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raul antelo
poesia e imagem
A poesia é,
por essência, mais do que e algo de
diferente
da própria poesia. Ou antes: a própria
poesia pode
perfeitamente encontrar-se onde não existe
propriamente
poesia. Ela pode mesmo ser o contrário
ou a
rejeição da poesia, e de toda a poesia. A poesia
não
coincide consigo mesma: talvez seja essa
não-coincidência,
essa impropriedade substancial,
aquilo que faz
propriamente a poesia.
Jean-Luc Nancy – Fazer, a poesia (1996)
Lacan, em um texto sobre Merleau-Ponty estampado por Les Temps Modernes,
em 1961, atribuiu à obra de arte o lugar do que não se poderia ver
a olho nu, vale dizer que uma definição provisória da obra de arte seria,
portanto, a de que ela é um artefato que vê, em suma, a invisibilidade do
visível.
Mais relevante, em outras palavras, do que qualquer elemento de fusão e
unidade reivindicado pelos surrealistas canônicos, como Péret ou Breton, o
sublime contemporâneo estrutura-se a partir de um nominalismo radical, que
postula a indecidibilidade entre ser e sentido. Foi, de fato, através
desse conceito de nominalismo que Marcel Duchamp intuiu que sons e
contatos são melhores veículos que as imagens para exprimirem o
interstício quadri-dimensional para o qual cunhou a noção de infraleve.
A linguagem como nova tatilidade torna-se então uma ferramenta para captar
o caráter pluridimensional da arte. Daí que tudo, segundo Duchamp, nos
conduza ao erotismo. Rrose Sélavy: Eros é a vida. Mas também
aRrose Sélavy, a arte (ARS) é a vida.
Costuma-se pensar que a arte moderna vira as costas à figuração, mas talvez
seja mais oportuno e preciso considerar, com Hal Foster, que ela nos
propõe um retorno ao real. A modernidade, com efeito, é marcada
pela perda da imagem, por uma certa deflação imaginária, tanto do sentido
quanto da própria figura, tornada fantasma. É o que pioneiramente lemos em
Mon coeur mis à nu de Baudelaire. Para Baudelaire, como sabemos, a
situação do artista moderno era a de quem vai ao mercado à maneira de um
flâneur, supostamente para olhar, mas na verdade para encontrar um
comprador. Por isso, ele chegou a ver o poeta como um prostituído, no
sentido de que recebia dinheiro pela sua confissão. Assim, a cidade era, a
seu ver, o lugar do erótico, do encontro fortuito na multidão, onde o
objeto de desejo é fisgado entre uma infinidade de outros objetos
possíveis. Rosalind Krauss identifica o despontar desse extravio da arte
contemporânea com os artifícios óticos que Marcel Duchamp ensaia, entre
1918 e 1919, nesse limite do Ocidente, nesse nada, que é Buenos
Aires. Ali ele compõe seu Pequeno vidro, intitulado À regarder
(l’autre côté du verre) d’un œil, de près, pendant presque une heure,
hoje conservado no MoMA. A seguir, Duchamp realiza sua Estereoscopia
à mão (i.e., artesanal mas também portátil ou acessível, se a ouvirmos em
plus d´une langue). Trata-se de uma fotografia fixa, metade céu,
metade mar, com uma pirâmide virtual desenhada, onde alguns críticos,
dentre eles, Octavio Paz, leram um acrônimo do artista: mar-céu Duchamp.
Em ambos os casos, o que se trata de encontrar não pode ser reencontrado e
para o espectador se conscientizar de que o objeto jamais será
reencontrado, o artista tenta levar o olhar, por meio da manipulação do
espectador, a uma nova situação perceptiva e mental, completamente
inusitada. Curiosamente, essa experiência nos remete a outras posteriores,
do mesmo Duchamp, que por sinal marcam também certo declínio da própria
noção de vanguarda ou mesmo da definição de obra, i.e., a exaustão da
autonomia formal-ideal, aquilo que Péret denomina une unité supérieure,
une voie de transmutation-fusion ou, com religioso espírito ecumênico,
l’accord de la chair et de l’esprit.
