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arjen duinker


pedacinhos de carvão

 

ARJEN DUINKER é um dos poetas vivos mais considerados da Holanda. Nascido em Delft, em 1956, e formado em filosofia e psicologia, publicou, além de um romance, onze volumes de poesia. Em 2001, recebeu o Prêmio Jan Campert pelo livro De geschiedenis van een opsomming (A história de uma enumeração, 2000). A coleção De Zon en de Wereld (O sol e o mundo) ganhou o Prêmio de Poesia VSB 2005 e foi publicado em tradução inglesa na Austrália. A obra de Duinker está traduzida em várias línguas, tendo também constado em várias compilações na França, Portugal, Itália, Irã, Rússia, Reino Unido, China, Finlândia, Croácia e México. Duinker trabalha, em conjunto com o soprador de vidro Bernard Heesen, no dicionário enciclopédico O Mundo do Soprador de Vidro. Juntamente com a poeta francesa Karine Martel, escreveu En dat? Oneindig/ Et cela? L'infini (E Isso? O Infinito). Em 2007, Arjen Duinker publicou o "quarteto para duas vozes" Starfish, Zeester, Etoile de mer, Estrella de mar (quatro poemas diferentes em quatro línguas diferentes). Atualmente dedica-se a parcerias com o trompetista Eric Vloeimans, o compositor Hans Koolmees e o guitarrista de flamenco Eric Vaarzon Morel. Arjen Duinker continua a residir e a trabalhar em Delft. O presente poema foi lido em Holandês no VI Encontro Internacional de Poetas de Coimbra e foi traduzido por Arie Pos, exclusivamente para a Revista Confraria.
 

 

Ouve
Ouve bem
O que dizes ao mundo?

Deseja deseja deseja...

Humedecer uma fruta de veludo
Encher um cantil de couro
Levantar um pano de algodão
Deslizar por sombras de seda

Vazio
Saltar para o longe sem rédeas
Cheio
Saltitar com olhos que implodem
Cheio
Balançar boquiaberto
As crianças dormem o seu êxtase de juventude
A alegria de uma passa para outra
Indo
Vindo
Estrelas

Deseja deseja deseja...

As nossas mãos bebem proximidade
A areia e as cascas e as pevides existem como grãos
O cavalo e o burro e as moscas de experiência
Os flancos as pernas os braços as crinas em fogo

Lúcido
Com olhos em brasa e pedacinhos de carvão
Em brasa
E ouve claridade que não pode ser escavada
Inevitável
Com lábios e pés divinos.
As crianças sonham a cadência do seu êxtase
A noite dá a necessidade ao outro
No ir
No vir
O nascer do sol

Diz tudo isto baixinho às cordas e às baquetas
Di-lo também às árvores e à vastidão
Não te esqueces das carrinhas desengonçadas nem dos cristais
E tão-pouco dos proprietários

A mulher com as mãos ensanguentadas
Aparta as paredes do quarto
Lenta mas seguramente, puxando

O homem com as mãos curtidas
Aparta as paredes do quarto
Lenta mas seguramente, empurrando

O mundo começa a começar
O mundo começa com a lua
O mundo começou quando estávamos em silêncio
E quando um barquinho encalhou no sargaço
E quando uma nuvem desencalhou o barquinho
E quando o sargaço se transformou em linguagem
E quando o mundo pronunciou nomes
E quando dizíamos qualquer coisa

Carregas as minhas letras
Carrego as tuas letras

O que dizes?
Queres ouvir nomes?
De raparigas e rapazes e homens e mulheres?
Quais os segredos que queres ouvir?
Os de aqui a pouco?

O mundo é a lua
E o mundo é igualmente sem fundamento
Ouço
Ouço bem
Escuto as histórias que vivem nas dobras das pernas
Escuto as histórias que vivem em nervuras
As histórias do raspar escuto com uma mão na nuca
As histórias do atar escuto ao lavar a roupa

Um amigo meu queria salvar Althusser
E construiu uma coisa bela
Um ministro queria salvar o meu país
E não construiu coisa nenhuma

Conta lá conta lá até oito
Castelos no ar e mares espanhóis
Lábios e rinocerontes
Tubinhos e envergaduras
Cordas e trepadeiras

