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os atores

 

 

 

Para
Ilza Cavalcanti (in memoriam)

E para Alberto Guzik,
Fernanda D’Umbra,
Gabriel Pinheiro,
Gero Camilo, Gheuza Sena,
Ivam Cabral, Laerte Késsimos,
Mário Bortolotto, Olívia Araújo,
Paulo “Picanha” de Tharso,
Rodolfo García Vásquez
e outros artistas do palco

 

 

A ÚLTIMA CENA É ASSIM: ele tira o revólver da gaveta, dispara à queima-roupa. E eu caio. Como um rei cairia. Ou a Petra. Ou a Phedra. Depois, Leocádio sopra um monólogo sem fim. E chora e ri. As cortinas fecham o espetáculo. E voltamos abraçados para os aplausos.
 

Mas, desta vez, eu não voltarei.
 

Explico: hoje, preparo a arma. A munição. Colocarei duas balas de verdade, para não dar erro. Nem branco. Para não haver chance de eu me levantar.
 

Leocádio, o ator, não vai acreditar. Tudo farei por amor a ele. E ódio. Sei que é dramático. Mas eis no que me transformei: um velho cansado deste faz-de-conta. Meu coração não agüenta mais maquiagens. E luzes azuis. E ribaltas. Chega uma hora em que a gente quer ir embora.
 

Pois bem: a ocasião é esta, perfeita. Morrerei para o público ver. Minha melhor interpretação. No chão, na poça. Na merda.
 

Porque me apaixonei por Leocádio. Ele, o mais jovem da companhia. E o que faz mais sucesso. Digo: com as garotas e os garotos. Está cotado para uma novela. E para alguns comerciais.
 

Lembro: quando chegou a este camarim, queria me conhecer de perto. Suguei do seu perfume. E os músculos abertos. E o seu jeito de perguntar. De querer saber como é o Olimpo. Você é meu monstro sagrado.
 

Eu? Sim, você, Fernando Cabral, meu ator preferido. Meu ídolo, essas coisas. O nome dele era Léo Rosas. Mas eu gosto mais de Leocádio Rosas. Porque fica com jeito de leão. Velho. E já fiquei imaginando as falas dos amigos de teatro. Oh! Viu? Não viu? Bofe bonito o amiguinho do Fernando. Sarado. Puta que pariu! Uma história de amor. E tragédia.
 

Ela, começada àquela mesma noite em que cheguei em casa. E não tirei o sonho do pensamento. Indo e voltando. Decorando as luzes do meu quarto. No travesseiro, o seu cheiro. A sua energia. Faz tempo – desde que morreu meu companheiro – não acendia em mim esse desejo.
 

Febril e vírus.
 

Medo e arrepio.
 

No outro dia, ele me ligou e fomos juntos a uma estréia. Seria nossa primeira vez em público. Senhoras e senhores: Fernando & Leocádio. Um texto cheio de ciúmes e loucura. Brigas em mesas de bar. Arranhões de copo. Tentativas de suicídio. Ele fazia de mim o que não queria e queria. Porque sabia que o meu corpo era fraco. Sessentão. E era tentadora a tentação. Quando a minha língua cruzava as suas coxas. E encontrava um pau diferentemente. Gigante. Adentrando a minha vida. Primitiva. Gruta grega. Eu, dono de uma falência dionisíaca.
 

Freqüentamos festas, premiações e coquetéis. Marquei uns testes com ele. Prometi-lhe uma figuração. Para começar. É só entrar com seu corpo e sua bandeja. E falar: boa-noite, Nossa Senhora. Flores para Genet. Meu anjo bonito. E meteórico. Tinha futuro, sim.
 

Na confusão de pensão, veio morar comigo. E pesquisava em meus livros. E ouvíamos recitais. E trabalhou a impostação. Foi ganhando espaço. Não faltava a nenhum ensaio. Sempre grudado no meu umbigo, para cima e para baixo. Deixou que eu fizesse com ele os melhores papéis.
 