Com efeito, uma dessas intervenções, a exposição Le Surréalisme en 1947,
organizada por André Breton e Marcel Duchamp, na galeria Maeght de Paris,
marcou o fim do próprio surrealismo. Encarregado de desenhar o catálogo,
Duchamp produziu uma série de moldes de um seio feminino em látex
(modelados previamente, em gesso, sobre o corpo de sua amante, a escultora
brasileira Maria Martins), moldes que, pintados manualmente por ele e pelo
artista norte-americano Enrico Donati, receberam um título irônico e
conativo, Pede-se tocar, inversão das placas tradicionais em todo museu,
que proíbem qualquer contato entre a obra e o público. Essas próteses são
um exemplo de deslocamento do visível ao tátil que, lançando mão de
materiais não convencionais, procuram uma experiência infraleve. Eros é a
vida.
Nessa Exposição Internacional do Surrealismo, havia também uma “Sala da
chuva”, onde a água molhava, permanentemente, uma escultura de Maria
Martins, Le chemin, l'ombre, trop longs, trop etroits, escultura apoiada
sobre uma mesa de bilhar. Mais adiante, na “Sala das Superstições”,
construída em forma de ovo (e sonhada por Duchamp como uma “caverna
branca”), viam-se obras de Miró, Matta e Tanguy. Duchamp não pôde
viajar a Paris para o evento mas pediu a seu amigo Frederick Kiesler que,
seguindo suas instruções, montasse, na “Sala das Superstições”, uma obra
chamada Le rayon vert. Tratava-se de um buraco de 30cm, praticado sobre
uma tela verde, através do qual via-se uma fotografia do céu, superposta a
outra do mar. A linha do horizonte era intermitentemente iluminada pela
luz verde que saía de um tubo de néon. A rigor, O raio verde é um primeiro
passo de Duchamp para sua última e clandestina instalação, Dados, cujo
primeiro esboço, desse mesmo ano, chama-se, sintomaticamente, Dados,
Maria, a queda d'água e o gás de iluminação.
Kiesler, que conhecera Duchamp em 1925, considerava seu Grande vidro a
primeira pintura radiográfica do espaço, pelo fato de reunir escultura,
pintura e arquitetura em uma única obra. Assim, nessa Gesamtkunstwerk, o
vidro fundia superfície e volume ou, para dizê-lo com a terminologia de
Duchamp, aparência e aparição. Com a mesma lógica, ao montar a “Sala das
Superstições”, Kiesler não hesitou em realizar ele próprio uma obra
coletiva, porém, anônima, aquilo que ele chamava un premier effort vers
une continuité Architecture-Peinture-Sculpture.
Ora, o raio verde, além de ser um fenômeno ótico que acontece ao
pôr-do-sol, quando o astro emite uma radiação esverdeada que afunda no
mar, é uma crença popular, baseada em mitos nórdicos, que o associam ao
brilho do manto de uma valquíria, saindo do mar, justamente quando o sol
se põe. Júlio Verne retomou esse mito em 1882, em seu romance Le rayon
vert, que narra a experiência de uma jovem casadeira, Helena Campell,
que, ao conhecer a lenda de um raio verde e sublime
– de um verde que
nenhum pintor jamais conseguiria extrair de sua paleta, um verde que não
se encontra nem mesmo na natureza mais pura – decide sair a sua procura.
Desce então o rio Clyde, acompanhada de seus tios e de seu pretendente, o
cientista Aristóbulos Ursiclos. Em uma das peripécias do romance, num
redemoinho no Corryvrekan, miss Campell salva a vida de um jovem artista
nômade, Olivier Sinclair, que percorria então a região. Não quer que
ninguém revele ao artista que ela o salvou das águas. Não quer virar Nossa
Senhora dos Naufragados. Não quer ser portadora de iluminação para alguém
que é sans clair. (Relembremos que Duchamp chamava Maria, em suas cartas,
de Notre Dame des Désirs, e aqui se aplica também a ambivalência dam-dame
– dano,
dama.
