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henri-pierre jeudy
o último cigarro
O fumante deve se
conscientizar de que ele procura provocar a morte dos outros. Ele deve
aceitar a intolerância radical como a expressão de uma saudação
comunitária enquanto ele permanece a priori excluído de qualquer convívio
em espaços comuns. E, se por descuido, ele acende um cigarro sorrindo,
parece manifestar o prazer dissimulado de fazer mal aos outros. Sua
possibilidade de ser cortês lhe é retirada, uma vez que ele não é mais
capaz de observar as convenções. Ele é levado a se retirar, se isolar a
fim de reconhecer que ele deixou de ser um ser social. É necessário que
ele entenda que se desejar voltar à vida social, deve antes passar pela
prova de uma terrível humilhação no exato momento em que ele fuma um
cigarro. Assim, deve se fechar em espaços reservados aos fumantes, tão
pequenos que ele fuma com seus companheiros de miséria, eles também
cuspindo seus pulmões ao puxar a fumaça dos cigarros como marias-fumaça
que tiveram o seu tempo. Tais espaços, que se encontram nos aeroportos,
são cercados de vidro de maneira que podemos ver os condenados que se
movimentam em uma densa fumaça, como se já estivessem asfixiados. É
verdade que eles ainda têm a possibilidade de sair e que são livres para
não entrar. Oferece-lhes apenas uma experiência salutar que prefigura o
que poderá ser o verdadeiro destino que os espera.
O fato de lançar fumaça de cigarro em volta de si mesmo passou a ser uma
violação do espaço público. O fumante é um criminoso, mas ele é também um
violador, pois se apropria de um território que não lhe pertence. Ele
impõe a sua lei, simulando uma atenção para com o outro pra brincar de
sedutor. O cúmulo do vício: temos sempre a impressão que ele precisa de um
espaço virgem para desfrutar de seu cigarro, como se fosse o primeiro. Ele
não ousa mais jogar a fumaça nos olhos das mulheres, o que deixou de ser
signo intempestivo de uma declaração de amor. Ele a lança de lado,
invadindo o espaço pelos arredores e suas pequenas nuvens de fumaça
procuram encontrar outras para formar anéis de cumplicidade.
A partir de agora, o espaço público foi conquistado pelos não fumantes, os
fumantes devem se comportar bem, pois estão sob alta vigilância. Os sinais
de tolerância são cada vez mais raros. Em um restaurante, o proprietário
afixou cartazes de papelão sobre as mesas dos clientes. De um lado, está
escrito “Fumantes”; do outro, “Não Fumantes”. Ele vira o cartaz, conforme
a escolha dos clientes.
Ah! As sutilezas do civismo foram substituídas pelo rigor do moralismo.
Poderíamos imaginar uma sociedade na qual a prevenção tivesse sido a arma
da boa convivência, mas a discriminação exacerbada parece permanecer como
regra essencial da manutenção da comunidade.
Quem realmente tem o poder? Os fumantes ou os não-fumantes? Vocês sempre o
tiveram, dizem os não-fumantes, é a nossa vez de tê-lo. Nós não somos
intolerantes, temos certeza de ter razão. Os argumentos que vocês ainda
ousam nos dar, vocês, os fumantes, nós os consideramos insuficientes e
inúteis, os nossos são legítimos e bem vindos, é a guerra.
A razão está do lado dos não-fumantes, mas ela não lhes é suficiente, eles
querem a guerra para exercer seu novo poder, o de culpabilizar o fumante
assassino. Este último deve se convencer que ele está destinado a
desaparecer, que seus meios de defesa são sem sentido dentro das normas
baseadas em fundamentos científicos pensados para gerir um novo espaço
comum sem fumaça.
Às vezes, é preciso reconhecer, a inteligência do ex-fumante se manifesta
pela sua ausência de interdições. Ela não vem absolutamente de sua
tolerância ostensiva, resultando antes de uma resistência manifesta ao
terror. O fumante é simpático aos olhos do não-fumante recente, pois ele
guarda, apesar de sua dependência, uma certa liberdade frente ao
terrorismo moral que visa seu extermínio. O ex-fumante recente sabe que
ele mudou sua maneira de estar no mundo, que ele não é mais o mesmo depois
que deixou de fumar. Além das boas razões que ele tinha pra deixar de
fumar, ele se lembra do dia em que ele acendeu o último cigarro, ele
assumiu a arbitrariedade de sua escolha. Mas ele sabe, sobretudo, que os
não fumantes que rosnam as regras morais da discriminação poderiam fazê-lo
em outras circunstâncias ainda piores.
