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aderaldo luciano


os livros e os fragmentos de passagem por África

 


 

A semana entre os dias 11 e 17 de janeiro de 2000 teve um significado caro para o continente africano. Reunidos na cidade de Asmara, na Eritrea, intelectuais, escritores e acadêmicos de África promoveram a conferência Contra Todas Probabilidades: Línguas e Literaturas Africanas no 21º Século. Desse encontro foi retirada a Declaração de Asmara. Os participantes observaram que só o fortalecimento da união entre os povos africanos, respeitando suas individualidades, o investimento na literatura de línguas africanas, a busca de África falar de si em línguas não coloniais e o diálogo com outras culturas sem xenofobismo, mas resguardando e resgatando suas tradições poderão potencializar a identidade continental.
 

O continente esfacelado em lutas com o colonizador e em conflitos interétnicos é um quebra-cabeça difícil de montar. Restos mortais em solo, almas partidas na diáspora. Esse grito de Asmara poderia ser, e ainda não sabemos se o foi, o marco divisor, introdutor de um novo caminho. Entretanto uma muralha, maior que a da China e inútil como a mesma, está erguida represando o Rio Nilo, encobrindo o Kilimanjaro, assustando o antigo Cabo da Boa Esperança. A pergunta está à mesa: até onde, ou quando, escritores são capazes, com suas obras, de derrubar a grande muralha do esquartejamento cultural? Literatas quebrarão os grilhões das fronteiras políticas aprisionantes de etnias?
 

Aquele mesmo imperador chinês construtor da Grande Muralha também ordenou a destruição de todos os livros escritos antes de si. Foi como proteger sua terra da invasão mongol e fragilizá-la no outro extremo destruindo seu passado, atentando contra a tradição, rasgando a memória do povo e derramando sobre as águas do esquecimento milenares gerações. Semear livros seria derrubar muralhas, regar a memória, gravar e proteger genealogias. A Declaração de Asmara apregoa que as atitudes individuais sejam portentosos instrumentos de afirmação. Em cada país, estado, província ou aldeia os construtores das letras são intimados a destruir muralhas na construção ética de um novo continente.
 

Exemplificando: a chegada dos navegadores portugueses ao Novo Mundo foi marco de mudança crucial. Mudança para aqueles que aqui se encontravam, principalmente. A carta de Caminha relata o encontro entre os dois mundos com olhos europeus e desejos de mercador. Os habitantes da nova terra, onde havia água em abundância e beleza extenuante, são vistos como futuros cristãos, terra fértil para expansão do império católico. O que se viu, testemunhado pelo tempo, foi o massacre, a derrocada de nações autóctones, o extermínio, o saque. À cruz fincada sucedeu a espada idem. Ao latim da primeira missa sucedeu a língua portuguesa engolida tal qual um aríete, cordas vocais abaixo. Às lendas e mitos, histórias de cavalaria, resquícios romanos e gregos. Fundava-se sobre a fragilidade da cultura oral os alicerces do seu próprio sepulcro que todo o esplendor romântico indianista não conseguiu cantar, ou por omissão, ou por ignorância. Em outras palavras, o livro português esmagou a oralidade das comunidades indígenas pré-cabralinas. Asmara pede o livro como resistência, dentro do diálogo possível
 

Borges, o cego argentino, afirma, em sua conferência na Universidade de Belgrano:“Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensão de seu corpo. (...) O livro, porém, é outra coisa: o livro é extensão da memória e da imaginação.” Afirma, para mais abaixo tomar um caminho aparentemente oposto: (...) Scripta manent, verba volante não significa que a palavra oral seja efêmera, mas sim que a palavra escrita é algo duradouro e morto.”

 

A oralidade é, dessa forma, a mãe da literatura, seu ventre gestador, seu ovo e seu marsupial. A literatura ocidental é filha da oralidade grega, seja de Homero, seja de Sócrates. A palavra escrita seria o morto que vive, que resiste, que enfrenta o colonizador, carregando sob si, fundações que remontam aos “antigamentes” da vida.


Voltemos a Borges. Em um dos mais surpreendentes contos, O livro de areia, Borges nos conta de um livro sem início, nem fim. Seria incapaz de alguém abri-lo na mesma página por duas vezes. Suas páginas se reproduziam instantaneamente. Eram infinitas, portanto. Seguiam o passo do tempo. Desembocavam no abismo incomensurável da eternidade.
 

Tecer um livro de areia é a própria impossibilidade. Com páginas infinitas, inconcebível. Mia Couto o tenta. O último vôo do flamingo parece fechar uma trilogia, iniciada com Terra sonâmbula, continuada com A varanda do frangipani. Refletindo suas experiências pessoais, aquilo que seus olhos testemunharam e muito do que seus ouvidos escutaram, essa trilogia confunde-se com a própria história moçambicana, inserida na história vermelha de África negra.
 

Escrever um livro com dores, pintado de angústia, com base na esperança, deve ser um trabalho hercúleo. A batalha entre o táctil e o ar, a lágrimas riscando o rosto e a luz o coração. Procura-se um país, lê-se um livro. Como já dissemos, o livro é o instrumento do resistir.
 

Na abertura do IV Congresso Luso-afro-brasileiro de Ciências Sociais, no Rio de Janeiro, em setembro de 1996, Mia Couto rebela-se contra o termo luso-afro-brasileiro por considerá-lo preconceituoso e, no que se refere a afro, generalizador, deixando as culturas locais sem individualidade. Ao mesmo tempo nega um Moçambique português, admitindo-o, isso sim, banto. Mas Mia Couto escreve em português de branco. Como, então, inseri-lo como escritor banto, defensor da terra e da memória?
 

Parece-nos que ele, como autor, interroga-se sobre o seu papel e sua legitimidade. Há uma busca pelo reconhecimento e um desespero por, talvez, não ser compreendido. A responsabilidade política precede a literária. O engajamento requer a ousadia: aos cobardos, a prisão da terra, a mais cruel. Que seja leve!



ADERALDO LUCIANO é paraibano, nascido em Areia, poeta, professor de Teoria da Literatura e cozinheiro amador.
 


 

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