Voltando ao relato do raio verde, digamos que, após várias experiências
frustradas, miss Campell decide ver o fenômeno do interior da gruta de
Fingal (Fingal – é bom lembrar – era o nome do pai do poeta Ossian, “um gênio
que soube harmonizar em uma única arte a poesia e a música”, razão pela
qual a palavra Fingal, em língua celta, significa gruta harmoniosa. Dessa
experiência temos, ainda, uma tradução musical, As Hébridas ou A Gruta de
Fingal, abertura em si menor (op. 26) de Félix Mendelssohn, um romântico em
busca da música infinita). A gruta, mera prefiguração da câmara de Dados,
se nos apresenta já como o espaço de uma Gesamtkunstwerk. A visão da
caverna era, de fato, fantástica, já que nela os raios de luz eram
filtrados por um prisma que os decompunha num jogo de luz e sombra
impossível de ser criado pelo homem, gerando, como diz o narrador, “um
silêncio sonoro”, oxímoro que traduz a peculiar experiência visual da
indecidibilidade. O silêncio sonoro é, de fato, um infraleve. É, portanto,
na gruta inacessível que o raio se torna, finalmente, visível. Quer dizer,
ele torna-se visível para todos, menos para Olivier ou para Helena, que,
olhando-se nos olhos, especularmente, perdem, abismados no amor, o tão
esquivo fenômeno sideral.
Não é fortuito que o raio verde seja contemplado a partir da experiência
iniciática da gruta. Sabemos que as cavernas retiram a arte do mito
narcísico de sua origem. É a tese de Bataille em Lascaux (1955): as grutas
não são espaço de imitação mas de representação. Nelas as imagens se
tornam signos porque, justamente, as imagens encontradas numa caverna não
querem nunca criar algo novo mas apenas violentar uma superfície. Elas não
reiteram a diferença mas assinalam a indiferença. São espaços de
alteração, como diria Bataille, em que o bifronte – o alto e o baixo, o
interno e o externo – impõe-se ao nosso olhar e pede para ser tocado. Graças
à reconstrução anagramática, as ondulações da linguagem, la langue verte,
apagam, em sua infinita disseminação, os obstáculos da distância.
Com efeito, só a partir da tendência a reencontrar, que funda a orientação
do sujeito em direção ao objeto, constatamos que esse objeto não nos é nem
mesmo dito mas, mesmo assim, ele se dissemina de forma bastante explícita,
ainda que enigmática. O raio verde (VERT) nos remete pois à vertigem da
própria palavra: VERT, VERS, VERRE, VERS. Verde, verso, vidro, em direção
a – em outras palavras, vers une continuité Architecture-Peinture-Sculpture.
É a partir dessa constatação que Duchamp substitui o regard pelo retard.
Acompanha, assim, a noção moderna de que, sem distanciamento, sem retard,
não pode haver nem sujeito nem objeto e, pelo contrário, com o
desaparecimento da distância, no gozo ou no êxtase, tanto o sujeito quanto
o objeto correm o risco, eles próprios, de desaparecerem.
Porém, não é só o distanciamento-retard que explica a questão do valor da
obra de arte, já que o próprio fato de existirem valores é que se
constitui em um fenômeno primordial. Aí se esboça o paradoxo da lei: o
fato de que o primeiro passo em direção à transgressão do interdito, isto
é, a morte do legislador, é também um reforço da própria proibição. Até a
emergência das vanguardas, a arte fora entendida como um processo de
progressiva objetivação que coincidia, aliás, na cultura ocidental, com a
busca do objeto idealizado e, na medida em que o sujeito só se interessava
pelas qualidades de um objeto, isto é, na medida em que esse objeto era
agradável ou proveitoso para ele, isso lhe permitia entrar na cadeia das
trocas e substituições com qualquer outro objeto que apresentasse as
mesmas características. É esse o sentido do amor sublime reivindicado por Péret: o deslizamento dos significantes, o movimento da identificação
imaginária, que produz uma transformação ideal (le cri de l’angoisse
humaine qui se métamorphose en chant d’allégresse). Porém, conforme o
objeto aumenta a sua importância no processo de objetivação, a tensão
também se desloca, e ela passa do ob-jeto para nós em direção ao objeto em
si. Nesse ponto, o objeto torna-se cada vez menos equivalente a outros
objetos e diríamos, pelo contrário, que seu valor de troca diminui de
maneira inversamente proporcional ao aumento do seu valor de uso ou, se
preferirem, ao valor de uso do impossível. Dados aponta, assim, em direção
a (VERS) o retorno do real, experiência que começa seu percurso na
disseminação de imagens em série através do estereoscópio – um apetrecho,
afinal de contas, desenvolvido pela pornografia e pelos prostíbulos.
