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wim wenders


primeira descrição de um filme verdadeiramente indescritível

 

 

E nós: espectadores, sempre,

por toda a parte, voltados para

tudo e nunca lá pra fora!
 

Rilke. Da oitava das

Elegias de Duíno
 

 


Primeiro, mal podemos descrever alguma coisa, a não ser um desejo ou desejos.

Assim se começa, quando queremos fazer um filme, ou escrever um livro, ou pintar um quadro, ou compor uma música, ou, de resto, inventar alguma coisa.

Temos um desejo.

Desejamos que pudesse haver alguma coisa e depois trabalhamos até que isso exista. Desejamos acrescentar alguma coisa ao mundo, alguma coisa mais bonita, ou mais verdadeira, ou mais exata, ou mais útil, ou simplesmente alguma coisa diferente de tudo aquilo que já há. E logo no começo, em simultâneo com o desejo, imaginamos também já alguma coisa diferente daquilo que já há ou, pelo menos, vemos relampejar alguma coisa de diferente. Caminhamos depois nesta direção em que vemos uma luz, na esperança de não nos perdermos pelo caminho e de não esquecermos ou trairmos o desejo inicial.

E no fim há depois uma imagem, ou imagens, de alguma coisa, ou uma música, ou uma coisa nova, com a qual podemos pôr a funcionar alguma coisa, ou uma história, ou justamente essa combinação estranha de tudo isto: um filme. Só que: com um filme — e nisto distingue-se de quadros, romances, composições musicais ou invenções —, só com um filme, temos que primeiro apresentar contas do nosso desejo e, mais do que isso, até temos desde logo que descrever o caminho que queremos percorrer com ele. Não é, perante isto, de admirar que tantos filmes percam o seu primeiro brilho, o seu cometa.

Eu desejei e vi brilhar um filme EM e, por isso, SOBRE Berlim.

Um filme em que pudesse estar contida uma noção da história desta cidade desde o fim da guerra. Um filme em que pudesse surgir e manifestar-se aquilo de que eu sinto a falta em tantos filmes que aqui se desenrolam e que, contudo, parece estar tão palpável diante dos olhos, quando chegamos a esta cidade: uma sensação, sim, mas também alguma coisa no ar, e sob os pés, e nas caras — aquilo justamente que distingue de modo tão total a vida nesta cidade da vida noutras cidades.

Para a descrição e compreensão do meu desejo é ainda importante o seguinte: ele é um desejo de alguém que esteve muito tempo ausente da Alemanha e que só pôde e quis reconhecer sempre nesta cidade aquilo que constitui o "ser alemão". E, contudo, não sou berlinense. Quem é que ainda o é? Porém, as visitas a esta cidade, desde há vinte anos, são para mim as únicas e verdadeiras "experiências da Alemanha", porque aquela história que em qualquer outro lado da "Alemanha", nomeadamente na República Federal, só pôde sempre ser vivida como renegação ou como ausência, ou seja, da qual tínhamos que sentir a falta, está aqui física e emocionalmente presente.

É claro que eu não desejei um filme exclusivamente sobre Berlim, sobre um lugar. Desejei ainda mais, e precisamente, que se ocupasse de pessoas e, assim, da única e constante questão: "como devemos viver?".

"BERLIM" surge neste desejo, por conseguinte, também como representante de "O MUNDO".
Não conheço outro lugar em que isto fosse mais lícito.
Berlim é um "lugar histórico da verdade".
Nenhuma outra cidade é tanto um símbolo,
tão LUGAR DE SOBREVIVÊNCIA,
tão exemplar do nosso século.
Berlim está tão dividida como o nosso mundo,
como o nosso tempo,
como homens e mulheres,
como jovens e velhos,
como pobres e ricos,
como cada uma das nossas experiências.
Berlim estaria "destruída", dizem muitos.
Eu digo: Berlim é mais real do que todas as outras
cidades.
Justamente: mais um LOCAL do que uma CIDADE.
"... viver nesta cidade da verdade indivisa, relacionar-se
com as formas invisíveis do Futuro e do Passado..."
este É o meu desejo, a caminho de um filme.


