vontade, a cultura de ser pobre, como se isso fosse ao mais
natural e transmitido deliberadamente por alguém, e quando necessário
levando-a consigo, retornando sempre à idéia de uma cultura ser atrativa
dela mesma; mas que, ainda assim, facilmente já virou atrativo à sua
exterioridade, adaptaram-na mesmo assim, como os turistas pegando o jeito
de ser e falar das comunidades mais pobres, testemunhando-as em discos e
vídeos alguns dos que possam depois transformá-las em bens duráveis,
talvez o seu oposto e tão inventado quanto, esses os itens da cultura
rica, a cultura de ser rico – vejamos aqui outra vez, como sempre, os
expropriadores invejosos. Ainda, e pior: num conjunto, aparelhadamente
comercial, agora são elas, as culturas originais, investidas como lances
culturais, tanto pelos expropriadores (saqueadores, atravessadores, ou o
que quer que seja, por exemplo, os piores contínuos das adaptações, também
apontados acima, no que nunca estão estes sozinhos por todas as funções,
mas que, logo, neste caso generalizam-se), tanto pelos públicos-alvos, que
no intuito de adquirir culturas erram desde sempre em se falar assim – e
botando a mão no bolso muito tranqüilamente. No entanto, e no mais, não
poderia mesmo ser cobrada responsabilidade e plena consciência destes
públicos, dada a alta propaganda em alguns lugares, muitas vezes até o
anúncio oficial, para com esses investimentos culturais – e a cidade do
Rio de Janeiro com a sua chave mestra, dos pagodes nas lajes, dos
carnavais e das lavagens políticas, passando de mãos em mãos. A eles,
constituindo um grupo exorbitante, e que acaba por estourar os números,
resta o fato cultural de serem o público; púbico de culturas – jamais
pertencentes de fato a uma delas, se não houver maiores envolvimentos do
que os iniciais, os de tomada de conhecimento com os seus prováveis
souvenires, além das curtições. Mas, nós, revoltosos, sejamos então, por
aqui, a partir de agora, os expropriadores da cultura capitalista mundial
de produzir catálogos para o consumo de culturas menores. Entremos em
choque e vejamos no que dá – se não levar a nada, sejamos ao menos os
segundos invejosos. E se não colocamos ainda todo mundo pra sambar é que
não enterramos ainda em nossas cabeças o chapéu de malandro mais adequado
– o que cole perfeito e tente reproduzir mais estereótipo possível, como o
seria em sua cultura mais original. Então estão esperando o quê? Já peguem
e enterrem os seus, cheguem junto, e participem, vocês não podem ficar
fora dessa!
ROD BRITTO é
jornalista e escritor, autor dos livros Barriga D’Água e Os
Infames (junto aos poetas Guila Sarmento e Xisto da Cunha, os outros
Infames, que seguem em atividade, propondo leituras e linguagens paralelas
à poesia gentil). Participou também dos livros CEPensamento, pela
Editora Azougue, e República dos Poetas, uma Antologia do Museu.
Atualmente, é um dos organizadores do evento multimídia CEP 20.000.
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