O processo de distanciamento-retard que Duchamp nos propõe nessas
intervenções nominalistas faz a obra de arte oscilar entre o objeto e a
Coisa em si. Em outras palavras, suas criações atravessam um processo de
dessubjetivação já que o objetivo do desejo é sempre ir além, perseguir a
Coisa. Não é um caso isolado. Já Heidegger, em sua análise do vaso,
destacava o valor da peça como algo que não decorre da função (receber e
conservar um líquido) mas de sua natureza (recortar um vazio) e dizia: “o
vazio, aquilo que no vaso não é nada, é o que ele é enquanto vaso, um
continente”. Em outras palavras, o nada é a natureza da coisa enquanto
coisa, sem a qual nada poderia ser afirmado da Coisa em si. Daí provém a
noção lacaniana de que nada somos, enquanto sujeitos, para além de nossas
qualidades expressas através de significantes, de tal modo que a Coisa
remete sempre à nossa extimidade, o aspecto interno-externo da gruta.
Diríamos, em outras palavras, que a série estereoscopias + raio verde + dados
nos demonstra que o inconsciente desvenda a estrutura de base do desejo,
que é sempre desejo do Outro, desejo de desejar. Reinterpretado como valor
de uso do impossível, o valor desse percurso é o de um desejo elevado ao
segundo grau. Consiste no poder de um objeto manter ativo – i.e., potente, em
movimento – o desejo de desejar. Desmaterializa-se, assim, o paradigma da
lei positiva, uma vez que se mostra sua constante inutilidade que,
paradoxalmente, é constitutiva do próprio valor. Ora, se a in-utilidade é
um traço do valor, isto quer dizer que o simples fato de existirem leis e
valores é um elemento primordial. Em outras palavras, o inconsciente não
seriam aquelas razões ou motivos ocultos de um evento (que a vertente
mítica, mediúnica, do surrealismo tentou impor), mas o fato de que o
sujeito não quer saber que a lei não tem fundamentação objetiva.
Não há, portanto, desse ponto de vista que é o de Bataille ou Duchamp,
ambos dissidentes do surrealismo, dissidentes do surrealismo a serviço da
revolução, não há Bem Supremo porque esse Bem Supremo não passa de das Ding, um bem interditado, o fundamento da lei moral. Freud já mostrara que
não há, no nível do princípio do prazer, um Bem Supremo – porque o Bem
Supremo, que é das Ding, que é a mãe, o objeto do incesto, é um bem
proibido e porque, além do mais, não há, de fato, nenhum outro bem a
compensar a falta. Tal é o fundamento, derrubado ou invertido, da lei
moral. Ora, nesse sentido, se o sujeito (do desejo) e o valor (do objeto
desejado) só existem em virtude da pura negatividade, da distância, do
retard, isto é, da estrutura paradoxal do valor, o valor soberano deve ter
características totalmente diferentes das da subjetividade.
A poesia é assim a negatividade na qual o acesso se torna naquilo que
é: isso que deve ceder, e com esse fim começar por se esquivar, por se
recusar. O acesso é difícil, não é uma qualidade acidental, o que
significa que a dificuldade não faz o acesso. O difícil é o que não se
deixa fazer, e é propriamente o que a poesia faz. Ela faz o difícil. Por
ser ela a fazê-lo, parece fácil, e é por isso que, desde há muito, a
poesia é vista como coisa ligeira. Ora, não se trata unicamente de
uma aparência. A poesia faz a facilidade do difícil, do absolutamente
difícil. Na facilidade, a dificuldade cede. Mas isso não significa que ela
seja removida. Isso significa que ela é poesia, apresentada pelo que é, e
que nós estamos compreendendo nela. De repente, facilmente, estamos no
acesso, isto é, na absoluta dificuldade, elevada e tocante. (Jean Luc Nancy)
Ora, os partidários (bretonianos) do amor sublime, da poesia sublime,
buscavam uma positividade fácil, queriam diviniser l’être humain.