A minha história não se ocupa de Berlim,
por ser aqui que se desenrola,
mas porque não se poderia desenrolar em mais lugar
nenhum.
O filme deve chamar-se:
DER HIMMEL ÜBER BERLIN,
porque o céu é talvez a única coisa
ainda comum a ambas as cidades nesta cidade
com exceção do seu Passado,
naturalmente. "Sabe o céu", por assim dizer,
se há ainda um Futuro comum.
A língua, a muito evocada,
A LÍNGUA ALEMÃ
é, na aparência, ainda comum,
mas, em rigor, passa-se com ela
o mesmo que com a própria cidade:
numa língua estão contidas duas

que têm um Passado comum,

mas não necessariamente um Futuro.

E o presente?
Dele se ocupa, deve ocupar-se, este filme

DER HIMMEL ÜBER BERLIN

[O CÉU SOBRE BERLIM]
 

SOBRE BERLIM?
em Berlim, de Berlim, com Berlim, por causa...
De quê, sobre quê, onde, com quê deve um tal filme
pois "ocupar-se", "falar", "desenrolar-se", "lidar"?
E para quê?
Como se Berlim não estivesse
já, até ao último bocadinho,
iluminada, sondada, espremida.
Sobretudo agora que faz 750 anos
e foi ainda também elevada a MITO,
o que talvez possamos compreender,
mas que nem por isso torna este estado "Berlim"
mais razoável,
antes ainda, mais incompreensível.
 

O CÉU?
o céu sobre ela é portanto a única coisa clara,
transparente e compreensível. As nuvens
passam, chove e neva e relampeja
e troveja lá de cima, a lua nasce e passa
lá em cima e eclipsa-se, o sol brilha hoje
sobre a dupla cidade como sobre
a cidade-ruína de 1945 e a "cidade-fachada" dos anos 50,
como já tinha brilhado, quando
ainda não havia cidade, e como ainda brilhará
quando, finalmente, já não houver cidade.
 

Torna-se agora lentamente claro o que espero
que seja possível:
poder em Berlim contar alguma coisa,
nomeadamente uma história.

(Temos que acentuar bem, porque eu não
procuro aqui sequer uma HISTÓRIA, mas:
UMA história.)
Para isso é preciso distância, um olhar de longe,
melhor ainda: muito de lá de cima. Não quero contar uma

HISTÓRIA de UNIDADE, mas infelizmente o mais

difícil:
UMA história de DUALIDADE.

Oh, sim, Berlim não o torna fácil a ninguém,
Daí que nos alegremos ao encontrar
apoio moral, quando lemos na contracapa do catálogo
da exposição MYTHOS BERLIN uma frase de
Heiner Müller:
"Berlim é o final. O resto é Pré-História.
Se a História tiver que ter lugar, será Berlim
o começo."
Isto ajuda mais?
A História não tem naturalmente lugar no filme,
mas sim UMA história, embora naturalmente também
numa HISTÓRIA possa acontecer HISTÓRIA,
imagens e rastos da História passada
e noções da futura. Em todo o caso:
SABE O CÉU!
Teríamos que ter uma paciência de ANJO para poder
manter isto tudo separado.
PÁRA!
Exatamente neste momento
começa o filme que no meu espírito
PAIRA,
no verdadeiro sentido da palavra:
com ANJOS.
Sim, anjos. Um filme com anjos,
Eu sei que isto não vai ser imediatamente compreendido
e eu próprio também ainda mal o compreendo:
"ANJOS"!
Sim, anjos. Um filme com anjos.
Eu sei que isto não vai ser imediatamente compreendido
e eu próprio também ainda mal o compreendo:
"ANJOS"!
 

