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allen ginsberg


"quando a musica modula, as paredes da cidade se abalam"

 

 

 

I
 

O problema com a forma convencional (contagem fixa dos versos e forma da estrofe) é, é muito simétrica, geométrica, numerada e pré-estabelecida — diferente da minha mente, que não tem começo e fim, nem medidas fixas de pensamento (ou fala — ou escrita) a não ser as de seu próprio mistério sem cantos — transcrever este último da maneira mais parecida com sua atual “ocorrência” é meu “método” — que necessita da arte da liberdade de produção — e que vai levar a poesia à expressão dos momentos mais intensos da existência — iluminação mística — e sua emoção mais profunda (através de lágrimas — o amor é tudo) — nas formas mais próximas ao que de fato parecem (dados de imagens místicas) e desejam (ritmo do discurso atual e ritmo induzido pela transcrição direta de dados visuais e de outros tipos) — ainda sem esquecer a repentina imaginação de gênio ou a fabulação do irreal e das construções verbais extraordinárias que expressam a verdadeira vivacidade e o excesso de liberdade — (que pela sua natureza também expressam a primeira causa do mundo) por meio da espontânea sobreposição irracional do fato sublimemente narrado, pela broca do dentista cantando contra o som do piano; ou pura construção de imaginários, jukeboxes de hidrogênio, em prováveis imagens abstratas (produzidas pela colocação de duas coisas verbalmente concretas mas originalmente desiguais) — sempre tendo em mente, aquele deve beirar o desconhecido, escrever no caminho da verdade até aqui irreconhecível da própria sinceridade, incluindo a evitável beleza das ruínas, da vergonha e do embaraço, aquela precisa área do auto-reconhecimento pessoal (indivíduo detalhado é lembrança universal) cujas convenções formais, internalizadas, nos afastam de descobrir em nós mesmos e nos outros — Visto que se escrevemos voltados para o que o poema deve ser (tem sido), e não nos perdemos nele, nunca vamos descobrir nada novo sobre nós mesmos no processo de realmente escrever algo, e perdemos a chance de viver em nossos trabalhos e de tornar habitável o mundo novo que cada homem pode descobrir em si mesmo, caso ele viva — o que é a própria vida, passado presente e futuro.


Assim, a mente precisa ser treinada, isto é, alargada, libertada — para lidar consigo mesma como de fato é, e não para se impor, ou nos artefatos poéticos, um modelo pré-concebido arbitrariamente (de forma ou assunto) — e todos os modelos, a não ser que sejam descobertos no momento da produção — todos os modelos lembrados e aplicados são, por natureza própria, arbitrariamente pré-concebidos — não importa o quão inteligente e tradicional — não importa que resultado de experiência adquirida eles representam — O único modelo de valor ou interesse na poesia é o modelo solitário e individual peculiar ao momento do poeta e o poema descoberto na mente e no processo de colocá-lo na página, como notas, transcrições —, reproduzidas na forma precisa mais adequada, no momento de sua produção. (“Tempo é essência”, diz Kerouac). É essa descoberta pessoal que tem valor para o poeta e para o leitor — e claro que é mais, não menos, transmissível da realidade do que um modelo escolhido previamente, com assuntos despejados de forma arbitrária para se adequar, o que obviamente deturpa e encobre o assunto... A mente é graciosa, a arte é graciosa.


II

A quantidade de conversa e de desentendimento incorporado que temos encontrado — normalmente em nome do bom senso, da virtude moral ou (mais presunçosamente) dos valores civilizados — tem sido para mim uma revelação da absoluta falência da atual academia americana, ou daquela que se colocou como uma academia para a conservação da literatura. Visto que a academia tem sido a própria inimiga e hospedeira da barbárie. Visto que meus trabalhos serão ensinados nas escolas em 20 anos, ou menos — ele já está sendo ensinado por causa disso — depois dos primeiros gritos de mediocridade descontente, gritos que duraram 3 anos antes de se apaziguarem em um gemido violado.