Porém, a linha dissidente que estou tentando analisar, entendia que o
amor, ou a poesia, enquanto Bem Soberano, estão situados para além do bem e
do mal; eles são a Coisa, algo indiferente ao bem e ao mal e, portanto,
insuportavelmente bom. Aquilo que abre as Poesias de Mallarmé como um
Salut (uma saudação, porém, ao mesmo tempo, uma salvação) e que encerra
uma autêntica definição da arte moderna – rien, cette écume – transforma-se,
nas Notas de Duchamp, em exigência de uma beleza de indiferença, isto é,
exigência de um Bem Soberano. Mas enquanto Coisa, esse Bem Supremo é um
simples vazio, um nada e, no plano da ética, ele reforça a idéia de que
todo contato do sujeito com esta Coisa torna-se destrutivo para o próprio
sujeito.
Por isso é importante frisar que, na arte contemporânea, esse contato com
a Coisa coloca o sujeito no limite, isto é, em um ponto de basculação
indecidível que nos permitiria, a rigor, redefinir o limite como um limiar
(se não há um para além do limite, todo limite é um limiar, todo limite
abre a passagem para o Real, acena com um pas au-delà). Paul Vanden Berghe
destaca que, na experiência do sublime contemporâneo, trata-se, na
verdade, de acampar sobre o limite (piétiner sur la limite) o que, ao
mesmo tempo, significa transgredir ou pisar o limite (piétiner la limite).
Mas não chegaríamos a essa compreensão do vínculo existente, no sublime
contemporâneo, entre erotismo e retorno do real se não evocássemos também
até que ponto essas buscas estão mediadas pela perda de estatuto da obra e
pela busca de um objeto. Assim como esse disciplinado aluno de Lacan que
foi Roland Barthes nos propôs a passagem “Da obra ao texto”, isto é, do
orgânico ao maquínico, do estésico ao anestésico, do individual ao anonyme,
em suma, da obra ao des-oeuvrement, isto é, à inoperância do texte, é
impossível dissociar as buscas duchampianas das pesquisas contemporâneas
de Dali, de tão forte impacto na teoria lacaniana. Relembremos, então, que
já em 1931, no terceiro número de Le Surréalisme au Service de la
Révolution, Salvador Dali teorizava a respeito dos “Objetos surrealistas”,
estipulando que:
1. O objeto existe fora de nós sem que dele participemos. São os objetos
antropomórficos;
2. O objeto assume o aspecto imutável do desejo e age sobre nossa
contemplação. São os objetos oníricos;
3. O objeto é de tal modo mutável que se pode agir sobre ele. São objetos
que operam simbolicamente. E, por último,
4. O objeto tende a provocar nossa fusão com ele e nos faz desejar a
formação de uma unidade com ele. É a voracidade antropofágica por um
objeto e são, em última análise, os objetos comestíveis.
Assim sendo, não surpreende que, apenas dois anos mais tarde, no quinto
número da mesma revista, Dali defina o que ele mesmo chama de objetos psico-atmosféricos-anamórficos, cujas características deveriam ser
associadas, a meu ver, com duas outras derivas. No campo da arte, com a
instalação, na medida em que Etant donnés (a obra derradeira de Duchamp
mas também a primeira instalação, como passo para além da pintura) poderia
ser avaliada como uma realização desses objetos
psico-atmosférico-anamórficos. Mas, paralelamente, essa descrição de Dali
prepara aquilo que, com Lacan, passaremos a conhecer como objeto petit a.
Tal como o Etant donnés, esse objeto psico-atmosférico-anamórfico é o que
chamaríamos de o fora-do-significado, o sem-sentido. É em função desse
fora-da-significação e de uma relação patética a ele que o sujeito, como
diz Lacan, conserva sua distância e constitui-se num mundo de relação
anterior a todo recalque. Ou seja, que o objeto psico-atmosférico-anamórfico, entendido como das Ding, está colocado no
centro do mundo subjetivo do inconsciente, organizando relações
significantes em torno a si, mas também fora desse universo.
