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o homem na multidão

   



I. Do indivíduo ao geral


O que surpreende no mundo moderno é o antagonismo aparente entre a cultura centralizada no indivíduo e o surgimento da multidão enquanto evento cotidiano, onde um indivíduo é tão igual ao nada quanto qualquer outro. Se a civilização ocidental aprendeu a construir seus valores tendo como ponto de referência a posição imaculada do indivíduo, não soube evitar o nivelamento que marca tão profundamente isso que chamamos de modernidade.


Em meados do século dezenove, o continente europeu começa a colher os frutos do processo de industrialização iniciado um século antes, dentre eles, o aumento progressivo da população das cidades. O inchaço das grandes cidades será o palco do nascimento do fenômeno da multidão, um espetáculo que chamará a atenção de uma série de pensadores da época, ainda que provoque diferentes reações. As cidades, antes de pequeno a médio porte, não estavam preparadas para absorver a massa trabalhadora que a ela acorreu, o que contribuiu sobremaneira para que essa mesma massa fosse submetida a condições de vida de baixos padrões. Tendo em mente a cidade de Paris e as transformações que fazem surgir quase que uma nova cidade, Walter Benjamin desenvolve sua crítica à modernidade, ponto de partida do presente ensaio. As moradias da capital francesa – ele escreve – se tornam então uma espécie de cápsula: elas são concebidas como uma espécie de estojo do ser humano. Os cubículos amontoam os seres humanos e os seus pertences. Essas novas moradias funcionariam como um depósito noturno, onde os proletários seriam guardados de modo a estarem preparados para o dia seguinte de trabalho. Aqui vemos os indivíduos serem transfigurados em peças de uma engrenagem virtual, em partes indistintas de uma multidão caracterizada como uma massa amorfa. Ainda nesta linha de pensamento, Benjamin acrescenta que desde a Revolução Francesa de 1789, uma extensa rede de controles fora estrangulando em suas malhas a vida civil. Na França, tornou-se obrigatório o registro em praça pública das chegadas e partidas das carruagens, a contagem das cartas, a numeração dos imóveis. O governo tinha todo o país registrado em seus cadastros, onde as lacunas a serem preenchidas tratavam de forma indiferente tanto a um quanto a outro. A circunstância encerra uma contradição aparente, mas esconde uma evidência: o registro do indivíduo marca o desaparecimento nas massas.


Benjamin observa que Hegel, pouco antes de sua morte, visitou pela primeira vez Paris e escreveu uma carta à sua mulher em que dizia: “Quando ando pelas ruas, as pessoas se parecem com as de Berlim – todas vestidas igual, os rostos mais ou menos os mesmos – a mesma cena, porém numa massa populosa”. Embora a roupa comunique algo sobre as pessoas – a posição social, a profissão, a ocasião etc. – a roupagem seria também escamoteação daquilo que cada um sustenta como pessoal, configurando-se num ícone do nivelamento. Mesmo os rostos são produtos de uma massificação comportamental, espera-se que os cidadãos civilizados reajam mais ou menos da mesma maneira em situações assemelhadas. Contudo, se a crítica à modernidade pode à primeira vista parecer pontual, restrita quanto à localização e temporalidade, não é demais acrescentar que essa uniformização deflagrada pelas roupas e pelos trejeitos comportamentais torna-se patente ao longo de toda a história da modernidade. No nosso século, ou no século passado, não é difícil imaginar cidades onde quase a totalidade dos jovens ande de casaco de couro e gel no cabelo.
Ainda no século dezenove, Kierkegaard se destaca como uma das principais vozes que denunciam a dissolução do indivíduo no geral. Em um opúsculo datado de 1846, The present age, ele assim se expressa: “a dialética do momento presente tende à igualdade e a sua mais lógica realização é o nivelamento, como o negativo dos relacionamentos dos particulares uns com os outros”. As críticas do filósofo dinamarquês ao movimento moderno de nivelamento consistem numa obstinada defesa do indivíduo, tendo os seus escritos um notório valor não só filosófico como literário. Kierkegaard compreende o fenômeno com um singular mal-estar. Nas páginas do livro intitulado como Repetição, publicado em 1843, ele conta, com um requinte de ironia, a experiência desagradável de ter que viajar para Berlim numa diligência com mais cinco pessoas, onde ao final da viagem não se podia mais reconhecer nenhum homem: elas tiveram que se suportar por trinta e seis horas e foram tão sacudidas pelo andar da carruagem que ao final do percurso não podiam distinguir as próprias pernas. As seis pessoas foram amassadas dentro de um mesmo corpo, não somente pelas sacudidelas. Os meios de transporte da modernidade normalizam essa tortura que é ter de encarar por horas a fio outras pessoas, às vezes desconhecidas, trancadas num mesmo ambiente. Antes, essas situações eram raras. A produção dos transportes de massa intensificou esse quadro em que um número grande de pessoas se espremem num ambiente fechado sem que ninguém reconheça o outro como uma pessoa, em cujo território estar pressionado contra uma pessoa, um vidro ou uma barra de metal vem a ser o mesmo. Oitenta trabalhadores permanecem amontoados dentro de um transporte coletivo sem que uma palavra seja dirigida de um a outro. Ainda nesse texto, mais adiante, Kierkegaard conta que, na sua estada em Berlim, ia freqüentemente ao teatro. Ali, ele pode observar a multidão em sua atividade. A multidão é sempre carregada por um rumor impessoal. Todos se comportam como se fossem iguais. Se um qualquer começa a bater palmas, todos acompanham sem refletir sobre o gesto. Mas, um determinado teatro, ele continua, distribuía máscaras às pessoas que chegavam, justamente para possibilitar a experiência individual. Com as máscaras, as pessoas estavam livres da obrigação de admirar, rir e chorar de acordo com as prescrições da tradição. Assim, a moralidade podia ser superada. O teatro encontrou um recurso onde as pessoas sucumbiam à imagem do geral, mas eram preservadas da dissolução na generalidade. O expediente preservava o divertimento do individual. Aliás, cumpre notar que Kierkegaard chama a atenção para a diferença na reação ao espetáculo entre a galeria popular e a fileira nobre e crítica. O júbilo e a gritaria do público popular se distinguia notoriamente do aplauso bem comportado do público seleto, melhor acostumado às regras gerais de etiqueta, ainda que portando máscaras.