Eles deveriam nos tratar, os poetas, em cima de quem eles sobrevivem, de forma mais gentil enquanto estamos aqui para aproveitar. Afinal, nós somos poetas e romancistas, e não marcianos disfarçados tentando envenenar a mente humana com propagandas antiterrestres. Apesar de que, para o mais conformista deles, essa exploração beat e budista e mística e poética deve parecer exatamente isso. E provavelmente é: “Qualquer homem que não trabalha para se tornar obsoleto é incompetente.” — Burroughs.


As pessoas nos levam muito a sério, e não a sério o suficiente — ninguém interessado no que nós planejamos — só um monte de jornalismo ruim sobre beatniks se comportando como crítica de alta categoria, em que a multidão é levada a encarar como sendo os grandes periódicos do intelecto.


E a ignorância da realização técnica e dos interesses espirituais é nojenta. Com que freqüência tenho visto meu próprio trabalho sendo relacionado a Fearing e Sandburg, à literatura do proletariado, à década de 1930 — por pessoas que não associam meu verso longo com minha própria leitura óbvia: Atlantis, de Crane, o Poeta em Nova York, do Lorca, estruturas bíblicas, salmos e lamentações, as grandes construções de Shelley, Apollinaire, Artaud, Maiakovski, Pound, Williams e a tradição métrica americana, a nova tradição de medidas. E o Rejoice in the Lamb, do Christopher Smart. E Pierre, o poema em prosa de Melville. E finalmente o espírito e iluminação de Rimbaud. Será que eu preciso ficar preso a Fearing (que é bom também) através de falsos críticos cujo único contato com um verso longo tem sido peças de antologia em coleções do Oscar Williams? Através de intelectuais canalhas e esnobes e vulgares e hipócritas que nunca leram o Para acabar com julgamento de Deus do Artaud e que por isso não iriam nem começar a saber que essa obra-prima que em 30 anos será tão famosa quanto Anabasis é o atual modelo de estilo para meus primeiros escritos? Isso não é nada mais do que uma bobagem voltada para os falsos judeus de Columbia que perderam a memória do Shekinah e que se passam por classe média. Será que devo me sentir atacado e condenado por essas pessoas, eu que ouvi a velha voz de Blake recitar para mim o “Girassol” no Harlem há uma década atrás? e que dizem que eu não sei nada sobre “tradição poética”?


A única tradição poética é a voz que sai da moita em chamas. O resto é lixo, e vai ser consumido.


Se alguém quer uma declaração sobre valores — a declaração é essa, que eu estou pronto para morrer pela poesia e pela verdade que inspira a poesia — e farei isso em qualquer situação — como todos os homens, quer gostem ou não —. Eu creio na Igreja Americana da Poesia.


E homens que desejam morrer por qualquer coisa menor ou que estão relutantes em morrer por qualquer coisa a não ser suas peles temporárias são tolos e confundidos pela ilusão e deveriam calar a boca e quebrar suas canetas até serem melhor instruídos pela morte — e eu estou extremamente cansado de profetizar para uma nação que não dispõe de ouvidos para escutar o trovão da ira e da alegria por vir — entre os “condenados legendários” das nações — e as vozes monetárias dos ignorantes.


Nós ainda estamos, na prosa e na poesia americana, dando continuidade à venerável tradição da auto-exploração composicional, e eu diria que, historicamente, a hora de qualquer esforço que não seja o das primeiras tentativas sinceras em descobrir aquelas estruturas naturais com as quais temos sonhado e falado ainda não chegou. Generalizações sobre esses modelos naturais ainda podem ser feitas — tempo para as academias considerarem isso em todos os detalhes técnicos — as informações, a poesia e a prosa, os clássicos da forma original, eles já foram escritos ou estão para ser — existe muito o que aprender com eles e podem haver generalizações possíveis que, para os não-iniciados, os não-poetas, podem ser reduzidas a “regras e instruções” (para voltar a atenção ao que está sendo feito) — mas o caminho para a liberdade de produção passa pela eterna barreira sem portão na qual, se ela tem “forma”, tem uma forma indescritível — imagens que são, entretanto, inúmeras.