Até que foram surgindo outras peças. Para o jogo. De montagens perigosas somos feitos, ou não? O revólver, desarmado, ali em minhas mãos, parecia um osso quebrado. Meti as duas balas lá para dentro. Com cuidado, fechei a culatra. Envernizei o objeto de cena. Fui até o cenário, ainda escuro. Coloquei-o na gaveta.
 

E o revólver? Leocádio veio me perguntar. Está tudo no seu lugar. Eu disse, seco. Na noite em que o contra-regra esqueceu, tivemos que resolver no dedo.
 

Pá, pá.
 

Mas hoje ele está, seguro. O revólver. Para a última cena, enfim. Colocaremos um ponto nesta palhaçada. Da minha cara no espelho escorre uma lágrima derretida e humilhada. Virei um verme. Um rato. Não me reconheço pela madrugada, esperando o Leocádio chegar. Faminto. Enrolando cigarro. Dizendo que foi por aí. Orgulhoso porque foi convidado para trabalhar com o diretor Mário Alberto Vásquez. Ou: contracenarei com Paulo de Tharso. Assim que terminar a nossa temporada. De sucesso.
 

O nosso texto é muito bom. Dois personagens que se amam. Um velho e um michê. Está na hora de a gente fazer este casal. Meio Petra. Meio Phedra. Ou: Garbo. Saudades dos nossos exercícios. E laboratórios. Discutíamos deixas e ganchos e figurinos.
 

Com esta jaqueta, você fica mais real, Leocádio. Na hora da sua morte, por que você não usa essas pantufas, Fernando? E esse roupão de banho?
 

Era minha a direção. E as marcações do tipo: você esqueceu a fala. Ou: o sentimento. Solte o ombro. Era, pois, a minha maneira de dominá-lo. De tê-lo ainda sob controle. Quanta ilusão! Desde quando o vi, dentro do meu olho àquele dia. Para sempre. Escuro. Quem é ator sabe o tempo que dura a escuridão. Segundos antes de o espetáculo acontecer. Essa sombra que é. Escondida. Aflita. Nas coxias, por trás das cortinas se abrindo. Um mundo no início do mundo. Reagindo, reagindo. Abrindo, abrindo. O fim para outro fim.
 

O espetáculo começou. Sem clima. Sem ritmo, exagerei nos passos. Nos movimentos pesados. Nas frases que decorei. Não dialoguei. Projetei todas as dores do mundo em volta. Do amor. Ah! Meu querido, adeus. Haveremos de nos reencontrar, um dia, perto de alguma estrela. Pirandelliana. Beckettiana. Shakespeariana. Ionesca.

 

 

E se o tiro falhar?

 

 

Em teatro do absurdo, tudo pode acontecer. Porra! Congelei. Por um instante pensei. Enquanto a hora se aproximava. A última: em que Leocádio abrirá a gaveta, apontará a arma e tudo virará pólvora, gemido e susto.
 

Não tive dúvida e me adiantei. Derramei-me à sua frente e ele não entendeu. Por quê? Perguntou: ficou doido? Reclamou no meu ouvido. O que é isso? Eu mesmo abri a gaveta. Leocádio Rosas, hein, agora o que faria?
 

Bem que ele vinha dizendo: você está ficando caduco. Doido. Este seu corpo amolecido, esta sua língua sem vida. Não preciso mais de você. Ator de bosta. Esta cena é minha. Desgraçado! Não estava no texto, previsto, aquele meu grito de bicho. O meu choro de monstro sagrado. Nem a beleza daquele improviso.
 

Para susto geral da platéia, fui eu que apontei o revólver para o seu peito. Fui eu que apertei o gatilho.



MARCELINO FREIRE é escritor. Autor, entre outros, do livro de contos Angu de Sangue (Ateliê Editorial), com Contos Negreiros (Editora Record) venceu o Prêmio Jabuti 2006, na categoria Melhor Livro de Contos. Os atores é inédito e faz parte do seu próximo livro, RASIF – Mar que se arrebenta, a ser lançado pela Record no começo do ano que vem. Seu blog é www.eraodito.blogspot.com.
 


 

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