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diego braga
homenagem ao pensamento de Arnold Flemming
Arnold Vierniak Flemming
deixou saudades. Somos da opinião que jamais um pensador, na história do
ocidente, entregou-se de modo mais radical ao enigma da arte. O seu
pensamento deixou completamente de lado a ética de sua primeira obra
Diálogo da moral antiética (1950) para trazer a questão da arte para o
centro da discussão filosófica, que teve como projeto de vida até seus
últimos dias. De formação matemática, o método que percorreu sua obra,
contudo, traz para dentro da lógica um pathos todo calcado na ambigüidade
do sentido de todo enunciado. Este procedimento é em parte explicável por
seus comentadores devido ao impacto da segunda Grande Guerra no sentido
que ela teve de evidenciar a ilusão do progresso humano calcado na
racionalidade. Segundo palavras do próprio Flemming, o próprio fato de a
racionalidade estar intimamente ligada à idéia de progresso faz com que
ela só operacionalize o real enquanto produção e técnica. Assim, somente
humaniza, porque enquanto produz não deixa nascer, enquanto calcula e
analisa impede a composição (Irrealidade Material, 1962).
O pensador faleceu há exatamente dez anos, no seu vilarejo natal,
Soortichego, nordeste da Polônia. Foi encontrado dias depois, olhos
vidrados e passíveis, já rijo, em frente à televisão. Os seguidores de seu
pensamento, admiradores e também, obviamente, os críticos ainda se
entregam à elucubração a respeito de que programa Flemming estaria
assistindo quando da sua morte. Isso é obviamente uma questão sem maior
importância. O que talvez nos intrigue seja o bilhete que havia em seu
bolso, na verdade um papelzinho de loteria com uma simples frase
rabiscada, de modo que jamais poderia ser considerado uma carta suicida ou
a manifestação de um último desejo. A caligrafia indica uma escrita
agonizada, talvez por uma grande decepção, ou pela dor de uma fibrilação
cardíaca, e a última palavra é quase um risco tremido e irregular, mais
parecendo o eletrocardiograma que retratava sua situação: só não se sabe ao
que se referia, à situação psíquica ou fisiológica. Os investigadores
espantaram-se ao constatar que não havia uma caneta azul por perto. O que
dizia a frase? Simplesmente: “é tudo mentira”. Isso em muito perturbou o
debate em torno de seu pensamento, principalmente no âmbito acadêmico.
Os seus opositores, adeptos da lógica de Wittgenstein, logo se apressaram
em propor que Flemming finalmente chegara à conclusão de que o fundamento
de sua filosofia era inconsistente: nenhuma lógica pode se fundar no
princípio imaginativo. Ele havia persistido muito nesta idéia, que
especialmente na Polônia tornou-se muito prolífica, gerando discussões,
teses, tendências estéticas e até mesmo uma nova linha de geometria que
consiste numa evolução da geometria parabólica de Lobatchevsky. Contudo,
os adeptos de seu pensamento, nos debates acirrados das academias de arte,
filosofia e matemática sempre lembram que na página 762 da 2ª edição de
sua Estética e Analítica da Inconsistência, de 1954, ele afirma que
a mentira poderia ser considerada dentro de um outro paradigma em que o
fictício seja o princípio de articulação relativa da verdade do real, com
que se encaminharia, segundo a conclusão de sua longa argumentação de mais
de 500 páginas, uma nova perspectiva metonímica da percepção. Assim, a
fenomenologia já estaria ultrapassada porque sua consideração dupla da
dinâmica histórica de manifestação dos entes não leva em consideração, no
percurso de seu postar-se fenomenológico diante da “pura coisa”, o natural
“inverso da coisa”, melhor dizendo, a “não-coisa” decorrente daquela
dinâmica mesma.