O filósofo dinamarquês reclama da predominância da categoria do geral sobre a categoria do individual. O individual nas massas não tem mais qualquer importância, a modernidade tende à igualdade matemática. Um indício apontado por Kierkegaard é justamente o fenômeno moderno de associação de pessoas para fazer coisas que não teriam coragem de enfrentar sozinhas. Ainda que, por outro lado, seja forçoso convir que as pessoas na massa não sabem o que fazem, são conduzidas como um rebanho. Em The present age, o filósofo, à guisa de exemplo, partilha um fato que presenciou um dia nas ruas da capital de seu país. Ele conta que foi testemunha de uma briga de rua, em que três homens deliberadamente avançaram contra um quarto. A multidão ficou de pé assistindo com indignação àquela cena inusitada. Então, alguns dos transeuntes saltaram em cima de um dos agressores e bateram nele. Os defensores utilizaram precisamente as mesmas regras dos agressores, o que incomodou Kierkegaard. Ora, os defensores deviam ter percebido que se alguém quisesse atacar um dos agressores deveria tê-lo feito sozinho e não apoiados por uma galera. Ele diz que foi até um dos defensores tentar explicar a incoerência de seu gesto, mas pareceu quase impossível a ele discutir a questão. Na realidade, os agressores não quiseram nem mesmo escutar a posição teórica de Kierkegaard. A única coisa que repetiam era que aquele malandro merecia uma boa sova aplicada por outros três.


O principal alvo da crítica de Kierkegaard, no entanto, ainda no The present age, é o que ele chama de público, uma abstração monstruosa, uma miragem que se desenvolve graças à preciosa ajuda da imprensa. A modernidade atribui personalidade ao público que não é ninguém, mas é também o personagem de maior relevância social. O público é formado por indivíduos irreais, clones de indivíduos que nunca poderiam ser unidos numa organização uniforme. O fato de permanecer sempre o mesmo é uma das forças do público – ele pode se tornar o imediatamente oposto de si, mas permanece o mesmo: o público. O público possui um corpo que nunca pode ser reconhecido, porque ele é uma abstração; entretanto, quando uma determinada época favorece a destruição do que há de mais concreto, o público torna-se tudo e inclui supostamente tudo. A gravidade da situação, na visão de Kierkegaard, é atestada pela liberdade com que a imprensa pode se manifestar. O filósofo foi um dos primeiros a chamar a atenção para o concreto perigo que pode ser causado por uma imprensa irresponsável. A imprensa, com efeito, não pode ser culpada de nada: ela é a voz do público, de todos os iguais e de ninguém. A qualidade imaculada do público é comunicada ao seu principal discípulo: a imprensa. Ela está para o público como um cachorro bravo está para o seu dono. Se o dono quiser um pouco de divertimento, ele solta o cachorro e a festa começa. Mas, se acontece do cachorro ferir alguém, o dono responde: “não, o cachorro não é meu, ele não tem dono”. Ninguém pode ser responsabilizado.
 


