revista

 

editorial

e créditos

outros

números

envio

de material

editora

cartas

dos leitores

links

contato

 

 

 

 

 

 

 

 

 

joão rasteiro


a-poética: formas fundamentais de fazer política, através da anti-poética

   



Se os "media" transmitem as imagens como sendo neutras, apesar de essa pseudo-neutralidade em si mesmo já ser uma tomada de posição, na poesia e/ou literatura, não há, ou não deveria haver neutralidade na ideologia. Fingir que se é neutro ou não militante "é uma forma, por demais recorrente, de mistificação e má fé", que naturalmente apenas pretende reforçar a autoridade das nossas convicções. A poesia deverá ser sempre a aversão à conformidade na procura de uma dinâmica formal (permanente processo e imediata fuga à regra) de modo que adequando as diferenças, começamos a respirar mais profundamente. As formas de representação cultural na sua diversidade são as que começam por aceitar o modelo (formalmente) de representação da cultura dominante, daí que a poesia deverá fazer com que "seja possível ouvir sons que, de outro modo, nunca seriam articulados". Na perspectiva de Charles Bernstein, a linguagem poética tem de ter ação, tem de intervir, sendo que se paga o preço por se estar mais disposto a representar do que a atuar, daí ser natural que o que a poesia trabalha é mais importante do que o que a poesia diz. É nesse contexto que se deverá entender o poema de Michael Franco, com o irônico título Ensaio:

cada raiz enterrada entoa
"percurso"
cada vereda tomada, de igual modo uma decisão de
movimento
e na ação
segue propõe ou
sufoca:

"está morto"

Para muitos o espectro de cada palavra o ser

De mais a tolerar a
um corpo
de poesia.


Neste processo intransponível de globalização, em que a cultura americana determina os modelos culturais que se tornam dominantes no mundo Ocidental, Bernstein realça a questão do poder da linguagem, preconizando que a poesia terá que ir ao encontro do que a ideologia coloca fora da linguagem (essencialmente o que está reprovado pela sociedade) tentando encontrar formas novas, como discurso epistemológico, que nos liberta ou lança para um ar imaginário. Para isso, a poesia terá que abrir fendas, numa espécie de guerrilha (até porque não haverá poesia fora da ideologia). O importante é escrever poesia, numa lógica aberta do poema, que incluirá toda a multiplicidade de valores e linguagem. Ironicamente, Bernstein espera que "a poesia deve ser pelo menos tão interessante como a televisão e bastante mais surpreendente", já que a televisão mostra uma imagem disreal do real e a poesia terá que mostrar o real, "a poesia como uma guerrilha" contra as imagens do mundo. A poesia como inovação e diversidade, como aceitação de diferenças e aprendendo técnicas e instrumentos alternativos, para entender e mostrar a realidade, como forma de alterar os mapas do senso comum, esperando que esse texto poético, seja reflexo de uma relação intrínseca da poesia com a comunidade e proceda de forma a que as transformações se materializem.


É nesta dialética e/ou confronto da poesia e de ideologia, que é preciso agir, sem retrocessos ou temores, mesmo que o mundo e a poesia sejam um permanente jogo de estratégias, já que não existem padrões comuns, uma vez que tudo depende do contexto. A poeta canadense, Nicole Brossard afirma:

de manhã devemos transcrever
no computador ser comportada
o mundo mudou
cada um agarra a sua faca
à altura dos olhos
comendo frutos
em frente ao ecrã

é inútil gritar
o sinal repete-se
a paisagem muda
outras metáforas
a guerra branqueia os ossos

é claro que existe o sujeito
a intrigante sensação de viver
no meio de uma multidão de palavras
densidade muito urbana
de histórias e secreções


É de realçar, um fator importantíssimo, e que é o fato de o poeta independentemente do "autor" também ser um ser humano, logo, tem o direito, ou diríamos até, o dever, a exprimir os seus amores, ódios, simpatias, antipatias, crenças, sonhos, imaginação, intuição e inclusive o seu pensamento. Na atualidade há um sabor negativo, um certo desprestígio pela poesia, dita "política" ou social, mas o que está em causa é a capacidade de tratar determinado tema, pode-se fazer boa poesia com temas políticos e/ou sociais e má poesia com temas considerados "poéticos" ou "líricos". A poesia deverá ter ideologia, o que não pressupõe necessariamente ser ideológica. Hoje em dia ela não se pode desmarcar mais da realidade, terá que ser uma "voz pública" ainda que num processo de "ventricolismo", em que a poesia terá que entrar "como interação, conversação e provocação (mas sempre de forma recíproca)". Como refere Flo Amber, "se um cisne cantasse, não saberíamos da insistência com que diria". Mas nós não somos cisnes, pelo menos a maioria de nós não é – e não temos desculpa. Citando o poeta brasileiro, Álvaro Alves de Faria:

É ainda possível
ouvir o poema
que não foi escrito
mas que vive
na cabeça de um poeta
que respira
só por costume.