Adoras as canções de Gene Pitney?
Cause my baby lives in Mecca
Ou preferes Raffaella?
O mundo deste poema
É o de Darius Milhaud
E o de Johnny Guitar Watson

Ouve
Ouve bem

O mundo é da seca
O mundo é dos rastos
O mundo começa por começar
O mundo começa nas tuas mãos

As tuas mãos tentam alcançar a lua
As tuas mãos aquecem-se aos pedacinhos de carvão
Um puxão é uma queda de água
E eternidade é abraço
Mostraste-me tudo

Leio poucos jornais
Vejo poucos filmes
Bebo poucos martinis
Participo em poucas marchas
Levanto poucos pesos

Onde combinas comigo?
A lua é o mundo
Tudo rima com oito
Nada é tão preto como
Tudo é para cantar
Nada é tão mauve como
Tudo é para patear
Nada é tão vermelho como
Tudo é para afagar
Nada é tão azul como
Tudo rima com oito

Carrego as tuas letras
Carregas as minhas letras

Queres um exemplo?
O que é uma questão de consciência?

Ouve
Ouve bem

Caixinhas de ferramentas de qualquer espécie e medida
Carros de empresas com letreiros prudentes

Faço o mundo de uma face coberta
Faço o mundo de costas desnudadas
Fazes o mundo do vazio baloiçante
Faço o mundo de uma plena madrugada

Fazes a lua de pedacinhos de carvão
Faço a lua de sal
Fazes a lua de perfume
Faço a lua de pedacinhos de carvão

Anda daí à rua dos joalheiros alegres
Vamos lá buscar o colar do infinito

Anda daí à rua onde as raparigas jogam ao elástico

Anda daí à praça com as estátuas faladoras
Vamos lá buscar nomes polvilhados de canela

Anda daí à praça onde os rapazes lançam papagaios

Anda daí às colinas com vozes arenosas
Levamos para lá óleo que cheira a silêncio

Anda daí às colinas onde secam as flores

Anda daí às grutas com as paredes brilhantes
Levamos para lá solas dos pés chamuscados pelo fogo

Anda daí às grutas onde bebem os cavalos

Gostas de roupa de cama branca?
Também eu
Ardente como os teus olhos
Vermelho como os elementos
Mauve como as asas
Preto como os tacões
Azul como o desejo

Ouve
Ouve bem

As travessuras do vento são doces e apimentadas

Levantas-me
Olho para baixo
Pousas-me
Beijamos

O início do mundo é um nome de pernas para o ar

Pega primeiro numa côdea e depois numa travessa

Pega primeiro num canivete e depois num puxador

Pega primeiro numa colher e depois num algarismo

Deseja deseja deseja...

Deseja o ouvir
E o ouvir do girar
E o ouvir do roçar

Deseja o olhar
E o olhar para as pedras
E o olhar para as pernas

Deseja o desejo

És curiosa
És uma estrela de mar

Nalgumas regiões as palavras não têm sotaque
Nalgumas salas de aula os quadros trazem ditados
Nalguns enxames os lábios estão abertos

Conheces aquele gajo ali?
Aquele de óculos que está sempre ao telefone?
Há pouco tempo abriu um restaurante
Antigamente trabalhava numa cantina de um clube desportivo
Antes disso fazia limpezas
E antes disso dava aulas de natação

Uma amiga minha toma conta de camelos

De vez em quando vês concursos televisivos?
De vez em quando vês os comunicados da polícia?

Um amigo meu é soprador de vidro

Dás-me os teus tornozelos?
Dou-te os meus pulsos

Gosto de sonhar com o que não quero acreditar
Gosto de sonhar com o que quero acreditar
Sonho porque de outra maneira não consigo viver
És o pássaro dos meus sonhos

Ei, conheces aquela gaja ali?
Aquela de mochilinha bege e vestido às riscas?
Acho que é guia turística algures
Em tempos apareceu num anúncio de manteiga
Está diplomada para dar aulas de bowling
Tem os diplomas mais loucos

Em pequeno eu comia joaninhas

Ouve
Ouve bem
Tudo o que te conto é segredo
Esmaga todos estes segredos entre as mãos e constrói o mundo
Amassa uma massa do mundo e constrói a lua

Apetece-me comprar um bilhete
Para um jogo de cricket em Melbourne
Também gostava de ir a Kolkata ou a Leeds
Acho que um test match pode durar mais que cinco dias