II. Do geral ao isolamento


As ruas de Paris eram tomadas diariamente por uma multidão que, se por um lado uniformizava a todos, por outro permitia um isolamento insensível que dificilmente seria encontrado em melhor situação. Isto podemos auferir das observações de Benjamin, examinadas com a destreza de um cirurgião. O fenômeno, todavia, não era uma exclusividade da capital francesa. A realidade de Londres não era distinta. Engels, citado por Benjamin, oferece ao leitor uma descrição exemplar do cenário londrino: “Quando se vagou alguns dias pelas calçadas das ruas principais, só então se percebe que esses londrinos tiveram que sacrificar a melhor parte de sua humanidade para realizar todos os prodígios da civilização, com que fervilha sua cidade [...]. O próprio tumulto das ruas tem algo de repugnante, algo que revolta a natureza humana. Essas centenas de milhares de pessoas de todas as classes e situações, que se empurram umas às outras, não são todas seres humanos com as mesmas qualidades e aptidões e com o mesmo interesse em serem felizes?... E, no entanto, passam correndo uns pelos outros, como se não tivessem absolutamente nada em comum, nada a ver uns com os outros; e, no entanto, o único acordo tácito entre eles é o de que cada um conserve o lado da calçada à sua direita, para que ambas as correntes da multidão, de sentidos opostos, não se detenham mutuamente; e, no entanto, não ocorre a ninguém conceder ao outro um olhar sequer. Essa indiferença brutal, esse isolamento insensível de cada indivíduo em seus interesses privados, avultam tanto mais repugnantes e ofensivos quanto mais esses indivíduos se comprimem num espaço exíguo”.


O efeito das multidões nas grandes cidades impressiona Edgar Allan Poe. O narrador de seu conto O homem da multidão não pode resistir ao fascínio das multidões que se acotovelam no movimento da rua. Se o seu narrador, ainda sentado à mesa de um café em Londres, faz a experiência de um excelente estado de espírito que o individualiza e distingue da multidão, pode depois fazer a experiência de se integrar à massa dos transeuntes ao perseguir o velho de pitoresco semblante que não pode estar só e busca estar constantemente no meio da multidão. Poe descreve o fascínio que a multidão causa no velho flâneur e, por conseguinte, no narrador que o observa. Antes, porém, da perseguição ao velho, o narrador do conto de Poe, sentado à mesa do café, encontra satisfação na contemplação da multidão que passa na rua. A multidão metropolitana tem algo de bárbaro e desperta fascínio e horror. Estamos acostumados à imagem da multidão aliada a uma confusão generalizada. Contudo, por um outro ângulo, ela é extremamente organizada. O narrador reserva um considerável tempo para observar os transeuntes em massa, podendo facilmente classificá-los de acordo com as suas vestimentas e o seu jeito de andar. Eram eles fidalgos, comerciantes, funcionários, batedores de carteira, jogadores, militares etc. Poe enxerga a realidade da cidade grande de sua época como o baluarte da relação entre selvageria e disciplina. Poe também insinua que a multidão pode ser completamente etiquetada, numa tarefa que revela o duplo processo de nivelamento e isolamento. O fenômeno do surgimento de grupos ou tribos revela uma dupla e aparentemente ambígua realidade do mundo moderno: os indivíduos se identificam e se aglutinam em pequenos grupos, mas o movimento é marcado pelo desejo inconfessável de se diferenciar da grande massa.


O que, no entanto, se poderia conceber como inimaginável acontece: o homem na multidão se sente só. No comentário de Paul Valéry, citado por Benjamin: “O habitante dos grandes centros urbanos incorre novamente no estado de selvageria, isto é, de isolamento. A sensação de dependência em relação aos outros, outrora permanentemente estimulada pela necessidade, embota-se pouco a pouco no curso sem atritos do mecanismo social”. Há uma solidão que envolve o homem mesmo quando rodeado por uma multidão que lhe comprime – uma evidência denunciada por Engels, por Poe, por Dostoiévski e, quase um século depois, por Heidegger.