Pois esse das Ding está justamente no centro, no sentido de estar
excluído. Quer dizer que, na realidade, ele deve ser estabelecido como
exterior, esse das Ding, esse Outro pré-histórico impossível de esquecer,
do qual Freud afirma a necessidade da posição primeira sob a forma de
alguma coisa que é entfremdet, alheia a mim, embora esteja no âmago desse
eu, alguma coisa que, no nível do inconsciente, só uma representação
representa. (Lacan)
Disse, no início, que os primeiros esboços de Dados são de 1947 e desse ano
é também O raio verde. Entre 1945 e 46, Maria Martins elabora L´impossible
e, ainda, em 1947, Maurice Blanchot, em O espaço literário, retoma uma
observação de Levinas, interessante para esta argumentação no sentido de
afirmar que a morte é a possibilidade extrema, absolutamente própria do
homem, já que só ele pode morrer, ou seja, que a morte ainda é para ele uma
possibilidade, ou, em outras palavras, o evento pelo qual ele sai do
possível e pertence ao impossível está, entretanto, em seu próprio
domínio, é o momento extremo de sua possibilidade, ela é “a possibilidade
da impossibilidade”. Ela é sua potência. Justamente em Le temps et l´Autre,
Levinas, apoiado em Heidegger, diz que “le néant heideggerien a encore une
espèce d´activité et d´être: le néant néantit”, conceito que, no nível do
inconsciente, se traduz, para Lacan, como o valor que “só uma
representação representa”. Desdobrando, portanto, a noção de real,
diríamos que não é possível confundir a Lei com a Coisa. Mas só conhecemos
a Coisa através da Lei.
Porque não teria idéia da concupiscência se a Lei não dissesse – Não
cobiçarás. Foi a Coisa, portanto, que, aproveitando-se da ocasião que lhe
foi dada pelo mandamento, excitou em mim todas as concupiscências; porque
sem a Lei a Coisa estava morta. Quando eu estava sem a Lei, eu vivia; mas,
sobrevindo o mandamento, a Coisa recobrou vida, conduziu-me à morte.
Porque a Coisa, aproveitando da ocasião do mandamento, seduziu-me, e por
ele fez-me desejo de morte. (Lacan)
Na conclusão do seminário sobre a Ética, Lacan afirma então que a relação
entre a Coisa e a Lei ativa nosso desejo, exclusivamente, numa relação com
a Lei, pela qual ele se torna desejo de morte. É somente pelo fato da Lei
que a transgressão adquire um caráter desmesurado e hiperbólico e só uma
análise do que o homem foi capaz de elaborar, através da linguagem, para
transgredir essa Lei, colocando-se numa relação com o desejo que
ultrapassasse o clássico vínculo de interdição, permitiu vislumbrar uma
saída a introduzir, por cima da moral, uma erótica, uma linguagem de
ruptura imanente. Essa saída, que é a de Foucault, que é a de Deleuze, e
que é, ainda, a de Agamben, remonta ao capítulo 7, parágrafo 7, da Epístola
aos Romanos de São Paulo. Quando este se pergunta se a Lei é pecado (ó nómos hamartia) mas constata, outrossim, que só se conhece o pecado
através da Lei (ten hamartian ouk egnon ei me diá vómou), o fundamento da
lei moral imaterializa-se, no sentido que lhe atribuiria Carl Schmitt, o
mesmo, aliás, a partir do qual Agamben elabora seu conceito de estado de
exceção, donde, concluiríamos, não há como isolar a questão da Coisa da
ausência de fundamentação de toda lei. Dela deriva uma filosofia da vida
encarada não mais como bios (disciplina) e sim como zoé (acefalidade).