Continua a saltar nos ramos das rugas do meu riso
Continua a saltar no centro escaldante do meu longe

Rastejo para os limites das tuas pestanas
Rastejo para os lábios flexíveis do teu nome

Fica presa nos raios do meu peito
Fica presa no nome flexível dos meus lábios

Subo para as cristas dos teus ombros
Subo para o centro flamejante da tua profundeza

Existem quatro mesas
Pousa na primeira um lápis
Pousa na segunda um suspiro
Pousa na terceira um postal ilustrado
Pousa na quarta uma mão

O que dizes ao mundo?
Ouve
Ouve bem

Existem chuvadas que fazem transbordar campinhos
Existem saraivadas que fazem respirar o mundo

Existem momentos que se disfarçam de períodos
Existem períodos que mudam de pele sem parar

Existem palavras que correm como rios largos
Existem cordas que trazem segurança

Existem maneiras para fugir com o começo
Existem jardins para baloiçar sem fim
Conhecemo-nos dos pedacinhos de carvão
Admiramos as crinas dos cavalos
Divertimo-nos com as luazinhas das unhas

Levanto-te
Atiras-te ao ar
Apanho-te
Abraçamo-nos eternamente

Não tenho carro
Não tenho banheira
Não tenho destino
Segues um rasto

Canto o mundo
Amo a tua voz
Fantasio o mundo
Amo os teus dedos
Encontro o mundo
Amo a lua

Pousar o silêncio das letras sobre a água
Drapear a elasticidade das letras por cima de um arbusto
Pendurar a realidade das letras num prego
Verter o eco das letras para um copo cintilante
Somar os nervos das sílabas como morangos
Subtrair os músculos das sílabas como framboesas
Multiplicar os tendões das sílabas como groselhas
Dividir os ossos das sílabas como laranjas
Ver a ausência das consoantes como uma chave
Dar os dias das consoantes a um piano
Esticar o linho das consoantes pela minha pele
Segredar as aberturas das consoantes ao teu ouvido
Serrar a presença das vogais em forma de uma porta
Dar as noites das vogais a um saxofone
Atar o veludo das vogais no teu cabelo
Segredar as aberturas das vogais ao meu ouvido

Isto é um segredo aquilo uma vénia
Isto é uma observação aquilo uma piada
Isto é um acto heróico aquilo um barulho
Isto é uma bagatela aquilo um gesto

Apenas e só
Anda daí, tomamos o caminho com duas caras
As interrupções vão-se enfiando
Motivando o seu amor pela boca

Todas as variáveis descobrem as constantes
Olha, o tecido afaga o exterior
As sombras atordoam a flor
Com os seus movimentos circulares

Aqui a hora conta a sua história
Ouves o sussurrar?
Aqui a hora conta o seu futuro
Ouves o arfar?

Com folhas ondulantes a flor convida
O sol para o seu centro
Olha, o tecido afaga o interior
Todos os músculos descobrem os músculos

Amanhã os segredos significam ontem
As erupções abrem lábios novos
Anda daí, quadraremos o agora
Apenas e só

Onde a flor mostra a sua beleza
Vemo-nos sempre graças aos pedacinhos de carvão

Ouve
Ouve bem

Isto é o som da madrugada
Na madrugada
Até à madrugada
 


ARIE POS (tradutor) nasceu em Boskoop, em 1958. Estudou holandês e Literatura Comparada na Universidade de Leiden. Desde 1989, vive em Portugal, onde trabalha como tradutor literário e professor universitário de literatura holandesa. Traduziu para holandês obras de, entre outros, Fernão Mendes Pinto, Miguel Torga, Jorge de Sena, José Cardoso Pires e poesia de João Cabral de Melo Neto, Camilo Pessanha, Nuno Júdice e Ana Luísa Amaral. Em português, publicou traduções de vários autores holandeses, entre os quais Jan Huygen van Linschoten, J.J. Slauerhoff, Harry Mulisch, Cees Nooteboom, Jeroen Brouwers, Hella S. Haasse, Anne Provoost e Abdelkader Benali. Para a editora Teorema, traduziu uma antologia de poesia de Arjen Duinker, A Canção Sublime de um Talvez (Lisboa, 2003). Actualmente, prepara uma tradução holandesa de Os Lusíadas de Luís de Camões.

 


 

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