|
|

|

aderaldo luciano
mais uma vez cordel, Lampião mais uma vez
1. Em nenhum recanto do
Nordeste brasileiro vimos ou ouvimos alguém chamar cordão de cordel. Não,
não existem cordéis por lá. Acreditamos mesmo que isso seja extensivo ao
Brasil. A palavra cordel só se apresenta naquela literatura editada em
folhetos de oito ou dezesseis páginas, raramente de trinta e duas, papel
jornal, com uma xilogravura na capa, vendida em bancas pelo país afora,
uma Literatura de Cordel, que muitos avaliam ter origem na Península
Ibérica e que tenha se transportado para o Brasil. Defendo que a
nomenclatura carece de conserto e de concerto. Precisa de revisão.
2. Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, reinou por vinte anos nos
sertões nordestinos. Foi tema de cinema, de histórias-em-quadrinhos, de
música popular, da literatura regional nordestina. Sua indumentária é
símbolo de Nordeste. Aquele chapéu de Luiz Gonzaga teve como matriz o
chapéu do cangaceiro. Os trios de forró, nos bailes, e as bandas de
pífanos se vestiam, antes de serem descobertos pelo capital, como os
cabras de Lampião. O Imperador do Sertão não temia emboscada, conhecia os
lajedos e as locas, paramentava-se para o combate, enclausurava-se nos
desertos quando necessário, rumava sobre cidades quando decidido. Foi a
grande descoberta daquela literatura popular em verso, editada em
folhetos. Foi a síntese da problemática social do Nordeste e herdeiro dos
seus mais remotos habitantes. Era um bicho na guerra, um tapuia portando
mosquetões, preciosos e precisos punhais.
3. Os índios do litoral nordestino falavam o nheengatu, a língua boa. Os
do interior, do sertão, eram donos da língua travada. Os tapuias, nômades
e hostis, bravios, bárbaros, aliaram-se aos holandeses, lutaram contra os
portugueses e desenvolveram uma arte completa de matar. Cortavam cabeças
de inimigos e as dependuravam em suas cabanas, executavam seus
prisioneiros a bordoadas e depois os comiam, num banquete sacro. Sua
religião era um complexo sistema no qual feiticeiros incorporavam
espíritos e entidades das matas. Viviam sempre em pé de guerra, não eram
gregários e dominaram o sertão até o Levante dos Bárbaros em 1688 e seu
completo extermínio, por volta de 1696, mortos de doença adquirida do
homem branco. Foram dizimados, mas não sem antes deglutirem considerável
número de inimigos que, quando os viam pintados hediondamente para o
confronto, sentiam a alma lhes fugir.
4. Esses três elementos conjuram-se no Nordeste. Hoje querem mais do que o
exotismo. Exigem olhares mais comprometidos e engajados. A chamada
Literatura de Cordel pede urgente enquadramento dentro do todo literário
brasileiro. Um enquadramento que justifique a sua importância na formação
da nação e identidade nordestina. Que deixe de ser abordada apenas em
eventos sazonais, passe aos manuais de história da literatura brasileira,
esteja presente nos livros didáticos. Requer respeito, por ser um ícone
indelével de um povo, porta-voz infalível de uma região.
5. Essa literatura, no encontro com Lampião, emancipou-se das novelas
medievais e fundou sua poética, envolvendo-se em um ciclo épico
determinante do seu valor. Lampião, a síntese, a mais perfeita encarnação
do nosso mito primordial, herói épico lembrado e relembrado, vivo em cada
nordestino. Esses três elementos, portanto, são a nossa averiguação,
formando um todo, ou seja: Lampião, herdeiro tapuia, cantado na Literatura
de Cordel.
6. Elegemos três pilares para refletir:
a) A poesia Épica não morreu, está na origem da literatura de alguns
povos, para atestar o fato de que, na América pré-cabralina, havia uma
cultura cuja tradição, embora ágrafa, encontrava-se assentada sobre os
patamares histórico e mitológico, com um conjunto de narrativas de caráter
epopéico, mas a chegada do europeu estabeleceu um corte cultural,
irreparável no tempo. As narrativas autóctones cederam lugar às narrativas
ibéricas, romances de cavalaria, autos de Gil Vicente, à épica camoniana.
Só com Gregório de Mattos, sobre o cadáver indígena, haverá a primeira
experiência da poesia “morena”, sem o elemento épico, porém, que só será
retomado no Romantismo, com o redescoberto Sousândrade.
b) O Romantismo marcou o início da brasilidade em nossa literatura e nela
a ressurreição do índio. Um índio literário europeizado, é verdade, mas
capaz de promover o aparecimento de uma literatura de conteúdo nacional. É
em fins dessa escola literária que aparece no Nordeste a Literatura de
Cordel. Iniciando com temas mágicos e religiosos, a Literatura de Cordel
canta os mesmos heróis da Península Ibérica: Rolando, Carlos Magno e os
doze pares de França, João de Calais, a influência árabe das Mil e Uma
Noites, amor e desventuras entre casais de um “reino distante”. Na busca
de uma identidade, passa a cantar heróis nacionais, entre os quais
escolhemos Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, para analisar, nos
folhetos que lhe são dedicados, a aparição do herói épico e sua posterior
influência sobre a formação de uma identidade brasileira.
c) Lampião, o homem e a lenda, herdeiro natural dos índios tapuias do
sertão nordestino. Um herói-síntese, reinando entre os costumes tapuias e
os costumes do bando de seus cangaceiros. Lampião épico: o herói degolado
no reino dos mortos, entre Céu, Inferno e Purgatório. Cordel: literatura
degolada das academias, adormecida no limbo. Tapuias: povo degolado pela
sífilis européia nos seiscentos.
ADERALDO LUCIANO é
paraibano, nascido em Areia, poeta, professor de Teoria da Literatura e
cozinheiro amador.
voltar ao índice |
imprimir
|