Não há nada para ser concordado ou discordado com relação ao método de Kerouac — existe um relato (1953) do método, as condições do experimento, o que estava perseguindo, o que pensava, como encarou. Ele realmente ampliou a produção dessa forma, os resultados são aparentes, ele aprendeu muito com isso e assim também aconteceu com a América. Como um método proposto de experimento, como um objetivo alcançado, não há com o que concordar ou discordar, isso é um fato — era isso que ele estava interessado em fazer, foi isso que ele fez — ele está apenas descrevendo seu interesse (sua paixão) para o curioso artesão ou crítico ou amigo — que assim seja. Por que ficar nervoso e dizer que ele está “errando”? Isso não é mais errado do que alguém aprendendo como construir uma mesa construindo uma. Ele descobriu (o que é raro para um autor) como realmente quer escrever e está escrevendo dessa maneira, explicando-a delicadamente.


A maior parte da crítica é semanticamente confusa quanto a isso — devia e não devia e arte é e arte não é — tentando falar para as pessoas fazerem algo diferente do que elas basicamente e inteligentemente querem fazer, quando estão tendo experiências com algo novo para elas (e, nesse caso, para a literatura americana).


Eu mesmo já tive problemas com isso, todo mundo me dizendo ou subentendendo que eu realmente não deveria escrever da forma que escrevo. O que eles querem, que eu escreva de alguma outra forma que eu não estou interessado? Forma que é exatamente o que não me interessa em sua prosa e poesia e o que faz delas uma chatice longa e confusa? — todas pretensiosas e com regras herdadas e sem surpresas e sem nenhuma invenção nova — correspondendo inevitavelmente a seus próprios caracteres enfadonhos — porque de qualquer forma a maior parte deles não tem caráter e são grandes mentes chatas que não sabem e só argumentam com base em princípios morais superficiais e abstratos no vazio? Essas pessoas são todas muito abstratas quando se trata dos acontecimentos poéticos da poesia, — e eu aprendi nos últimos dois anos que argumento, explicação, cartas, objeção são tudo em vão — ninguém se preocupa mesmo (não só para o que digo, mas para o que quero dizer) todos eles têm seus próprios interesses pessoais. Eu expliquei a estrutura prosódica do Uivo da melhor forma que pude, com freqüência, e eu ainda leio críticas, até favoráveis, que supõem que eu não estou interessado na, e que não tenho, forma — eles simplesmente não reconhecem nenhuma forma, a não ser aquela sobre a qual já ouviram antes e esperam e querem (eles, a maioria deles, sendo pessoas que não escrevem poesia nenhuma e que por isso não têm idéia do que isso envolve e da beleza que estão violando). — E também é cansativo e irritante ouvir o Kerouac ou eu ou outros "Beat" taxados como incoerentes por causa de nossa arte, podemos ser qualquer coisa, menos. Apesar de tudo.


Mas até agora nós nos recusamos a fazer arbitrárias generalizações abstratas para satisfazer uma peculiar ganância popular pela banalidade. Talvez eu perca um pouco desse espaço com essa história. Eu ocasionalmente grito com exasperação (ou risadas); normalmente isso é uma tentativa de me comunicar com um idiota. E Kerouac às vezes diz "Uau" quando está alegre. Tudo isso dificilmente pode ser chamado de incoerente a não ser por loucos prolixos que para sobreviver dependem de cansativas defesas de sua prosa ruim.