Da janela, vejo a floresta, observo a variação de tintas verdes ou ocres
das árvores que me dizem que os primeiros sinais do outono começaram a se
mostrar. Penso que se eu não fumasse, poderia me abandonar à contemplação
da natureza. Meu olhar seria captado pelo que se apresenta a ele sem que
eu decida o que eu vou ver. Imagino um mundo sem vontade individualizada,
um mundo no qual as intenções brotariam como flores, desabrochariam para
murchar, deixando o espaço para outros desenhos mais obscuros que nós não
conheceríamos. Eu a vi mil vezes, a trilha que entra na floresta, posso
fechar os olhos e fazer o trajeto como se eu a visse ainda. Eu a vi detrás
de nuvens de fumaça, ela se tornara menos nítida, como no cinema. Não mais
enxergar para além dessa tela. Escolher um olhar que não estará mais sob o
efeito da nicotina para deixar a paisagem se construir sozinha.
Sempre há um engodo possível: descobrir uma outra juventude. Caminhar à
margem do rio de manhãzinha, respirar o ar fresco, deixar que ele entre
nos pulmões, que preencha toda a caixa torácica antes de expirar. Ter a
impressão de viver o próprio corpo como um objeto da natureza, como uma
árvore, uma flor, ou antes, como um pássaro. A felicidade de ser penetrado
pela própria natureza. Assim eu deveria pensar ter ido construindo durante
toda a minha existência a presente decrepitude dos meus órgãos. Por que eu
deveria detestar o que eu sou agora para descobrir uma outra juventude?
É desejável ver quem pára de fumar como alguém que teve uma revelação.
Descobrirá a alegria da salvação como um jovem iniciado que entra em uma
seita. Tudo o que viveu antes será comparável a um longo período de
cegueira. Nesse tempo durante o qual jamais suspeitara que pudesse ter em
si mesmo a força de viver a plenos pulmões. A saída do túnel. E atrás, o
horror fumacento. Pior que a guerra. Mas por que a sociedade deixou tanta
gente morrer condenada ao fogo? Por que essas centenas de milhares de
cadáveres de fumantes? Por que tal desastre operado de maneira tão
pérfida, o consentimento mútuo com a cremação de órgãos? Como uma
sociedade foi capaz de provocar a morte em hecatombe dos seus próprios
membros, orquestrando a publicidade de um produto que mata? Estas questões
sem resposta permanecem na origem da estranha perversidade dos poderes
públicos que conseguiram habilmente se desviar de suas presumíveis
responsabilidades. Se todos os mortos por tabagismo estivessem ainda
vivos, os caixas da Previdência social seriam insuficientes para
garantir-lhes uma sobrevida descente. Considerando esta hipótese,
terminaríamos por imaginar uma sociedade apta a gerir a duração de vida
dos seus membros como ideal.
Na realidade, alguns filósofos já alertaram: a gestão biopolítica da vida
humana se perfila como o destino inelutável da nossa modernidade. Uma
sociedade poderá outorgar-se o direito de vida e de morte sobre os
indivíduos que a compõem. Os médicos poderão se recusar a operar o corpo
de um fumante reincidente pois ele custa muito caro à Seguridade Social.
As pessoas que se recusassem a se dobrar às regras de sobrevivência
ditadas pelos poderes públicos seriam pouco a pouco condenadas ao
desaparecimento. Triunfaria um estado de exceção geral no qual a boa
conduta do indivíduo garantiria o seu tempo de vida, assim programada.
Como um fumante poderia ter direito à vida, uma vez que ele mata os outros
e polui o meio ambiente?