Além disso, nas Considerações Finais de sua obra Irrealidade
Material, bem como no prólogo do seu único romance, O Contraponto
de Dostoievsky, a polêmica frase já aparece com sentido diverso, muito
embora grafada de modo semelhante. Na primeira obra citada, lemos que:
“De modo a implicar a inconstância de toda linguagem-objeto conceituável,
que se fortalece apenas pelo fato de a filosofia ter se fixado na tradição
como uma forma de escrita e, leia-se, completamente dependente deste meio
de propagação e conservação, a complexidade imaginativa deve ser
considerada fora do âmbito tradicional da analítica da linguagem, que tem
sido a doença da filosofia no ocidente, aprisionando-a na perspectiva não
de pensamento, mas de elaboração de conceitos. O problema se densifica na
pretensão de que, pasmem, vista analítico-filosoficamente dentro da
semiótica, a lógica impede que se pense o conceito como conceitual. Logo,
o que se afirma em toda ciência, em toda filosofia sistemático-conceitual,
em todo código técnico é mentiroso, porque não se assume como ficcional.” Já no romance mencionado, o
personagem, o famoso Fiódor Dostoievsky, confessa a um amigo seu que todo
sentimento de perda, até hoje considerado como real, no sentido de ter
sido sentido como perda pelo homem em questão, toda a angústia reflexiva
destilada em Memórias do Subsolo “é uma grande elaboração filosófica da
imaginação. É mentira. Verdadeira, mas falsa.”
Há ainda que se acrescentar a admirável influência de seu pensamento na
arte moderna e contemporânea. Karlheinz Stockhausen, por exemplo, começou
a realizar seus experimentos com texturas musicais eletrônicas após um
curto período em que Flemming foi professor visitante na Alemanha. Lá,
freqüentando círculos intelectuais e artísticos, primeiramente nos cafés
de Berlin e depois no Modern Kusnterlebnis Zirkel de Frankfurt, do
qual fundou uma célula em Leipzig, freqüentado por figuras da envergadura
de Hesse, Benjamin (por um curto período), além do já citado Stockhausen,
deu início à tendência irrealista na literatura européia que, contudo, foi
suplantada por correntes mais politizadas influenciadas pelo
pós-modernismo estadunidense. Borges era leitor assíduo das obras de
Flemming e confessou uma vez a Bioy Casares ter como sonho editá-lo pela
primeira vez em espanhol. O movimento concretista brasileiro era visto com
grande admiração por Flemming, que durante algum tempo manteve
correspondência com os seus fundadores. Apesar disso, Pound, principal
mestre dos concretistas, detestava Flemming, não tanto por ser ele um
judeu, mas principalmente porque, tendo visto os primeiros manuscritos do
que viria a ser seu romance, fez, como sempre, algumas “sugestões” que,
quando se fala do gênio rebelde norte-americano, deve ser entendido como
muitas rasuras e críticas severas à diluição. Flemming, além de não
alterar uma linha sequer, disse a Pound que “guardasse na cartola seus
coelhos mágicos” pois, para criar “não era preciso nenhum truque, nem
malabarismos inventivos.” (Carta a Ezra Pound, 1 de Abril de 1956). Dizem
os especialistas na obra de Pound que alguns dos cantos fazem referência a
este desafeto. Além disso, no Brasil, projetos revolucionários atuais como
o grupo de texturas poéticas e realidades experimentais “Arranjos para
Assobio” surgem das proposições estéticas de Flemming.
Seu livro de ensaios e aforismos Questões e Pensamentos Nascidos do
Absurdo, publicado em 1952, mas elaborado em grande parte
anteriormente, surge de um diálogo com Heidegger, pensador com o qual teve
uma curta amizade, tendo sido um dos que apoiaram o mestre de Heidelberg
logo depois de romper os laços com o nazismo. Flemming, apesar do trauma
do anti-semitismo, considerava uma obra como a de Heidegger a única
expiação válida para opções políticas não tão felizes. A questão em torno
da essência da linguagem, desenvolvida posteriormente no Unterwegs zur
Sprache por Heidegger, é em grande parte resultado de colocações
flemminianas. Este livro de Flemming, considerado erroneamente como tendo
sido influenciado pela temática heideggeriana, devido obviamente a uma
maior divulgação da obra do pensador alemão, já traz, anteriormente, a
título de exemplo, a consideração de que “(...) a arte não é, em seu
caráter de techné, um enigma. Só pôde ser assim considerada por uma
estética incapaz de se perguntar pela origem da consideração do que é uma
obra, enquanto coisa, estando assim condenada a seguir ora a possibilidade
de que a proposição determine o que é o ente, ora a outra, de que o que se
entende por ente determine a estrutura da proposição. A arte é enigma
enquanto é capaz de ser fonte de “charadas”, isto é, a arte não é a
pergunta da esfinge, como vem sido tratada, mas sim, a própria esfinge.