Estamos de acordo, que não existem padrões de estética e cultura universal e daí ser essencial que todos nós consigamos ultrapassar a idéia de que podemos todos falar uns com os outros, a idéia de que "todos nós podemos falar uns com os outros com a voz universal da poesia" é uma utopia, só será possível ouvirmo-nos uns aos outros quando aceitarem todos estes fatos. Para isso é necessário trabalhar numa pequena escala, mas atuando em vez de representar, numa procura de inovações formais que desafiem os padrões dominantes, por vezes suportadas em pequenos detalhes que fazem a diferença, uma vez que o importante é, sem dúvida agir e trabalhar o que se diz, numa permanente ruptura e não em meras substituições, através de um modelo agonista.

 
É preciso sentirmo-nos estrangeiros e não donos da nossa própria linguagem, a poesia terá que estilhaçar as formas de representação da sociedade, colocando-se para além da própria marginalização, num processo permanente de ruptura com as ideologias inclusivamente poéticas. Como afirma Bernstein, "as convenções, ao serem provisórias em vez de eternas, foram feitas para serem quebradas", e a poesia deverá começar pela ruptura das próprias convenções da escrita, de forma a entrar na política da linguagem. Refere ainda Bernstein que é necessário fugir a todas as formas reconhecíveis de linguagem, principalmente em termos de sintaxe, daí ironizar com a própria forma ensaística. Citando o poeta Michael Palmer:

reflectir, claro, sua mão sobre o papel


é o exercício mais baixo
que permite seguir
uma redução geográfica


eles esperavam ser percebidos


O processo de ruptura criado pela rejeição dos valores instituídos contribui para uma necessária mudança de atitudes e cânone instituído, daí a própria inovação poder ser pensada em termos sociais e não apenas estruturais, ou seja, como defende Charles Bernstein,
 – "a ruptura do discurso patriarcal, pode ler-se tanto em termos de política, racial e sexual, como em termos de inovação estrutural no abstrato". A poesia terá cada vez mais de ser uma "voz", que atue fortemente como se fosse sempre uma oportunidade única. Como diz o poeta Robert Duncan, no poema "Raízes e Ramos":


Só existe o tempo único.
Só existe o Deus único.
Só existe a promessa única,

e da sua chama
e das margens da página todos se incendeiam.
Só existe a página única,


o resto fica,
em cinzas. Só existem
o continente único, o mar único –


entrando pelas fendas, batendo, rebentando
correndo de lado a lado.


Mas se na "Poética" de Aristóteles, se defende um saber feito de fazer, baseado na revalorização do concreto, procurando imitar através do real, o que ainda não se viu, em permanente procura da reconstrução do corpo poético, na A-Poética, Charles Bernstein, sabendo que as formas convencionais de representação condicionam a própria representação de utopia, ou seja, não é possível pensar o mundo fora da sociedade e as suas formas de representação, só através do objetivo patético e cômico (o absurdo como ruptura), misturando tudo isto, com o objetivo de destruir a centralidade da narrativa, da nossa própria narrativa dominante, num processo de "estar entre", entre todos os vetores (do qual fazemos todos parte integrante), mas sempre num processo de ruptura e não transformando através da produção da imitação, como preconiza a "Poética" de Aristóteles.

 
Mas este processo terá que ser permanentemente (o mito sobre o mito), o novo mito será convenção, para poder ser também estilhaçada por outro mito que será convenção... num ciclo infinito. Afirma Bernstein, que "a desfiguração é um pré-requisito necessário à reconfiguração, à regeneração da capacidade de figurar – de calcular – de pensar figurativamente, tropicalmente". Tudo é relativo, mas é necessário "tomar uma posição em função de", não é relativo, como sinônimo de tanto faz, daí o interesse pela poética e pela forma poética, como "forma" fundamental de fazer político. São urgentes soluções, e neste percurso é crucial ativar o potencial poético para toda a gente, não interessando a quantidade ou mesmo serem lidos, a árvore não necessita obrigatoriamente de ter alguém debaixo dos ramos à sombra, mas se precisarem, a sombra está lá. Bernstein, deseja que "o barulho social seja um som que a poesia pode não só fazer, como também ecoar e ressoar".


A poesia, como dialética multi-direcionada e multi-vetorial, até porque o essencial é "agarrar" os sons que nós próprios ouvimos. Citando o poeta Mário Cesariny de Vasconcelos:

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos a morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
(...)
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar.



JOÃO RASTEIRO é poeta, ensaísta e tradutor. É membro do Conselho de Redação da revista Oficina de Poesia, delegado em Portugal da revista italiana Il Convivio e colaborador da revista colombiana de poesia, Arquitrave. Tem poemas publicados em várias revistas e antologias em Portugal, Brasil, Colômbia, Itália e Espanha e poemas traduzidos para o inglês, espanhol, italiano e finlandês. Publicou A respiração das vértebras, No centro do arco e Os cílios maternos, com posfácio de Carlos Felipe Moisés.
 


 

voltar ao índice | imprimir

 

 

confraria do vento