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daniel santos
viagem terminal
Quando consegui, afinal,
atualizar o serviço há dias acumulado, bati a porta do escritório e me
apressei a tomar o primeiro ônibus que passasse.
O sono baixava sobre mim o peso da sua imensa pálpebra turva, mas havia um
motivo ainda maior para me evadir dali o quanto antes: o centro da cidade,
que sempre me parecera um núcleo nevrálgico, com milhares de pessoas
atarefadas e um trânsito sem sossego, ganhava novo cenário àquela hora.
Bêbados, mendigos, catadores de lixo e crianças sem família constituíam
uma população que, oculta durante o dia, tomava agora todos os espaços.
Eles me surpreendiam e – admito – me inquietavam, talvez por se moverem no
caos com a naturalidade de bárbaros que se abeiram da civilização para
aproveitarem seus restos e conseguirem, assim, mais um dia de vida.
Conviviam com a necessidade como se fosse uma velha parenta, alguém que já
os aguardava quando nasceram e pela qual esses excluídos se afeiçoavam,
sem consciência de tal perversão. Aprenderam a conviver com a falta,
precisavam permanentemente de tudo e, por ignorarem o atalho da
satisfação, a necessidade transformou-se em hábito.
Estranhos, sim, mas igualmente me estranhavam, e um dos mendigos chegou a
tocar meu paletó quando passamos um pelo outro; não para me incomodar,
mas certamente por curiosidade. Afinal, o mundo de onde eu vinha era para
ele, eles todos, verdadeira utopia.
Não cheguei a ficar tenso com essa aproximação, que o ônibus logo chegou.
Fiz sinal ao motorista, mas ele passou, embora vagaroso e atento à minha
fisionomia. Parou mais adiante e deu ré, me considerou estranhamente como
para se certificar de que era eu mesmo e, enfim, abriu um largo sorriso
amistoso, acenando-me a entrar.
Era um tipo simpático, algo gaiato, que gostava de contar piadas, das
quais ele mesmo se ria de sacolejar. Falava muito e alto, da maneira que
se costuma atribuir aos italianos, sem se importar se os passageiros o
ouviam ou lhe apreciavam a tagarelice.
Na verdade, eu era o único viajante – percebi, tão logo entrei no ônibus.
Um ônibus – diga-se – algo diferente daqueles em circulação por aí:
abaulado nas laterais, pintado em cores escuras e estranhamente frio, o
veículo quase não produzia ruídos, tinha estofamento confortável e teto
forrado com uma espécie de cetim.
Partimos, afinal, e depois de cumprir algumas outras ruas do centro, o
motorista tomou a via expressa, a caminho dos bairros residenciais,
enquanto me aconchegava gostosamente sob aquela imensa pálpebra turva.
Ignoro quanto tempo circulamos e por onde, mas despertei quase madrugada
com um solavanco, e a cena era tão surpreendente que, na impossibilidade
de compreendê-la, perguntei:
“Mas o que é isso? O que está acontecendo?”
Alguns homens, três ou quatro, entravam e saíam do ônibus, parado no platô
acima de uma ladeira. Eles desmontavam os assentos e os empilhavam ao
fundo do veículo para abrir espaço. Terminada a tarefa, voltaram a
reunir-se ao motorista que, do lado de fora, diante do portão de um grande
prédio (um galpão para depósito de mercadorias – parecia), coordenava
aquele serviço que me intrigava. E repeti:
“Mas o que é isso? O que está acontecendo?”
O motorista, entretido numa conversa supostamente séria e inadiável com os
ajudantes, nada me respondeu, mas fez um gesto impreciso que tanto podia
significar “fique calmo, logo tudo se explicará” ou “não me interrompa,
você está atrapalhando”. Sem outra alternativa, me resignei a esperar,
porque não sabia onde estava nem como me livrar da situação.
Em seguida, entendi por que abriam espaço dentro do ônibus: ante meu
estarrecimento e sem nenhuma explicação, os homens acondicionaram ao
fundo, e um deles a meu lado!, uma série de esquifes. Sim, caixões de
defunto, que o motorista apontou e me disse “não toque nisso nem tente
abri-los, está bem?”
Não lembro de ter respondido coisa alguma e ele, o gaiato, arrancou com
uma pressa que estimulei, porque a madrugada começava e eu devia estar já
na cama há muito tempo.
Retomamos a estrada e o motorista comentou com a maior naturalidade deste
mundo que (os esquifes) “eram encomenda de um conhecido dele e deveriam
ser entregues naquela mesma madrugada”. Depois, caiu na gargalhada,
enquanto seus olhinhos entocados sob a testa estudavam minha reação
através do espelho retrovisor.