Édipo decifrou a charada, mas não a esfinge.” Esta reflexão só aparecerá
posteriormente na obra de Heidegger. Pensador radical, é lamentável que a
sua obra não receba a devida atenção por parte de pesquisadores, filósofos
e professores brasileiros.
Neste sentido, cabe-lhe uma homenagem. E este texto é, em certa medida,
uma tentativa não só de comemorar, mas de rememorar uma questão talvez
esquecida há muito e que tão perspicazmente foi ressuscitada por Arnold
Vierniak Flemming: a escuridão abismal é mãe de todas as coisas. No seu
doar-se luminoso, assume uma nova identidade, passando a ser uma potência
sagrada dúplice chamada pelos antigos gregos de Aletheia (des-velamento),
que aparece como uma deusa inclusive no poema Péri Physeos (Acerca
da Nascividade) de Parmênides. Mas é em Homero, o pai da Grécia, que a
noite aparece na plenitude de seu poder não como uma deusa personificada
dentre outras, mas como a potência divina da qual os imortais são apenas o
aceno e que foi temida até mesmo pelo rei dos deuses:
E ele [Zeus] me expulsaria do éter para o mar
Longe da vista, não tivesse a Noite, que sujeita
Deuses e homens, me salvado. A ela vim voando,
E Zeus conteve-se, apesar de irado, pois ele receava
Fazer algo que desagradasse a Noite veloz.
(Ilíada, XIV).
Tendo trazido a arte, impossibilidade de certeza, para o centro da busca
da verdade, busca que até então só tinha o aval de sua perpetração no
ocidente na medida em que fosse empreendida pelos profissionais da
verdade, os filósofos, Flemming mostra com sua argumentação que não falta
lógica ao artista, ao poeta. De fato, falta tudo que não seja lógico à
ciência e à filosofia. Estas são menores do que a arte porque acreditam na
verdade como uma construção, não como uma obra, o que equivale a dizer,
como sistema e não como dinâmica. Elas querem chegar à verdade, enquanto a
arte revela a verdade. Na sua ânsia de tudo ordenar, no seu complexo de
Zeus, a ciência caminha para a destruição de seu chão porque não receia
mais a treva da noite, quer a tudo clarear, a tudo trazer a luz total e
ofuscante. Se deixasse este Zeus de configurar-se num complexo, saberia
novamente ser apenas o luzir de um trovão na noite escura de uma
tempestade. A noite sujeita homens e deuses. Para além e aquém do mundo e
da natureza, dos deuses e dos homens, não há nada.
Hypnos (o Sono) é que fala no fragmento de Homero. Ele faz dormir,
entorpece o mais ativo cérebro calculador para atirá-lo na inevitabilidade
imaginativa do sonho que parece estar sempre lá, somente esperando a hora
de emergir, mas nunca totalmente. Nunca "realidade" no sentido
corriqueiro, apenas sonho, mas inegável, porque negativo. O fato de Arnold
Flemming ter morrido com um bilhetinho em seu bolso dizendo "é tudo
mentira" torna-se assim parte de sua obra verdadeira. A morte
instalou, quem sabe, a dúvida fulcral onde justamente ele queria abrir uma
ferida na carapaça enrijecida do resolvido. A morte plenificou sua vida,
sua obra. De olhos abertos para a televisão, sentado ao sofá, como se tudo
não passasse de uma tranqüila sessão vespertina, o sono lhe veio,
deitando-o eternamente no reino do sonho, nossa memória, nossa imaginação.
Este é o único lugar onde é tudo verdade.
DIEGO BRAGA é prosador,
poeta e tradutor. Mestrando pela UFRJ, pesquisa as relações entre poética,
mito e pensamento, temas sobre os quais ministrou cursos e publicou
ensaios. É membro fundador do NIELP (Núcleo Interdisciplinar de Estudos de
Poética), da UFRJ. A bem ou mal da verdade é também músico.
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