Os problemas literários de que falei acima são explicados mais profundamente no ensaio "Aspectos da Cultura Japonesa", do dr. Suzuki, e situados no contexto estético adequado. Por que a arte da espontaneidade no vazio deveria ser, parecer, estranha quando aplicada no contexto da prosapoética americana? Obviamente, uma falta de espírito intuitivo e/ou experiência clássica a respeito dessas fraudes provinciais que se estabeleceram como conservadores da tradição e que atacam nosso trabalho.


Uma espécie de hostil lavagem cerebral do público tem acontecido. Quanto tempo o atual sentido da nova poesia vai levar para vencer isto, através da escrita atual e de sua leitura afeiçoada e livre de preconceitos, é algo que está fora do meu controle de sabedoria, e, a essa altura, além das minhas expectativas imediatas. Mais pessoas formam suas opiniões a partir de resenhas, jornais e revistas acadêmicas bobas do que a partir dos próprios textos.


O que eu mais temo, considerando a superficialidade das opiniões, é que alguma parte da poesia e da prosa possa ser encarada de forma muito familiar, e as idéias aceitas em um tipo de forma sociológica trivial besta — como idéias e percepções perfeitamente naturais que são — e que lhes seja dado o mesmo tratamento superficial, dessa vez simpatizante, como, até recentemente, lhes era dado de forma antipática. Essa seria a verdadeira razão da fama. O problema tem sido comunicar o genuíno brilho da vida, e não alguma opinião sobre esse brilho. A maior parte da crítica negativa até agora tem sido medrosa ansiosa irritante dogmática em relação a esse brilho — e a maioria da "crítica" posterior vai enfadonhamente se preocupar com as opiniões favoráveis sobre esse brilho. E isso não é arte, isso não é nem mesmo crítica, isso não é nada além de mais opacidade apática blá blá blá — o suficiente para dar nos nervos de um poeta. Uma espécie de câncer da mente que ataca pessoas cujos amores estão devorados por suas opiniões, cujas línguas são incapazes de amáveis pensamentos selvagens, que é a poesia.


A lavagem cerebral vai continuar, embora o trabalho se encontre acessível, e as pessoas vão falar de forma tão fútil sobre o vazio, tendências, a euforia das drogas, ternura, companheirismo, criatividade espontânea, individualidade e sacramentalismo espiritual beat, quanto elas têm falado sobre o "destino moral" do homem (normalmente significando um trabalho legal e estômago cheio e nenhuma coragem e a necessidade de uma conformidade insensível e reprimindo seu irmão por causa da inservibilidade do amor como contrária à disciplina legal da tradição por causa da indisponibilidade da pureza da visão de Deus e conseqüentes anjos da alma — ou qualquer outra coisa que valha a pena). Terem esses horríveis monstros que não fazem nada além de falar, ensinar, escrever bosta e atrapalhar a poesia, declarado que nós, poetas, não temos "valores" como eles reconhecem é o suficiente para me fazer jurar solenemente (pela segunda vez) que logo logo eu vou parar até de tentar me comunicar coerentemente com a maioria dos acadêmicos, jornalistas, mídias de massa e o mercado de publicação e deixá-los cozinhar em seu próprio caldo de ridículas idéias confusas. QUADRADOS CALEM A BOCA e APRENDAM OU VÃO PARA CASA. Mas pena que o mundo quadrado nunca vai e nem nunca parou de amolar o poeta hip.


Que nós começamos uma revolução da literatura na América, mais uma vez, sem intenção de fazê-la, apenas pela verdadeira prática da poesia — isso seria inevitável. Sem dúvida nós sabíamos o que estávamos fazendo.
 

tradução de Hugo Langone
 

 

ALLEN GINSBERG foi o grande representante da geração Beat americana, junto com William Burroughs, Jack Kerouac, Neal Cassady, Carl Solomon, Gregory Corso, entre outros. Como ensaísta é absolutamente desconhecido no Brasil e não há nada traduzido para o português. Este ensaio, de 1961, foi publicado pela primeira vez no volume 1 da Second Coming Magazine e faz parte do livro Deliberate Prose: Selected Essays.
 


 

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