A posteriori é-me já quase impossível determinar como nasceu a idéia de povoar com anjos a minha história em Berlim. Surgiu de muitas fontes ao mesmo tempo. Foram, sobretudo, as Elegias de Duíno de Rilke. Depois foram, já desde há muito, os quadros de Paul Klee. O Engel der Geschichte de Walter Benjamin. Foi, de repente, também uma canção dos Cure, na qual se falava de fallen angels e uma song no auto-rádio, em que aparecia o verso talk to an angel. Foi, um dia, no centro de Berlim, aperceber-me daquela figura dourada, o "anjo da paz", que de anjo guerreiro da vitória evoluiu para pacifista, foi uma idéia de quatro pilotos aliados lançados sobre Berlim, foi a idéia de uma coexistência e justaposição dos universos de hoje e de ontem em Berlim, "imagens duplas" no tempo e no espaço, foram, desde sempre, as imagens infantis de anjos como observadores invisíveis e constantemente presentes; resumindo, foi, por assim dizer, a velha "nostalgia do transcendente" e foi simultaneamente também a vontade do contrário flagrante:
 

a vontade de fazer uma comédia!

A SERIEDADE SAGRADA DE UMA COMÉDIA!

Sim, eu próprio me admiro.
Que aspecto pode pois, deve pois, ter um tal filme, se possível uma tal comédia, em que as figuras principais são anjos?
Com asas, sem asas?


Que posso fazer de diferente do que continuar a tentar descrever o que me "paira" no espírito, se isto nem sequer é um "argumento"?

Entre outras coisas, um MÉTODO DE TRABALHO para este filme.

Primeiro, reunirei de uma vez todos os desejos, idéias, imagens, histórias, e talvez até já algo assim como uma estrutura rudimentar, simultaneamente com uma grande quantidade de documentação sobre Berlim, material fílmico antigo, atualidades e fotos. Já comecei uma procura algarda de motivos, rua a rua.

Depois, gostaria de partir para uma clausura de várias semanas com os protagonistas e um autor, e discutir em conjunto, alargar, experimentar, aceitar ou rejeitar este material sobre "anjos" e "Berlim", estabelecer, portanto, um PATRIMÔNIO CONJUNTO do qual pode depois ser feito um filme.

Conversei com Peter Handke sobre este projeto e ele estava pronto a participar nele, com a condição de que fosse um filme em que "se improvise".

Dei-lhe razão.

Se a minha história de anjos fosse possível, então não seria como filme de special effects, sutil, preciso, mas como uma coisa aberta, justamente "improvisada".
 

Sobretudo em Berlim, a cidade dos improvisadores.
 

Se eu tivesse que antepor um prefácio, ou uma espécie de "pré-história" à minha história, ele soaria mais ou menos assim:

QUANDO DEUS, INFINITAMENTE DESILUDIDO, FEZ PREPARATIVOS PARA SE AFASTAR PARA SEMPRE DA TERRA E ABANDONAR A HUMANIDADE AO SEU DESTINO, ACONTECEU QUE ALGUNS DOS SEUS ANJOS O CONTRARIARAM E INTERVIERAM EM FAVOR DA CAUSA DOS HOMENS: DEVIA DAR-SE-LHES AINDA MAIS UMA OPORTUNIDADE.

DEUS, IRADO COM O SEU PROTESTO, DESTERROU-OS PARA O ENTÃO MAIS TERRÍVEL LUGAR DO MUNDO: BERLIM.

E, DEPOIS, AFASTOU-SE.

TUDO ISTO TEVE LUGAR NO TEMPO QUE HOJE SE DESIGNA POR "ÚLTIMOS ANOS DA GUERRA".

E ASSIM, ESTES ANJOS CAÍDOS NA "SEGUNDA QUEDA DOS ANJOS", ESTÃO PRESOS, DESDE ENTÃO, NESTA CIDADE, PARA SEMPRE, SEM ESPERANÇA DE SALVAÇÃO OU MESMO DE REGRESSO AO CÉU. ESTÃO CONDENADOS A SER TESTEMUNHAS, ETERNAMENTE, NADA MAIS DO QUE ESPECTADORES, SEM PODER SEQUER INFLUIR O MÍNIMO SOBRE OS HOMENS OU INTERVIR NO CURSO DA HISTÓRIA. NEM SEQUER UM GRÃO DE AREIA PODE SER MOVIDO POR ELES...

Assim, ou de modo semelhante, poderia começar um discurso de abertura. Não haverá, porém, um tal discurso. Isto esclarecer-se-á tudo gradualmente e alargar-se-á mais e mais no filme. A presença dos anjos explicar-se-á por si mesma.