Fiz que não me contrariava absolutamente o fato de ele se divertir às
custas do meu medo, mas, na verdade, tinha já plena consciência de estar à
sua mercê: iria para onde ele decidisse, porque tinha absoluto controle do
itinerário e, desconcertante como quê, disfarçando autoridade com
simpatia, ele conseguia inibir minhas reações.
Às tantas – e, dessa vez, nada lhe perguntei –, ele tomou um desvio, subiu
nova ladeira e estacionou num platô, como antes fizera. A cena anterior se
repetiu: outros homens, esbaforidos e suarentos como carvoeiros,
acomodaram mais esquifes no interior do ônibus. E tornamos a partir.
Pelo retrovisor, ele percebeu que mal me acomodava, agora. Desculpou-se,
disse que tinha de realizar o transporte da encomenda, custasse o que
custasse, e que se eu quisesse poderia descer para pegar outro ônibus ou ,
preferisse mesmo prosseguir viagem, poderia sentar mais para a frente,
sobre o capô, perto dele.
Aproximei-me, então, que, com o movimento do veículo, um dos caixões batia
seguidamente contra meu ombro como alguém inoportuno que insistisse em me
chamar a atenção excessivamente.
Sobre o capô, sentia a vibração do veículo com mais intensidade e isso foi
me entorpecendo de novo, bocejei seguidamente e, sem que me desse conta, a
tal pálpebra turva voltou a me convocar para baixo dos seus cílios
sedosos.
Quando comecei a cochilar, despertei assustado com um solavanco. Para me
advertir, talvez, do risco que eu corria e do qual não tinha a mais leve
suspeita, o motorista pisou bruscamente no freio e voltou a acelerar. Caí
sentado no chão do veículo e ouvi que ele gargalhava com estrépito.
“Tem certeza de que não quer mesmo descer?” – ele tornou a perguntar com
uma entonação altamente sugestiva, como se quisesse dizer “se eu fosse
você, saltava agora”, mas sem razão evidente para desistir da viagem, fiz
que não entendi e, embora amuado, com vontade de esmurrar meu condutor,
permaneci em silêncio. Talvez fosse mesmo melhor assim; do contrário,
sabe-se lá qual seria sua reação!
Na madrugada, a estrada parecia não ter mais fim e, com disfarçado
aborrecimento, perguntei:
“Falta muito para chegarmos?”
Ele fez que não com a cabeça e, depois de alguns segundos, assumiu uma
estranha expressão de amigo e confidente, de alguém mais velho, que sabe
das coisas e se acha no direito de dar conselhos. E me disse:
“Olha, ainda está em tempo, você pode muito bem saltar agora e não correrá
mais riscos. Eu paro, nos damos boa-noite, logo em seguida aparecerá outro
ônibus e você poderá, enfim, ir para casa.”
Entendi perfeitamente suas palavras, mas não o que, de fato, havia por
trás daquela situação que inscrevia interrogações em minha testa. Tudo era
estranho, senão desconcertante: viajava por território desconhecido, o
motorista ainda não me cobrara a passagem, eu era o único passageiro e ...
Aquilo jamais me acontecera!
Riscos? A que riscos ele se referia? Porque algum perigo havia naquela
circunstância absurda, e ele – ou muito me enganava – não estava de
brincadeiras. Tinha, com certeza, alguma consideração por mim. Do
contrário, por que me falava assim naquele tom compreensivo, quase
paternal?
Por isso, já inclinado a seguir seu conselho, fiz a última tentativa:
“Devo mesmo descer?”
Expressão grave, ele olhou para os esquifes e me disse:
“Deve, sim. Muita gente, vítima da própria teimosia, acaba fazendo sua
última viagem... Acontece que muitos, com pressa de chegar aonde
pretendem, não pensam duas vezes. Nessa velocidade sem reflexão nem
cautela, tudo pode se perder. É preciso aprender a esperar pela viagem
mais segura, ou então ...” – e me apontou a saída.
Nos demos boa-noite e, já de pé na estrada, vi o ônibus se afastar,
enquanto a imensa pálpebra turva o tragava para dentro, para o esconjuro
da escuridão.
DANIEL SANTOS é jornalista e escritor. Trabalhou como repórter e
redator nas sucursais de O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e O
Globo. Publicou A filha imperfeita (poesia, 1995, Editora Arte da
Palavra) e de Pássaros da mesma gaiola (contos, 2002, Editora
Bruxedo). Em 2001, ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em
fase de conclusão, com o romance Ma negresse.
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