revista

 

editorial

e créditos

outros

números

envio

de material

editora

cartas

dos leitores

links

contato

 

 

 

 

 

 

 

 

rod britto


aos povos, todos os caminhos

 



Com a muito alta ou a muito mais baixa sobriedade quando Nietzsche nos atravessa de repente com sua fala (ou mesmo nós que o interceptamos em um livro, tentando apartar, assim mesmo surpreendendo-nos nós, dá-lhe, filósofo!) meio sem direção – ou a direção tão definida a ele que não saberíamos antevê-la sem lapsos e tiradas acima do que se sabe humano, ou inversamente estamos sempre sob a efígie moral e intelectual do aprovável ou do reprovável, e não dignos de poderes sobrenaturais ou artes maiores, sendo necessário desprender-se mais do que esforços a qual fosse a magnífica empresa, fosse a hora –, temos ainda hoje ao pé do ouvido, após uma única leitura talvez, ou com um só lance de vistas no puzzle televiso, cutucando-nos, pois idealizando-nos gênios: um povo é o rodeio que a natureza faz até chegar a seis ou sete grandes homens – Friedrich Nietzsche.
 

Sentença perturbadora, signo de avareza para com o mundo, sem dúvida alguma, reprovável. Postura das mais incorretas numa leitura formal se sob os métodos políticos da aplicação (ou a sua tentativa endêmica) e do conhecimento (ou ao menos sua fricção e o conjunto dos estudos significativos até então divulgados) de civilizações mais contemporâneas. O melhor ou o pior disso é que o arranjador de não-lados e filósofo, Nietzsche, à época do referido axioma, à sua maneira de pensar-atravessar-desligar, já corroia assim, epistemologicamente, não-diagramático, o que se ensaiava ali perto a duros modos (ou os mais suaves modos, em se tratando da recém-posta decoração democrata na Europa à maneira dos leilões interestaduais, por declarações, agendas e livros magnos conclusivos), evidentemente que explorados desde antes e em outros lugares, mas que agora ali já se tinham meios de confirmar a penetração dos novos modos em organização social e política, acirrá-los, corrigi-los, repondo-os fosse o caso de uma falta de conectividade, e por efeito, ter a medida certa de um fora da lei, se lida uma sociedade por inteira, os contraceptivos das liberdades, mais ou menos como vemos nos dias de hoje, ‘democraticamente’ falando. Ou seja, ali em sua época, Nietzsche já convivia, senão plenamente dentro, ao menos com o que já se podia chamar de espaço comum livre e contemporâneo, o trânsito aberto menos penoso e raquítico das idéias, o povo adiantando-se, na distribuição de direitos e legalidades querendo adiantar aos estados do velho continente, os avanços de toda espécie na organização das sociedades, principalmente as menos vacilantes em ordens de violência divina, portanto atrevidamente morais (que, seguindo à risca a idéia esclarecedora legisladora e monitora da melhor das sociedades, facilmente se confundem esses mata-burros não humanos ou entidades decepadoras com os possíveis gênios da raça, os de carne e osso mesmo, os viris) e as mais bem equipadas sociedades no campo das artes em geral, seus artefatos e os rumos apontados com isso. Assim a dizer, firmavam-se com essa estruturação, com esses novos desembaraços de francas oportunidades políticas aos homens só achados nas granjas e falanges livres autônomas, os primeiros fechamentos (ou quarentenas solidárias?) nas usuras e nas corruptelas, da parte dos mandatários irrevogáveis em lugares da Europa, a valer mesmo ao povo, uma medalha picante e imaginária de sua identidade central e original, este começando entender-se faixa importante na constituição de uma e qualquer sociedade que fosse, que seriam e ainda o são (e serão) elas um povo da mesma forma, por maiores ou menores, tantas as castas repelentes, numa maneira aprovável de dizer, irremediavelmente, nem com dilúvios e eflúvios, em quaisquer épocas. O povo é a sociedade. O que já se basta.
 

O que já se basta? Mais ou menos nesse tempo Nietzsche viria então com sua mais íntima porque menos pública declaração de anestesia – ou mesmo balde d’água gelada em todos à sua frente, antes só se quisesse, a si, contemplando: um povo é o rodeio que a natureza faz até chegar a seis ou sete grandes homens – Friedrich Nietzsche.
 