(Porém, também isto pertence, por agora, ainda ao campo dos desejos.)

Depois da pré-história, a história, ela mesma.

 

Os anjos estão, portanto, em Berlim desde o fim da Segunda Guerra Mundial, condenados a permanecer aqui. Não detêm já "poder" algum, já são apenas espectadores, assistem a tudo aquilo que acontece, sem a mais pequena possibilidade de poderem participar. Antigamente ainda podiam influenciar ou, enquanto anjos da guarda, pelo menos, sussurrar alguma coisa às pessoas, mas também isso é agora passado. Agora, estão simplesmente ali, invisíveis aos homens, vendo eles próprios, todavia, tudo.

Assim, deambulam agora por Berlim, desde há mais de 40 anos. Cada um deles tem a sua "rota", que percorre sempre de novo, e as "suas" pessoas que lhe são muito queridas e que, por isso, ele segue mais atentamente do que a todas as outras que igualmente encontra. Os anjos não só vêem tudo, mas ouvem também tudo, mesmo os pensamentos mais secretos. Podem sentar-se num banco do Jardim Zoológico, ao lado da velha senhora, e escutar os seus pensamentos, ou podem colocar-se atrás do solitário condutor do metropolitano e seguir a sua corrente de pensamento. Têm acesso a pessoas em celas de cadeia, ou em quartos de hospital, e nenhuma conferência de negócios ou política é suficientemente secreta para que não tenham entrada, nem também confessionário algum, nem divã de psiquiatra, nem qualquer bordel. E, quando alguém mente, os anjos reconhecem-no imediatamente, ouvem a discrepância entre o dito e o pensado.

As pessoas não sabem da sua presença. Apenas uma criança pode, por vezes, reconhecer um anjo, fugazmente, para logo o esquecer. Um adulto pode, quando muito, encontrar uma vez um anjo no sono, mas depois esquece-o também ao acordar de novo e toma-o por um sonho.

Assim se passaram os anos para os nossos anjos em Berlim, incógnitos, num ritmo monótono. Já viram, até agora, a segunda geração crescer e morrer e, em breve, isto sucederá também já com a terceira. Conhecem cada casa, cada árvore e cada arbusto.

Porém, mais ainda do que isso.

Não vêem apenas o mundo atual como ele se apresenta às pessoas. Vêem também simultaneamente a cidade tal como ela se apresentava quando Deus virou as costas à Terra e os nossos anjos foram repudiados, no início de 1945. Por detrás da atual cidade, "no meio" e "por cima", elevam-se ainda, como que congelados pelo tempo, os escombros, as ruínas, as fachadas queimadas das casas e as chaminés da cidade de ontem, vagos e, por vezes, apenas fracamente visíveis, mas sempre, apesar de tudo, ainda fantasmagoricamente presentes. E, do mesmo modo, vagamente presentes e visíveis para os anjos, existem outros espíritos, outros resíduos do Passado: aqueles anjos já caídos muito antes, e aqueles demônios tenebrosos que fizeram das suas neste país e aqui nesta cidade, e que promoveram o seu maior e mais malévolo espetáculo. Também estes seres de ontem vagueiam ainda em Berlim, também eles eternamente apátridas e ainda mais amaldiçoados. Têm também, de resto, influência no Presente que eles, apáticos, deixam passar por si. A vida atual é, ao contrário do que sucede com os nossos anjos, totalmente indiferente a estes espíritos. Permanecem de preferência entre si, nos seus cantos sombrios ou nos lugares que eles mantêm, desde então, conquistados e ocupados. Ou passeiam-se ainda nos seus carros de tropa, nas suas motocicletas com carro lateral, nos seus blindados, ou nas suas limusines negras com bandeirinhas com a cruz suástica. Escondem-se e eclipsam-se como ratazanas quando os nossos anjos surgem. Porém, mal existe contato, mal existe interação, e em caso algum, confronto violento entre eles e os anjos.