Comecei citando a reivindicação de um sublime modernista por parte de
Benjamin Péret. Gostaria de lembrar, para concluir, que no catálogo dessa
mesma exposição internacional de 1947, alguém situado, esteticamente, nos
antípodas dele, Georges Bataille, reivindica a necessidade do mito (ou
melhor: denuncia a ausência de mito como um único, verdadeiro e trágico
mito na cultura ocidental). Bataille, que postulava, a rigor, o “ódio da
poesia”, sempre destacou a sintonia entre a crueldade dos rituais
primitivos de sacrifício e os apelos escandalosos de Sade, um exemplar
precursor do inconsciente moderno. Em sua concepção de arte, Bataille
internalizou os princípios sadeanos ao ponto de que, em 1955, analisando a
obra de Manet, chegou a destacar o artista francês como marco inaugural da
arte moderna porque ele teria sido o primeiro a destruir o tema na
pintura. Com Manet, começa, com efeito, a obliteração do enredo que
deveria ser o pretexto do quadro. No caso de Olympia, o assunto da
prostituição fica invalidado pela manipulação de Manet e isso provoca um
corte de relações entre causa e efeito, entre texto e imagem. A pintura
oblitera o texto, chegou a escrever Bataille, e o significado da pintura
não está no texto escondido, mas na supressão deste texto. Baste-nos, além
do mais, considerar o papel da negra que acompanha Olympia. Ela é, sem
dúvida, uma baiana, das tantas que Manet observou aqui, no Rio de Janeiro,
como foi pioneiramente assinalado por Antonio Bento. Mas o importante não
é a escravidão omitida, mas o gesto de recusa e negatividade. Relembremos
as palavras de Nancy: a poesia é a negatividade em que o acesso se torna
aquilo que deve ceder e recusar. A poesia faz a facilidade do
absolutamente difícil, e até mesmo do impossível. Por isso ela é poesia,
porque, não mais do que de repente, assim, facilmente, estamos no acesso,
na absoluta dificuldade, elevada, porém, tocante.
Bataille estava longe de identificar o objeto surrealista com o sublime
revolucionário de Breton. Entendia, pelo contrário, que o fervor utópico e
a esperança de liberação deveriam se voltar, preferentemente, ao próprio
sujeito, num estado terminal de angústia. Ora, nesse sentido, a definição
de arte como pulverização ou disseminação do sentido deve ser associada
àquilo que, dois anos antes, assistindo à conferência de Guido Calógero
sobre a angústia e a vida moral, era defendido pelo próprio Bataille:
Lo que ahora deseo afirmar, esencialmente, es el hecho de que me
complazco, al menos en ciertos momentos, en la angustia, y digamos, aun en
este momento. Quiero decir que me ahogo en ella, me abandono a ella sin
reserva, y esa es la razón por la cual puedo hablar con una ironía tan
grande, es la razón por la cual río tan profundamente en lo hondo de mí.
No pretendo hacer aquí una confidencia que hace rato nos hizo sentir hasta
qué punto estaba desplazada, sino que, finalmente, tuve la necesidad,
estando con ustedes, de oponer a la condena y a la huida de la angustia la
actitud que consiste en abandonarse a ella del mismo modo en que el
moribundo puede abandonarse a la muerte.
La palabra ha sido a menudo dada en estos días al dios de la razón y de la
salvación. Al final, he sentido la necesidad de dársela por una vez al
dios de la angustia y de la ausencia de salvación. Debo pedir disculpas
por ello, pero me impulsó esto que me parece esencial: creo que el
movimiento que nos conduce a querer un mundo sin angustia nos conducirá,
si proseguimos hasta el final, a construir un mundo de alguna manera frío,
un mundo privado del calor humano. ¿Por qué no labrarnos mejor un espíritu
que esté a la medida de la realidad histórica, verdaderamente monstruosa,
en que vivimos, y que es así, después de todo, porque los hombres la han
querido así?
La humanidad tiene sed de angustia, ha tenido siempre sed de angustia,
siempre ha buscado toda la angustia que era capaz de soportar – no más,
evidentemente, sino toda la que tiene la fuerza de resistir sin
desfallecer. Basta, para saberlo de una vez por todas, mirar las
multitudes que atraen las tragedias, las consecuencias que les siguen, el
aliento entrecortado frente a la pantalla, las aventuras más angustiantes.
Pero, ¿cómo, si huimos, si aborrecemos la angustia, si continuamos
ignorando una pasión tan obstinada, tan clara, podremos construirnos un
mundo que no explote dentro de los límites en que los sabios siempre se
han esforzado en encerrarlo?
RAUL ANTELO é doutor em
literatura brasileira pela USP e professor titular de literatura na
Universidade Federal de Santa Catarina, tendo já sido professor visitante
da Duke University, da Yale University e da Tinker Foundation. Possui uma
vasta produção como ensaísta. Participou de importantes congressos e
seminários internacionais, debatendo com intelectuais e artistas como
Jorge Schwartz, Décio Pignatari, Davi Arrigucci, Nicolau Sevcenko e Jorge
Luis Borges. É autor de Maria con Marcel Duchamp en los trópicos
(2006), Transgressão e modernidade (2001), entre outros.
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