Por assim mais ou menos tentarmos entender, toda a mediação democrática ali e aqui forjada, é que o filósofo devia estar na mais alta ou na mais baixa sobriedade daquela sociedade naquele momento em que se faziam anunciar coisas novas a todos (ou a tolos se quisermos aqui usar de suas mais imediatas palavras destrancadas). A ele não, não seria facilmente coagido: achava-se, a ele mesmo, sem dúvida – e aí pilheriava com o que era ou o que deixava de ser ‘o povo’ – um dos seis ou sete grandes homens, senão de sua época, até hoje; até hoje e desde que se começou a pensar e corroer e a superar desde os traumas aos alívios incultos em soluções, valendo essa corrida sem linha de chegada (creio que tampouco de largada) aos pensadores, aos artistas e às igrejas de sempre, ele mesmo não querendo concorrer, ou mesmo demolindo as instituições de toda ordem e desordem, vapor barato, guinchando, e píncaro de faróis, solfejando, um homem solto nas nuvens, não foi o que foi e não será o que é, dadas as nossas responsabilidades e irresponsabilidades no comentário, epidérmicas, ele é do povo, nós aqui é que talvez não o sejamos ao tentar admiti-lo / readmiti-lo – ele que, logo após se declarar grande, em meio aos folguedos de democracia, não justificadamente, não aceitaria votos forçados de nenhuma parte; entenda Nietzsche, entenda povo. Como se democracia embrionária – não exatamente embrionária, tentando propor-se e apertar-se cada vez mais, o que já soava estranho esse “apertar” se o povo, logo que pelo menos simbolicamente desatolado, pleiteava seus direitos (e daí não seria muito atípico do filósofo alemão que ele controvertesse moralmente esses endossamentos e contra-endossamentos, naquela época a ele esquisita da Europa) –, como se a democracia ensaiada naquela época específica da Europa, e ainda agora se tentando fazer, mas vinha de refestelar o Nietzsche do povo, mesmo e fundamentalmente dentro dele, que faria hoje coro conosco: fazia-se pressão, circunscreviam-se as liberdades (apenas sem os grilhões), eram entregues certificados disso e daquilo desde que se deixasse fazermo-nos os novos importantes, um quase parente distante a quase se considerar de sangue-azul, chamar-se membro da sociedade, mas sem grandes homens, sem se falar nisso. Como os palpites liberados e sem grande sentido hoje em dia na escolha de um rei da mídia (um mídias) ou de um presidente da república, ainda que do povo, pois usurparam-lhe, decoraram-no (e reportarmo-nos ao termo usado acima na compreensão da incipiente democracia européia), antes nos bastidores mais charmosos, os de interesse secreto. Então, formalizava-se tudo aqui; e ali. Nietzsche retumbante, sempre. Ainda que corroendo o que lá se tentava a duros modos, o que ia se impondo até chegar aqui, se apertando, avançando os grandes mundos de alguns pequenos homens, convencia-nos disso.
 