Ainda na primeira metade do século vinte, Heidegger observa, especialmente nos parágrafos vinte e cinco, vinte e seis, e vinte e sete de Ser e Tempo, que a convivência cotidiana é marcada pelo estabelecimento de um intervalo, um espaçamento entre os indivíduos. Mesmo nas multidões, os homens vivem encapsulados e passam um ao largo do outro sem perceberem sua presença. Os transeuntes se esbarram na multidão, mas um não se sente tocado pelo outro. O outro é reduzido à importância de uma pedra, um obstáculo ao qual se deve desviar. A preocupação – importante componente da constituição do Dasein enquanto ser-no-mundo – assume muitas vezes modos deficientes de ser: um modo em que impera uma certa indiferença com relação aos outros. A preocupação computa os outros sem levá-los em conta. O homem é tomado por um número ou um código de barras. Na utilização dos meios de transporte público, no emprego dos meios de comunicação em massa, cada um é como o outro, onde as pessoas podem ser substituídas a torto e a direito. Esta ditadura do impessoal empurra o Dasein produzindo um atolamento coletivo.


O nivelamento da impessoalidade promove o que Heidegger chama de medianidade. A convivência cotidiana configura-se num quadro facilmente comparável ao que caracteriza um teatro de marionetes. A medianidade define o que é conveniente e o que não é, estabelecendo os ditames do comportamento social, manipulando os indivíduos como se fossem bonecos de madeira. Toda alteridade é esmagada pelo rolo compressor da impessoalidade, todo segredo perde a sua força diante da imperiosidade publicitária. Quanto ao aspecto comercial da coisa, os shoppings brotam da terra e tornam-se o alvo de uma nova religiosidade de rebanho – seus corredores ficam lotados com o anúncio das novas coleções das estações da moda, podendo-se observar na multidão que se acotovela um frenesi digno de fanatismo religioso ou, o que vem a ser quase o mesmo, uma dedicação digna de uma torcida de futebol.


Escrevendo na cabeceira de morte de sua primeira mulher, Dostoiévski encontra forças para escrever e condensar, num texto que se desvelará como precursor de seus grandes romances, uma análise detalhada da realidade da época escolhida por Benjamin como fonte primaz da modernidade na qual estamos inseridos. Memórias do subsolo, ou Notas do subterrâneo, como alguns preferem traduzir, conta a história de um homemzinho comum, funcionário público de um posto mediano da administração da cidade de São Petersburgo, desesperado no seu isolamento. Como adverte Dostoiévski no prólogo da obra, “tanto o autor como o texto destas memórias são, naturalmente, imaginários. Todavia, pessoas como o seu autor não só podem, mas devem até existir em nossa sociedade, desde que consideremos as circunstâncias em que, de um modo geral, ela se formou. O que pretendi foi apresentar ao público, de modo mais evidente que o habitual, um dos caracteres de um tempo ainda recente”. O autor das memórias reconhece, com o ar da mais sincera confissão, que todo homem decente de sua época é e deve ser covarde e escravo. Apesar de bem inserido no contexto de uma cidade russa de grande porte, ele se sente só e se tortura com o seguinte pensamento: “Eu sou sozinho, e eles são todos”. Aliada à solidão e à devassidão, o que mais incomoda o autor, entretanto, é o fato de nem ser notado, de ser costumeiramente tratado como uma mosca inofensiva. Até mesmo a sua tentativa de brigar numa taverna acaba frustrada. Fica constatado que ele não é capaz sequer de ser jogado por uma janela, embora tenha tentado em vão obstruir a passagem dos cavalheiros que ali jogava bilhar. No seguimento da narrativa de Dostoiévski, o desespero do homem do subsolo leva-o a colocar todo o seu empenho na premeditação de um encontrão com um oficial que passeia habitualmente misturado à massa de transeuntes de uma famosa avenida da cidade. Num acesso de histeria, ele gasta considerável parte do seu tempo e do seu ordenado na preparação do choque com o oficial tão somente para se fazer notar e ser convencido de que ainda é um ser humano. E se afinal o choque acontece e o triunfo resplandece, fato que lhe causa tal estado de arrebatamento que volta para casa cantando árias italianas, seu triunfo passa desapercebido pela sociedade da época uma vez que não é publicamente notado por ninguém.
 


III. Post-scriptum


Estamos nós no refluxo do duplo movimento da modernidade. Vivemos no século vinte e um ao sabor de uma espécie de espasmo de rota indefinida, escorregadio, viscoso, que desliza ora do indivíduo ao geral, ora do geral ao isolamento. A crítica traçada por Benjamin, antes delineada por um notável grupo de filósofos e literatos, certamente não nos conduz a parágrafos conclusivos quanto à direção que deve tomar o que se convencionou denominar de modernidade, mas acredito eu, tem o condão de provocar ao menos aquela indigestão sem a qual não é possível questionar a realidade posta ou fazer filosofia.



DANIEL ARRUDA NASCIMENTO é formado em Direito pela Universidade Federal Fluminense e mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com a dissertação Ipseidade e alteridade em Heidegger e Kierkegaard. É pesquisador de ética e filosofia contemporânea e política.

 


 

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