Muito levemente visíveis são, por vezes, também ainda as pessoas daquele tempo, em filas frente às mercearias, a caminho dos abrigos antiaéreos, as "mulheres das ruínas" em longas filas, nos escombros, com baldes que vão de mão em mão, as crianças deixadas sós ou as silhuetas nos ônibus e bondes de então.

Este Passado, latentemente presente, surge aos anjos sempre de novo nas suas rondas pela Berlim atual. Se quiserem, podem apagá-lo com um movimento da mão e ficam, então, apenas no Presente, mas sabemos que este ontem está ainda por toda a parte, presente, atemporal e imaterial, num "mundo paralelo".

Embora os anjos observem e escutem já há tanto tempo as pessoas, muito escapa, contudo, à sua compreensão.

Eles não sabem, por exemplo, o que são as cores. Não as conseguem sequer imaginar. Ou cheiros e sabores! E aquilo que as pessoas designam por "sentimentos", os anjos pressentem-nos, mas não os podem "experimentar". São profundamente afetuosos, os nossos anjos, e "bons"; também não podem ser diferentes e, por isso, também não imaginam o contrário: o medo, por exemplo, ou o ciúme, ou a inveja, ou mesmo o ódio. Conhecem, decerto, as formas de expressão, mas não os próprios sentimentos. São curiosos, e gostariam de vir a saber mais e conhecem ocasionalmente um suave pesar de que tudo isto lhes escape, que não saibam como se atira uma pedra, ou como o fogo e a água se fazem sentir, ou qual é a sensação quando se toma uma coisa na mão, ou até qual é a sensação quando se afaga ou se beija uma pessoa.

Tudo isto escapa aos anjos. Apenas percebem de modo talvez mais completo e mais válido do que as pessoas, mas, ao mesmo tempo, mais pobre também. O mundo material e sensual está reservado às pessoas. É o privilégio da condição mortal, e a sua maldição é a morte.

Em vista disto, não pode causar surpresa que, um dia, um dos anjos tenha uma idéia monstruosa: renunciar à existência de anjo em favor de uma vida humana!

Nunca antes isto tinha tido lugar. Que é possível, isso sabem-no os anjos. As conseqüências, porém, são desconhecidas.

O anjo que teve esta idéia terrível tinha sentido o desejo de se apaixonar por uma pessoa, por uma mulher, e a idéia de poder tocá-la esteve na origem deste pensamento de resultado imprevisível. Fala sobre isto aos seus amigos. Primeiro, estes ficam chocados. Depois, porém, ponderam seriamente sobre as conseqüências e imaginam o que poderia acontecer como resultado de que alguns de entre eles estejam, afinal, prontos a ousar dar este passo: trocar a sua imortalidade por uma vida humana, curta e ardente.

Para a maioria deles, não se trata em primeira instância de uma nova experiência, ou até da conclusão de uma eternidade sentida como opressiva, passiva; esperam ainda alguma coisa de diferente, mais importante, desta "conversão" coletiva: forças inauditas serão libertadas pela sua renúncia à eternidade, energias imensas que esperam poder unir e transferir para um deles.

Este será o mais ilustre de entre eles, o mais poderoso outrora, um "arcanjo" que, porém, desde o desterro, é tão importante como os outros. Ele é aquele anjo que "vive na paz dos anjos" e a grande esperança é que, com esta força libertada, ele esteja em posição de se tornar realmente no "anjo da paz" e possa ser útil à paz.

Seja como for, a primeira metade do filme (a preto e branco) conduz a este ponto e termina aqui: com a conversão de um grupo de anjos a uma existência humana e, com ela, a passagem da cidade transcendente e "atemporal" para a Berlim atual, concreta.

Uma noite, durante um temporal terrível, surgem então estes neófitos na cidade, sob relâmpagos e trovões. Cada um de maneira adequada à sua nova identidade humana: um derrapa com um carro numa rua felizmente deserta, um outro aterra num telhado, um terceiro encontra-se numa taberna a rebentar pelas costuras, outros aparecem no cinema, na sarjeta, num ônibus, num quintal...


