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marcelino freire os atores
Para
A ÚLTIMA CENA É ASSIM: ele
tira o revólver da gaveta, dispara à queima-roupa. E eu caio. Como um rei
cairia. Ou a Petra. Ou a Phedra. Depois, Leocádio sopra um monólogo sem
fim. E chora e ri. As cortinas fecham o espetáculo. E voltamos abraçados
para os aplausos.
Mas, desta vez, eu não
voltarei.
Explico: hoje, preparo a arma.
A munição. Colocarei duas balas de verdade, para não dar erro. Nem branco.
Para não haver chance de eu me levantar.
Leocádio, o ator, não vai
acreditar. Tudo farei por amor a ele. E ódio. Sei que é dramático. Mas eis
no que me transformei: um velho cansado deste faz-de-conta. Meu coração
não agüenta mais maquiagens. E luzes azuis. E ribaltas. Chega uma hora em
que a gente quer ir embora.
Pois bem: a ocasião é esta,
perfeita. Morrerei para o público ver. Minha melhor interpretação. No
chão, na poça. Na merda.
Porque me apaixonei por
Leocádio. Ele, o mais jovem da companhia. E o que faz mais sucesso. Digo:
com as garotas e os garotos. Está cotado para uma novela. E para alguns
comerciais.
Lembro: quando chegou a este
camarim, queria me conhecer de perto. Suguei do seu perfume. E os músculos
abertos. E o seu jeito de perguntar. De querer saber como é o Olimpo. Você
é meu monstro sagrado.
Eu? Sim, você, Fernando
Cabral, meu ator preferido. Meu ídolo, essas coisas. O nome dele era Léo
Rosas. Mas eu gosto mais de Leocádio Rosas. Porque fica com jeito de leão.
Velho. E já fiquei imaginando as falas dos amigos de teatro. Oh! Viu? Não
viu? Bofe bonito o amiguinho do Fernando. Sarado. Puta que pariu! Uma
história de amor. E tragédia.
Ela, começada àquela mesma
noite em que cheguei em casa. E não tirei o sonho do pensamento. Indo e
voltando. Decorando as luzes do meu quarto. No travesseiro, o seu cheiro.
A sua energia. Faz tempo – desde que morreu meu companheiro – não acendia
em mim esse desejo.
Febril e vírus.
Medo e arrepio.
No outro dia, ele me ligou e
fomos juntos a uma estréia. Seria nossa primeira vez em público. Senhoras
e senhores: Fernando & Leocádio. Um texto cheio de ciúmes e loucura.
Brigas em mesas de bar. Arranhões de copo. Tentativas de suicídio. Ele
fazia de mim o que não queria e queria. Porque sabia que o meu corpo era
fraco. Sessentão. E era tentadora a tentação. Quando a minha língua
cruzava as suas coxas. E encontrava um pau diferentemente. Gigante.
Adentrando a minha vida. Primitiva. Gruta grega. Eu, dono de uma falência
dionisíaca.
Freqüentamos festas,
premiações e coquetéis. Marquei uns testes com ele. Prometi-lhe uma
figuração. Para começar. É só entrar com seu corpo e sua bandeja. E falar:
boa-noite, Nossa Senhora. Flores para Genet. Meu anjo bonito. E meteórico.
Tinha futuro, sim.
Na confusão de pensão, veio
morar comigo. E pesquisava em meus livros. E ouvíamos recitais. E
trabalhou a impostação. Foi ganhando espaço. Não faltava a nenhum ensaio.
Sempre grudado no meu umbigo, para cima e para baixo. Deixou que eu
fizesse com ele os melhores papéis.
Até que foram surgindo outras
peças. Para o jogo. De montagens perigosas somos feitos, ou não? O
revólver, desarmado, ali em minhas mãos, parecia um osso quebrado. Meti as
duas balas lá para dentro. Com cuidado, fechei a culatra. Envernizei o
objeto de cena. Fui até o cenário, ainda escuro. Coloquei-o na gaveta.
E o revólver? Leocádio veio me
perguntar. Está tudo no seu lugar. Eu disse, seco. Na noite em que o
contra-regra esqueceu, tivemos que resolver no dedo.
Pá, pá.
Mas hoje ele está, seguro. O
revólver. Para a última cena, enfim. Colocaremos um ponto nesta palhaçada.
Da minha cara no espelho escorre uma lágrima derretida e humilhada. Virei
um verme. Um rato. Não me reconheço pela madrugada, esperando o Leocádio
chegar. Faminto. Enrolando cigarro. Dizendo que foi por aí. Orgulhoso
porque foi convidado para trabalhar com o diretor Mário Alberto Vásquez.
Ou: contracenarei com Paulo de Tharso. Assim que terminar a nossa
temporada. De sucesso.
O nosso texto é muito bom.
Dois personagens que se amam. Um velho e um michê. Está na hora de a gente
fazer este casal. Meio Petra. Meio Phedra. Ou: Garbo. Saudades dos nossos
exercícios. E laboratórios. Discutíamos deixas e ganchos e figurinos.
Com esta jaqueta, você fica
mais real, Leocádio. Na hora da sua morte, por que você não usa essas
pantufas, Fernando? E esse roupão de banho?
Era minha a direção. E as
marcações do tipo: você esqueceu a fala. Ou: o sentimento. Solte o ombro.
Era, pois, a minha maneira de dominá-lo. De tê-lo ainda sob controle.
Quanta ilusão! Desde quando o vi, dentro do meu olho àquele dia. Para
sempre. Escuro. Quem é ator sabe o tempo que dura a escuridão. Segundos
antes de o espetáculo acontecer. Essa sombra que é. Escondida. Aflita. Nas
coxias, por trás das cortinas se abrindo. Um mundo no início do mundo.
Reagindo, reagindo. Abrindo, abrindo. O fim para outro fim.
O espetáculo começou. Sem
clima. Sem ritmo, exagerei nos passos. Nos movimentos pesados. Nas frases
que decorei. Não dialoguei. Projetei todas as dores do mundo em volta. Do
amor. Ah! Meu querido, adeus. Haveremos de nos reencontrar, um dia, perto
de alguma estrela. Pirandelliana. Beckettiana. Shakespeariana. Ionesca.
E se o tiro falhar?
Em teatro do absurdo, tudo
pode acontecer. Porra! Congelei. Por um instante pensei. Enquanto a hora
se aproximava. A última: em que Leocádio abrirá a gaveta, apontará a arma
e tudo virará pólvora, gemido e susto.
Não tive dúvida e me adiantei.
Derramei-me à sua frente e ele não entendeu. Por quê? Perguntou: ficou
doido? Reclamou no meu ouvido. O que é isso? Eu mesmo abri a gaveta.
Leocádio Rosas, hein, agora o que faria?
Bem que ele vinha dizendo:
você está ficando caduco. Doido. Este seu corpo amolecido, esta sua língua
sem vida. Não preciso mais de você. Ator de bosta. Esta cena é minha.
Desgraçado! Não estava no texto, previsto, aquele meu grito de bicho. O
meu choro de monstro sagrado. Nem a beleza daquele improviso.
Para susto geral da platéia,
fui eu que apontei o revólver para o seu peito. Fui eu que apertei o
gatilho.
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