revista

 

editorial

e créditos

outros

números

envio

de material

editora

cartas

dos leitores

links

contato

 

 

 

 

 

 

 

 

luiz felipe leprevost


inverno dentro dos tímpanos

 

 


Isso é pra você que é um desses caras fumando o último cigarro do maço antes de atravessar a Rua dos Pingüins Tristonhos. É pra você que insiste esquecer o guarda-chuva só pra ter a esperança de um dia voltar atrás. É pra você que come cheeseburguers com recheio de neve e catchup esperando a noite chegar num banco qualquer de uma praça chamada No Meio do Nada. É pra você que cruza a Rodovia do Café dentro dum ônibus voltando da Cidade Industrial por volta da 23:45, carregando uma sacolinha cheia de desilusão. É pra você que é aí das quebradas e tem o tórax inchado e os olhos melados ganindo pra lua com intervalos peripatéticos de tosse. É pra você que espera os créditos acabarem antes de sair do filme. Isso é pra você em quem os analgésico não fazem mais efeito.

 

*

 

 

O começo foi muito bom. Mas depois, a coisa degringolou. Vi que os dias corriam diferentes quando a gente se escutava. Sempre um improviso. De repente Deus podia existir, seria legal se isso acontecesse. E isso parecia estar acontecendo. Mas logo acabei entendendo que só os bisturis conhecem o subterrâneo das pessoas. Acabei entendendo que os seres mais sofisticados também podem gostar de baladas de amor cantadas pelo Fábio Junior. Eu devia ter sacado que água oxigenada e carne-viva só convivem bem depois do primeiro minuto. Eu devia ter contado que quando era criança colocava ataduras ao redor do punho e da mão pra que os outros pensassem que eu havia me machucado e ficassem com pena de mim. Não sei que tipo de pessoa eu seria se não tivesse freqüentado escolas particulares. Não lembro de me ver crescendo. Quando dei por mim era isso, um homem que ama uma mulher. Tinha um inverno dentro dos tímpanos. E já tava tão cansado.

 

 

paralelepípedos encharcados


Dois sapatos pra uma pessoa. Se eu fosse duas pessoas, quatro sapatos. Mais sapatos, ou nenhum se houvesse mais de mim ou menos de mim. Aí não precisaria usar sapatos, concluiu meu pai. No futuro serei eu o meu pai, meu pai mais eu levando o outro pela mão. Vamos entrar aqui, compraremos um sapato pra você. Compramos. Meu primeiro sapato de couro, uma canoa em um dia de tempestade na Rua dos Pingüins Tristonhos. Não era 1948, não era uma casa ou um livro. Um político discursava idiossincrasias em um palanque improvisado. Meus nove anos de idade afogados em meu primeiro sapato de couro, uma canoa, já disse, em cada pé. Eu afundava. As idiossincrasias do homem público não me serviam de cordas ou bóia salva-vidas, não me serviam de nada. Hoje cadê meu pai me levando pelo braço? Um engraxate esfregava minha canoa, esfregava com força e raiva o escuro dos meus próximos passos. A chuva era um pano, os raios graxa, a cadeira do engraxate não estava salva naquele mar avulso e revoltoso. Meu pai de repente diz que não se engraxa tênis. Me leva pelo braço. Não paramos pra um frapê de morango na Confeitaria das Famílias. A graxa preta no plástico dos meus tênis exalava um sabor de nunca mais. Algo me fez pensar que não me tornaria em adulto um cara sério, enquanto voltávamos pra casa pisando o lodo encharcado daqueles paralelepípedos.
 

 

o pão de ontem


Uma tarde rachada. Quase a parte escura da cor fantasma, quase o lago fundo das paisagens do vermelho. Brumas a afogar o apartamento. O fígado filtra os labirintos da asfixia antes que alcance as águas de fora do colchão. Está nu. Um travesseiro debaixo do quadril mantém empinada sua bunda. Os punhos amarrados na cabeceira da cama, e os tornozelos também amarrados. Um paladar outonal, não na língua, na pele. Espasmos. O falecimento castiga, humilha, lento, curra sem vaselina. Formicida e cianureto no corpo. Cacos de água caem do teto. A flanela aguda da sirene atravessa o blindex coagulado de sua surdez. O IML estaciona em seu odor ainda quente. Alguém segura o pavor entre dentes. Dois homens carregam uma bandeja na qual os mortos devem ser servidos, embrulhados por um saco plástico sem música e expressões. No lugar das rodas da bandeja há dois olhos, os seus, pedregosos. A Polaroid do antiquado investigador registra tudo: O pão de ontem, neblina, espinho, essas bichas velhas continuam nos dando trabalho.
 

*

 

 

Eu não sei como essas coisas acontecem. Sinceramente, não sei. A garota do cabelo encaracolado... Sei apenas que tem o momento em que ela pára de falar, e aí eu paro de falar. Então ela fica mexendo a colher na xícara vazia, e eu fico desenhando abstrações no guardanapo. De repente ela diz algo do tipo entre filósofos e amestradores de baratas de comercial de inseticida, eu fico com a segunda opção. É isso, tem esse jeito alegre da gente ser triste. Tem esse compromisso de querer que doa. Tem todos esses papeizinhos amarelos da Redcard esquecidos na carteira. Tem as 208 caronas que tô devendo pra ela. Tem pedaços do doce que comemos juntos dividindo a colher. E ela sempre dizendo coisas do tipo repara como as moscas esfregam as mãos antes de chupar o doce.

 

 

bicarbonato de sódio

Pro Alexandre França
 

Não somos nada sadios, somos o tipo que tem pêlos encravados no lado de dentro da coxa. Temos caspa, mau-hálito, barba por fazer. Temos micose saltando igual asas das costas, frieiras entre os dedos dos pés. Não lavamos as mãos depois que mijamos. Não, não somos nada do bem. Derrubamos passarinho com cuspe. Fugimos do amor como quem foge da FEBEM. Somos da porrada, garrafa quebrada de cerveja abrindo cicatrizes. Nosso carinho também é agressão. Um dia sorriremos sem dentes, ou com as presas de um Wolverine. Sorriremos para estas castradoras de homens como fôssemos sadomosôs convictos. Diremos, engordurados: Para me digerir, neném, só com colheradas de muito bicarbonato de sódio.
 

 

LUIZ FELIPE LEPREVOST é poeta, autor do livro/CD Fôlego (2002) e dos livros Tornozelos deitados (2005) e Ode mundana (2006). Curitibano, atualmente mora no Rio de Janeiro, onde cursa artes cênicas no Centro de Arte de Laranjeiras. Recentemente teve encenada a sua peça Tua passividade me embrutece, no Festival de Teatro de Curitiba.


 

voltar ao índice | imprimir

 

 

confraria do vento