Aí estão eles agora, irrevogável e inalteravelmente. E nesta segunda metade da nossa história passam-se, naturalmente, as coisas mais aventurosas e inusitadas. Imediatamente, tudo se passa já a cores. Não para que tudo pareça "mais real" do que anteriormente, pelo contrário. A "visão de conjunto" dos anjos talvez fosse anteriormente "mais verdadeira" do que a visão que agora é colorida, e já não a quatro, mas a três dimensões. Em todo o caso, a nova visão é empolgante para estes novos cidadãos da Terra. Tudo é empolgante, todas estas grandes experiências novas de tudo o que eles julgavam conhecer e afinal não conheciam. Como, por exemplo, a cidade de Berlim.

Enquanto anjos, conheciam-na melhor do que qualquer pessoa, e agora vêm a saber que afinal tudo é totalmente diferente. De repente, há obstáculos: distâncias, regras e limites, entre eles um grande, o muro, que anteriormente nunca constituíra uma separação. Primeiro têm que adaptar-se a tudo isto.

Em primeiríssimo lugar trata-se, porém, de aprender e experimentar "viver". Respirar. Andar. Agarrar coisas. A primeira dentada numa maçã ou, de acordo com a predisposição, numa salsicha com caril no snack-bar da esquina. As primeiras observações dirigidas ao próximo e as primeiras respostas. E, por fim, tarde nesta primeira noite: o primeiro sono! Que confusão, os sonhos! E o acordar na realidade da manhã seguinte.

Todas estas "sensações"!

Elas assaltam os nossos aventureiros como os vírus assaltam um imunodeficiente.

Sobretudo, está lá o medo, um sentimento até agora desconhecido. Não houve nada, mas mesmo nada, na vida dos anjos até agora que se lhe pudesse comparar. Em presença da eternidade não havia medo, em presença da morte, aí está ele. Um ou outro dos que outrora foram anjos desespera e efetivamente um deles enlouquece, e um outro atentará já em breve contra a nova vida. A maior parte, porém, aprende. Sobretudo, porque se recordam que já enquanto anjos apreciavam e consideravam especialmente uma capacidade dos homens: o humor. "Quando, apesar de tudo, se ri": agora percebem-na e sentem o emprego desta máxima como altamente libertador. Que levar tudo demasiado a sério não ajuda nada as pessoas, isso, já lhes tinha anteriormente ocorrido.

Ainda sabem muito do que viveram enquanto anjos. Ainda sabem também de todos os outros espíritos em redor, simplesmente, já não os podem ver. Sabem ainda de todos os seus velhos amigos, sabem que são constantemente observados e "seguidos". Dedicam-se de novo às suas antigas "rondas", na medida em que estas podem ainda ser concretizadas. E falam com os anjos que sabem que estão à sua volta, mas de quem já não podem obter resposta. Relatam-lhes as suas novas experiências, falam dos seus novos amigos, mas também do seu novo sofrimento. Muitos são olhados de revés pelas pessoas, por causa destas conversas com anjos.

Espero que isto me seja, como autor destas "histórias com anjos", poupado.

 

 

tradução de Maria Alexandra A. Lopes

 


ERNST WILHELM WENDERS é o nome de certidão de Wim Wenders, um dos mais conhecidos e importantes cineastas alemães vivo. Nascido em 1945, em Düsserldorf, chegou a cursar medicina e filosofia, tendo-as abandonado para tornar-se pintor. O que também o destino lhe recusou, tornado-o gravurista. Durante os estudos de arte, fez-se assíduo freqüentador da Cinemathèque Française, onde assistia 5 ou mais filmes por dia. Decidiu dedicar-se ao cinema, arte em que produz até hoje. Reúne mais de 40 títulos, entre longas, documentários e curtas, entre os quais contam o aclamado Wings of Desire (Asas do Desejo) e Beyond the Clouds, co-dirigido com o cineasta italiano Michelangelo Antonioni. Wim Wenders vive hoje entre Los Angeles e Berlin com sua mulher, a fotógrafa Donata Wenders. O ensaio aqui publicado, escrito em 1986, foi retirado de um primeiro treatment de Asas do Desejo e faz parte de seu único e raro livro de ensaios A Lógica das Imagens.

 


 

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