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ivo barroso
erwartung
A esperança é o desespero de quem espera...
Esperar... esperar...
A espera cansa...
E quando chega o instante em que se muda
a longa expectativa em sólida evidência;
quando a sombra se esvai e os dedos tocam
não mais a treva mas a carne fria,
o corpo morto...
– Aí então em sonolência a sombra desce
e em noite se desfaz a luz do dia.
O bosque da esperança, as árvores do sonho,
os longos ramos da suposição,
as flores de um suposto encontro
ou reencontro,
a volta ao tempo que, irremediável, passou...
(passou, e nada há de fazer com que ele volte
ou que retorne ao que já fora antes)...
– Tudo então se desfaz nessa ilusão que morre,
e nada resta a quem espera
senão morrer também com o sonho morto
ou – mais difícil – admitir que um sonho,
por mais belo que seja, também morre,
também pode morrer...
Eu sou o amor que essa mulher procura
no bosque desta vida.
Eu fui o seu amor... Comigo teve
um sonho que viveu um dia e quer agora
novamente viver – sabendo-o morto.
Ela também foi meu amor, confesso,
e lamento que a tenha abandonado.
Tudo entre nós parecia feito
para durar por toda a eternidade...
Mas de súbito,
na noite que chegava pela longa estrada...
a lua pálida... as nuvens... a sombra da asa negra
de um pássaro contra o céu de estanho...
– eu vi os braços brancos da mulher que estava
pela força dos astros destinada a mim.
Seus gestos me chamavam como o vento
nas velas de um navio, impelindo-o para o mar aberto...
o desconhecido... a sonhada visão de uma ilha perdida.
Passava o dia ao lado desta pobre mulher
que ainda me procura;
meu hálito acariciava suas faces... a mão os seus cabelos...
a boca atormentada buscava na ilusão a sua boca...
Mas quando vinha a noite, a sombra, a lua,
quando a feiticeira de pálidos braços me acenava,
era como se a morte visitasse meu corpo e, frio,
ali ao seu lado, só meu cérebro ardia de paixão e fuga...
Até que um dia a branca visão veio entregar-me
a mortalha cruel do desafeto em que devia... envolver...
o amor antigo.
O amor que morre é sem retorno.
Não se recompõe a luz que se dissolve em sombras.
Não há como deter os pés do Tempo,
arrancar as asas das horas,
calar a boca voraz dos minutos.
A vida é uma sucessão de enganos que tomamos por acertos.
Mas tão grande era aquele amor que nos unia,
o amor que sempre ela teve por mim
e que eu lhe tinha... que...
Será tudo ilusão? Os olhos vêem? Estamos realmente vivos
ou o sonho se prolonga pelo espaço de uma vida?
O amor que morre é sem retorno.
Não se recompõe a luz que se dissolve em sombra.
Há um ano eu lhe tomava a mão pela primeira vez
e ela sentiu que nunca havia amado
ninguém antes de mim tão fortemente...
Há três dias que saí de casa e sei que por três dias
ela esperou segura a minha volta...
E não voltei...
Já não posso mentir para mim mesmo.
Ela sabe que outra mulher desperta agora
carinhos, beijos, atenções, cuidados
que foram seus...
Ela sabe...
Mas mesmo assim me espera, numa expectativa
não mais tranqüila e sedentária,
mas numa esperança que se desespera.
Nesse desespero de quem vai em busca,
parte à procura e, mendigando, indaga:
Onde estaria?
Um desastre? Um equívoco? Um descaminho?
Onde estará? – pergunta onde estarei,
não querendo admitir que para ela
eu já esteja morto sem que tenha havido
o embarque fatal para o Desconhecido.
***
Ei-la que chega ao bosque emaranhado
das boas intenções e amargos desenganos desta vida.
Vem à minha procura...
As árvores... os galhos... as sombras... as suspeitas...
tateia tudo com indecisão...
Qualquer ruído a assusta... o som do vento na folhagem...
a luz da lua pálida... “ali sozinha...
num sonho sem limites e sem cores... pois seu limite
era o lugar onde eu estava... e todas as cores deste mundo brilhavam nos
meus olhos”...
Grande é a responsabilidade de quem ama;
inda maior a de quem é amado.
Eu poderia viver se ela admitisse que eu morri,
mas em seu coração apunhalado
goteja a esperança, a esperança de que eu esteja vivo,
de que seu sonho morto esteja vivo.
Ah, dói-me a crueldade. Tremi quando afoguei
o amor antigo, o sonho junto
que por um tempo sonhamos acordados.
Mas que fazer?
O amor é uma desgraça que se disfarça de bem.
Um malefício mascarado de bênção.
Uma tortura fantasiada de prazer.
Uma bebida mortal que ingerimos
com a volúpia de quem faz um brinde.
Um equívoco que é a razão de todo acerto desta vida.
Choro por ela, por nós dois.
Mas impossível será fechar meu peito
àqueles braços brancos que tão tarde,
e tão extemporâneos se abriram para mim.
Àqueles olhos que me indicam não o rumo que sonhei
mas todos os caminhos que não ousei sonhar.
Àquela testa luminosa de licorne na orla da floresta.
Àquela voz que me sussurra: “Este amor é inelutável.
Um desígnio dos astros.
Quando ainda éramos pó ou pedra dos caminhos,
há milhares de anos, um vento soprou do Além
para juntar-nos. Alguém nos astros traçou nosso destino”.
Como dizer tudo isto a essa mulher que ainda me procura
perdida à noite numa selva escura?
Sei que meu beijo é para ela como um farol na escuridão. Mas ao seu lado
eu estaria na treva e vejo a luz em outra direção.
Que não me veja...
Que me sinta e me toque
como se eu fosse um tronco morto.
Que eu próprio esteja morto como o sonho que morreu...
Minha esperança é de que ela entenda
e saia deste bosque em busca de outro sonho,
que o encontre em glória como encontrei o meu.
IVO BARROSO é poeta, ensaísta, editor e tradutor. Publicou Nau
dos náufragos (1981), As quatro visitações de Alcipe (1991),
Caixinha de música (1998) e a antologia A caça virtual e outros
poemas (2001). Seu reconhecido trabalho como tradutor trouxe para a
língua portuguesa escritores como Arthur Rimbaud, Charles Baudelaire,
Ítalo Calvino, Edgar Allan Poe, Erik-Axel Karfeldt, William Shakespeare,
Johan Strindberg, Marguerite Yourcenar, entre outros, tendo recebido a
medalha de ouro Blaise Cendrars, concedida pela UBE, e o Prêmio Paulo
Rónai, da Biblioteca Nacional, pela tradução da Novela do bom velho e
da bela mocinha, de Italo Svevo, em 1997, além do Prêmio Jabuti pela
tradução de O livro dos gatos, de T. S. Eliot, em 1992, e o prêmio
da ABL pela tradução de Teatro completo, de T. S. Eliot. O poema
Erwartung foi inspirado na ópera de mesmo nome, op.17, de Arnold
Schoenberg. Composta em 1909, em menos de três semanas, esta ópera, um
monodrama para soprano e orquestra, costuma ser considerada um portento do
modernismo e expressionismo musical, e representa a primeira tentativa de
Schoenberg de uma composição de larga escala atonal. A ópera foi levada ao
teatro Municipal do Rio de Janeiro, em agosto de 2005. O diretor, Gilberto
Gawronsky, não querendo pôr o libreto em português com o recurso das
legendas, pediu a Ivo Barroso que compusesse para substituí-lo um poema,
lido no teatro antes da apresentação, e que está sendo publicado aqui pela
primeira vez.
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