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adolfo montejo navas
ruído de fundo III
Numerados os barulhos de fundo, mais ruídos conquistados. Como arranjos
sismográficos sobre a idéia leve de um diário. Aproximar-se de novo ao
tempo obriga a ser um boxeador, a conseguir bater, além de saber encaixar
os golpes. Tudo por assalto. Ainda que o combate seja longo, a lenda diz
que ninguém ganha. O máximo que se pode aspirar, como em justiça social, é
a um empate. Cada linha, cada texto então persegue essa miríade de
reflexos, de fluxos, para ao final tentar ganhar aos pontos, como acontece
no dia-a-dia.
MAIO
17. A memória como vida, o esquecimento como ressurreição.
18. Procurar o ponto de gravidade onde o cotidiano torna-se
extraordinário.
19. Heraclitiana: todos os dias escrevemos o rosto do nosso nome no
espelho.
20. A história, essa inevitável depredadora de destinos.
21. O espaço é o tempo que demora.
22. Agora os desejos se consomem antes de nascerem.
23. Só a morte coloca uma data em forma de dardo.
24. A verdade nunca representa nenhuma meta, mas o primeiro passo.
25. Há um momento em que os aniversários estão contra nós.
26. Basta à História levantar-se para sabermos que teremos que nos
ajoelhar.
27. A cada certo tempo, o amor entra em litígio consigo mesmo.
28. A água batiza continuamente as coisas.
29. Só o tempo cumpre o que promete.
30. As negociações entre a liberdade e o destino começam tarde e acabam
cedo.
31. O tempo gosta de distanciar-se para poder voltar.
JUNHO
1. Chove tempo sobre tempo.
2. Sempre acompanhamos a nossa velha contemporaneidade.
3. O tempo também se reparte como o pão.
4. O ser duvida todos os dias com seu não ser.
5. O tempo é camaleônico, anda sempre se disfarçando.
6. As três grandes simulações são o tempo, o silêncio e a realidade.
7. Qualquer novo costume sonha ser a velha natureza.
8. Viver é lembrar o que ainda não aconteceu.
9. Perguntar as horas, para saborear melhor o tempo.
10. Herdamos tempo e aumentamos essa herança com nosso sangue.
11. Com a idade, o tempo vai trocando nossas cartas.
12. Vingança: a vida mais rápida que as notícias?
13. Ó jazz: promessa de outro tempo. Tempo de tempos!
14. Nós somos o gerúndio preferido do tempo.
15. Nos acidentes, o tempo se rompe em pedaços cortantes.
16. Quando morremos regressamos a nosso antigo Egito.
17. Num lugar reservado, talvez a salvo, o desconhecido como fonte
imperecível.
18. A fórmula do esquecimento funciona quando já não faz falta.
19. Cada morte inicia uma conversação diferente de não palavras.
20. A hora da verdade também é a hora da grande mentira.
21. Chegava tarde para degustar mais o tempo.
22. Nada como uma dedicatória para sentir o passar do tempo.
23. A memória é a vida do perdido.
24. O eco de um espelho antigo.
25. A mesma idade que temos nos espera?
26. Verdades compradas para usar no mercado negro do tempo.
27. Estamos enfermos de eternidade.
28. Aproximações à caligrafia do tempo? Traduções auráticas de sua ficção?
29. O espaço não pensa no tempo, é mais absoluto. O tempo sim, necessita
medir distâncias, relativizar-se.
30. Somos navegantes novos no velho rio do tempo.
JULHO
1. Como nossos antepassados, descobrimos os mesmos segredos em coisas
distintas.
2. A cabeça que diz não ao dia, sabe algo que eu não sei?
3. Um relógio que caminha ao contrário em busca do passado.
4. Graças a nós a vida e a morte estão juntas.
5. Mais cedo ou mais tarde, viver é o que há de mais parecido a um
milagre.
6. O tempo é um desconhecido que me fala.
7. A beleza de encontrar restos de um paraíso.
8. Antes que seja tarde, velar-se.
9. A memória dá fome e a vida, sede.
10. A eternidade nos roça o coração.
11. Uma lembrança feita sobre outra lembrança.
12. Ainda é sempre uma eternidade.
13. Ao tempo, como ao sol, não se pode olhar cara a cara.
14. Cada aniversário descobre a mesma surpresa: não há ninguém para
substituir-lhe.
15. As pálpebras do tempo.
16. Colecionava todo tipo de calendários.
17. A primeira obrigação do dia: ressuscitar.
18. A cada manhã alguém acorda por mim e depois se distancia.
19. Minutos enterrados (sonhando talvez que darão frutos).
20. Viajava para se despedir, para aprender a se despedir.
21. De noite, as coisas se apagam para entrar em si mesmas.
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ADOLFO MONTEJO NAVAS
é poeta, crítico de arte,
tradutor e curador independente. Nascido em Madri, em 1954, mora no Brasil
há 14 anos. Publicou 49 silêncios (2004), Inscripciones
(1999), Pedras pensadas (2002), Na linha do
horizonte/Conjuros (2003), Da Hipocondria (2005), entre outros. Realiza periodicamente mostras de
poemas-objeto e poemas visuais.
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