Mas certo é também que não podemos nos desprender, sem esforços, do que ele aguçou em nós, agora afastando-nos novamente do povo, mas não dos povos, se assim nos entendemos e deciframos. Um povo é o rodeio que a natureza faz até chegar a seis ou sete grandes homens. Forte a qualquer um se lhe faltar humildade e a integridade até no simplesmente meditar. É preciso muito cuidado, alguns dilúvios e muitos eflúvios, no campo da fé e das artes, respectivamente, e sem violência. As coisas da natureza e trabalhadas nos homens. E se como comentadores de uma contemporaneidade ultra-atravessada, já desligada e calidamente alvejada, já temos muitos leitores e de diferentes povos, culturas e maneiras de reagir às escrituras e aos golpes de martelo ou pancadas nas costas, que não apenas a européia, já fazemos bem; já não mais respondemos pela possível soberania da fala que por acaso ou não, sóbria ou não, se impuser como líder nas fontes críticas e de pensamento em uma e qualquer sociedade, até a fervura de uma futura, provavelmente – a não ser que nos venham mais gênios da raça, outros ou os mesmos deuses de sempre, artistas de massa a grandes níveis nos telões imorredouros, os ditadores, em ondas nietzschianas não pensadas ou, de tão bem pensadas, nietzschianas esmagadoras; e talvez com o andamento da sociedade, as transfusões, os desprendimentos, viessem confundindo-se esses grandes e únicos caminhos, o que seria ainda pior. Fazemos por evitar. Somos polivalentes, apunhalados por varais culturais, o resultado até o estado presente, conseqüentemente. Pelo menos a mim, escritor e colunista, com apontamentos pessoais e resíduos de moral, isso me salva de me achar grande coisa; salva-me de não poder definir tão facilmente meu estado de sobriedade, o que seria irrespirável, já não havendo em quem retumbar meus bravios e desacatos, devido justamente à multiplicação cultural e à transitoriedade social, os ecos violados tanto mais não terem o que fazer candidatos a “outros homens” (em sua maior parte sóbrios) e não a “grandes homens” (em sua maior parte loucos), no meio das democracias possíveis – esta nossa especificamente muito esquisita (como a européia quando de sua instalação e à época de Nietzsche), gerada pela democracia ainda que embrionária, já podendo se falar assim, relativamente, em assunto a princípio tão indivisível – ali quando o filósofo era um dos seus primeiros comentadores replicadores –, agora as democracias subprodutos das democracias. Mas não falando em povo, nele não havendo dupla-derivação. O povo ainda é o povo de sempre, não obstante as definições que lhe couberam, a importância, o polimento, a tortura ou a tarefa que se lhes deram, como o fizeram sempre, ausentado-o forçadamente porque convidativamente, presenteando-o convidativamente porque forçadamente. E este hoje não agradecendo ao filósofo, um dos grandes de sua época, aí sim, sem dúvida, perverso. Os textos e frases ainda mexendo na época de agora, entre nós pelo menos. E que já me referi antes que aqui não estou na condição de povo. Quiçá amanhã? Descem-se as origens ou sobem-se ‘naturalmente’ as castas? Alguém se arrisca a falar dos gênios, ou a estar entre eles? Ou no povo? Ou no povo e entre eles, os grandes homens propositores e modificadores, se, de fato, avançadas completamente livres as democracias mundiais? Eu seguirei tendo fé e amando as artes, estando de bom tamanho – que também esses itens dão cá e lá os seus melhores caminhos aos povos, então às sociedades, de um modo geral, quase sempre assim, suavemente como arrematando sem paranóia e estados de espírito complexamente definidos – que ficam longe das indefinições. Nada comportados como os quereriam. Às vezes, como o próprio e necessário Nietzsche, controversos, ele mesmo revelando-se senão um gênio, como um muito bem esforçado caminho ou um franco atravessador, desligando e religando, à maneira de pensar, à maneira de eleger (em alguns casos se elegendo, como também se esfolando mentalmente em outros), com fé e, por sinal, muito artístico. Por essas e outras mesmo que continuamos povos. Continuamos sociedade. Tentamo-nos democratas. Podendo ainda comentarmo-nos. Podendo ainda rodearmo-nos, sem escravidão. Pelo menos tentando tudo isso muito naturalmente (a natureza fazedora de todos os rodeios; trabalhando dentro dos homens; o que o grande gênio alemão mesmo nos fala) – o que já é uma dianteira ou uma inversão daquele Nietzsche de ocasião, já muito satisfatórias.

 

Obs.: Talvez Nietzsche lá trás, a respeito da citação aqui trabalhada, só tenha escrito o que escreveu, por achar mesmo àquela hora que o povo já se saía fortalecido com os avanços sociais, ainda que incipientes, concorrendo ainda hoje; e, por mais que ele o atacasse em sua declaração, ia fazendo-se acompanhar pelo mesmo povo, não mencionando em nenhum momento que os tais grandes homens, seis ou sete, ou menos ainda que fossem, não seriam originários do próprio povo, lutando e desfazendo-se dos que não quisessem se propor a nada, talvez, e ele rebelando-se até contra sua própria origem fora do povo, ou de onde ele imaginasse e pensasse ter surgido.



ROD BRITTO é jornalista e escritor, autor dos livros Barriga D’Água e Os Infames (junto aos poetas Guila Sarmento e Xisto da Cunha, os outros Infames, que seguem em atividade, propondo leituras e linguagens paralelas à poesia gentil). Participou também dos livros CEPensamento, pela Editora Azougue, e República dos Poetas, uma Antologia do Museu. Atualmente, é um dos organizadores do evento multimídia CEP 20.000.
 


 

voltar ao índice | imprimir

 

 

confraria do vento