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antonin artaud


as mães no estábulo

 

ANTONIN ARTAUD (1896 – 1948), escritor, ator, dramaturgo, poeta, conclamava um acordar coletivo, que seria possível através de um empenho a que chamava crueldade. Crueldade do artista consigo e, no teatro, com o público. E, mais que tudo, do público consigo. Crueldade que não era falácia de um mero criador de parâmetros e técnicas, mas que durante toda a sua vida articulou ferozmente sua relação com o mundo, ao ponto de culminar na crueldade imediata das paredes dos hospícios. Autor de O teatro e seu duplo e Para acabar com o juízo de Deus, entre outros, não deixaria nunca de empregar a crueldade no que escrevia. As mães no estábulo é publicado aqui pela primeira vez em português.
 

 

Portas, células, sótãos, banquete... o quarto que tinha de escolher era um sótão ou um estábulo, um santuário ou uma prisão?


Era eu um homem ou um animal?

Vinha um mundo de pensamentos dos quais sabia eu bem ter, no fundo, a chave... e nunca se decidiam a estender-me a chave porque nenhum destes pensamentos era eu, embora fossem tudo o que de facto eu pensava.

As portas dos quartos e células defronte dos quais me encontrava e que se agitavam de cólera no meu coração, com as suas fechaduras e as suas chaves, eram, na realidade, espelhadas do silêncio de uma hipócrita animalidade: - abrir-me-ei quando fores como eu - eis o que cada fechadura, saltando do meu coração, parecia dizer-me.

Eu era homem, mas as portas, com as suas fechaduras de cólera, queriam ver-me a pensar-me a mim mesmo como animal, a admitir, enfim, a minha animalidade. E era o que eu não podia aceitar. Desconfiava de cada porta a passar e nenhuma me parecia segura, não sabia se eram portas que davam sobre as prisões do mundo ou sobre os espaços das eternidades.

Ah! Se todos os quartos tivessem sido iluminados como no tempo em que, tendo as encostas da montanha aberto perante mim as porta da imensidão eu via o infinito sem fechadura e sem chave... mas o tempo era já trespassado.

Porque nos encerrámos assim - não paravam de bramir todas as fechaduras com suas portas e suas chaves - nós, que somos tudo o que te quis encerrar?

 

Deixa-te estar por fim, deixa-te estar, todos somos dignos porque tu és digno e somos excedidos a fim de ser fixos e toda a nossa direcção nunca foi senão o ódio que chocamos para a tua dignidade.

Quando estas palavras de revolta dos homens contra a minha boa vontade se completavam ouvi o lancinar de um gongo que protestava até às nuvens, este era o sinal de que todo o infinito era agora ultrapassado, pois a imensidão, ela própria, uivava perante a violência que lhe tinha sido feita, e eu, sabia que o infinito é a própria dimensão sem outra medida que a da sua própria vontade que grita, até às nuvens, desde a hora em que é ultrajada.

Mas que tenho eu que ver com todas estas portas do ser e dos seus símbolos figurados onde entrar? Serei eu então o céu ou o mar, ou as vagas das imensidões que escuto rugir no meu coração como carnes num estábulo, eu, que caminho o meu esqueleto na carne que até à minha ultima hora não terminarei de reenvolver.

Portas eu não terei o vosso orgulho!

Prefiro o ruído do meu passo sobre a terra à violência das eternidades. Esta maldição contra a vida que me encerra nos caprichos da sua entidade não terá tempo de a completar, pois, eu, já não era (seria) mais que um levantamento feito pelas vagas que me rugiam ...

E todas essas portas fêmeas de fechaduras de múltiplas chaves que do oriente hipnótico das coisas voava com rapacidade para mim transportavam-me em não sei qual coração, ou ser de ser, que me envolvia.

São as mães que acometem no eu de todo o homem com as suas asas de sagacidade - era o que me dizia nesse momento o meu pensamento - e eu não sentia mais que o arremesso e o passo de homem onde me escutava sobre a terra, e a terra tinha-me enterrado tendo-me largado com o meu esqueleto e a minha carne e eu não era mais que a intrusão destas mulheres onde cada porta era agora rejeitada.

Eis enfim que a liberdade me regressa no pensar em mim estas excepções ligadas. Liberdade de ser e abraçar o que (se) pensa, quer dizer, de se misturar.

Para conhecer a felicidade de existir cessaste de te ter como o marco dos quatro braços cravados contra tudo aquilo que quis denunciar e conceder. As coisas não serão como as quiseste pensar mas tal qual se amarem - elas mesmas - contra o teu espírito de contenção insensata.

Não podemos viver sem animalidade.

Conheço desde há demasiado tempo o ponto de traçado espelhado onde se enreda a vontade humana, e as abomináveis torções que irrompem da parte de uma entidade revoltada de ser lograda por todas estas falsas ideias.

O eu quero – imprescritível - do eu não está sozinho pois é realmente neste ponto do cérebro - em que a alma individual e pessoal se pensa - que outros coabitam com ele e trabalham, desde sempre, contra ele.

Antes que tivesse tido o tempo de decidir sobre mim o ser de viver (des)possuiu-me, retirou-me do conhecimento.

E foi assim que as mães violaram o meu pensamento. Onda após onda convergem sobre mim de todos os pontos dos seus imundos desejos até ao dia em que entrarão em carência, a carência do manifestado da vida.

Conheço a carne de consumo do sótão e da fechadura do estábulo, a batalha entre o manifestado e suas mães e o não manifestado dos sobreviventes. Sobrevida do que não foi vida. Sísifo empurrando a sua rocha no espírito apenas têm necessidade do grito deste terrível - aqui jaz - ou seja, aquele que não existe na vida mas que para ser necessita de sobrevida - foi assim que se fez reconhecer a mim, no sonho, quando as mães me repuseram de novo na vida.

O inacessível infinito das sobrevidas é para o ser mais tentador que o ser pois sobreviver é ultrapassar um ser quando este ser é estrangulado pela vida. Viver é um tempo, sobreviver é, pela recusa do tempo de ser, não deixar esta eternidade de não ser onde triunfa a inteligência celeste, espírito do não manifestado da vida.

É aqui - digo eu às mães do sonho no momento de me despertar - é aqui em breve que a veremos existir...



NUNO ROCHA (tradutor) freqüentou o curso de Filosofia da Faculdade Letras de Lisboa nos inícios dos anos 80 não tendo tirado daí, segundo ele mesmo nos contou, “qualquer conseqüência, quer a nível profissional, quer a nível curricular”. Atualmente trabalha em uma pequena biblioteca particular em Lisboa. Há alguns anos dedica-se a escrever – poesia principalmente – e a fazer traduções.

 


 

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