Permito-me contar o que me aconteceu um dia quando o tempo estava muito
cinzento no campo. A luz do sol não atravessava as nuvens havia uma
semana, fazia frio, a bruma persistia, eu estava melancólico, trancado,
sozinho, eu não atendia ao telefone, não ligava para ninguém, não ia mais
à cidade, não usava mais o carro, permanecia sentado em uma poltrona perto
da chaminé, olhando as chamas, sem nem mesmo conseguir pensar, as
lembranças me haviam abandonado, minha cabeça estava vazia. Tinha a
impressão de seguir um destino que me havia sido traçado como uma via que
terminasse no meio de uma cidade, um impasse, um caminho que desaparecesse
pra sempre nos campos. Não conseguia nem segurar um livro para continuar a
ler. Era preciso, não sei por que, que eu não me distraísse, que toda a
minha atenção fosse captada por esse vazio que me invadia a ponto de
tornar penoso o mínimo gesto. A idéia de me abandonar estava lá, tão
potente que ela afastava qualquer outra idéia que pudesse ameaçá-la. A
idéia de me abandonar havia penetrado todo meu corpo até as extremidades,
meus dedos das mãos e dos pés não se mexiam mais, eu os sentia imóveis
como se eles tivessem embebidos em uma substância que os petrificasse. Eu
sabia, no entanto, que no último momento eu iria sair da minha poltrona
para ir até a granja mergulhada na escuridão. Lá a cena teria lugar, de
fronte a uma pilha de madeira.
Eu me levantei, caminhei lentamente no corredor, tomei, de passagem, a
venda negra que eu havia deixado sobre o buffet, cheguei à granja,
aproximei-me da pilha de madeira, peguei um maço de cigarros que eu havia
deixado sobre um feixe de lenha, acendi um cigarro com um fósforo, olhei a
chama se apagar, dei duas tragadas e coloquei a venda nos olhos, deixando
a boca livre.
Eu os adivinhava alinhados em minha frente, vestidos com um uniforme. Em
suas camisetas estava escrito com letras bem grandes: Fumar mata, eles
seguravam a coronha do fuzil contra o ombro já pronto para atirar enquanto
ninguém havia ainda dado a ordem. Eu fumava. Eu estava prestes a deixar o
mundo. Queria que eles me executassem antes do fim do meu último cigarro,
eu deixaria que ele se consumisse nos meus lábios, estava muito angustiado
e, ao mesmo tempo, sentia uma liberação surpreendente, estava feliz de
escapar enfim de um mundo tornado tão totalitário. Eles pareciam ter um
prazer perverso de não atirar, como se esperassem que eu esmagasse
primeiro a bituca com o pé para confirmar-lhes que eu estava pronto. Eu
lhes fiz um sinal, lembro-me, um signo imperativo, levantei o braço
esquerdo, eles estavam com o dedo no gatilho, não atiraram, eu os odiei,
eles estragavam o meu último prazer tentando me deixar morrer frustrado.
Estavam obstinados a me fazer deixar este mundo lamentando o fato de ter
fumado. Não me permitiram nem mesmo o último prazer que me teria feito
esquecer nesse momento decisivo minha própria condenação à morte. Quando
tive que jogar o pedaço ínfimo que restava do cigarro, pensei em pegar
outro, insistia em continuar fumando no momento em que fosse ser fuzilado. Virei-me para a pilha de madeira e estiquei a mão direita para alcançar o
maço. Nesse momento eles atiraram, mataram-me quando eu estava de costas.
Eles não aceitariam que meu último cigarro se transformasse no penúltimo.
tradução de Maria Galera
HENRI-PIERRE JEUDY é
sociólogo do Centre National de la Recherche Scientifique, como diretor do
Laboratoire d'Anthropologie des Institutions et Organisations Sociales —
LAIOS. É professor de estética na Escola de Arquitetura de Paris-Villemin.
Coordena, na França, uma equipe de pesquisa do projeto CAPES-COFECUB
"Territórios Urbanos e Políticas Culturais", desenvolvido em cooperação
com a UFBa e a UFRJ. Publicou, entre outros, os ensaios O corpo como
objeto de arte, A ironia da comunicação, Memórias do social
e Espelho das cidades, além de romances e crônicas. O texto
publicado aqui é um fragmento de O Último cigarro, livro inédito em
português, a ser lançado em maio pela editora Sulina:
http://www.editorasulina.com.br
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