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leonardo vieira de almeida
mãos
Em frente à velha torre, no
restaurante cercado de abetos, a família se prepara para almoçar.
A mãe possui o pescoço rotundo, vítima do bócio que dilata exageradamente
seus olhos, cheios de uma água contaminada e lodosa. O pai, baixo, a calva
reluzindo sob o sol forte do meio-dia, olha fixamente a coluna de madeira
que sustenta um trecho do telhado. Parece que se observa inadvertidamente
em um espelho.
A filha, o que posso dizer dela, se estou sentado numa espreguiçadeira
perante a janela de minha casa, o jornal aberto sobre os joelhos, a
bengala encostada no ângulo da parede, triste, até que me lembra uma
viúva? Ela permanece sem se mover. Os olhos não se concentram em nada, ou,
talvez, se detenham sobre dois rapazes que cruzam a rua, caminhando leves,
conversando.
Eu os vejo todos os domingos, bem ali, sem que fujam à regra exímia dos
relógios. Sempre ao meio-dia, os três de roupas que rogam o luto. Há
outras famílias no restaurante, e penso que sejam campânulas brancas em
torno de ervas daninhas. Mas sei que a filha guarda algo de branco, não em
sua pele, mas na delicadeza dos ossos, na água que corre sem me sorrir,
pelos seus olhos.
Há muito tempo tive uma filha, que cuidei como um templo. O que nasce de
nós não nos pertence. Não fui seu pai, mas apenas alguém que, um dia, pelo
enorme cansaço, deixou-se deitar sobre a estela, dormindo num corpo que
era carícia e música. E desse conúbio nasceu o raro dia. Quem pode
imaginar que o dia seja de alguém? Ele começa e finda, sem que nada o
controle. Passa por mim, como conversa de jovens.
A filha me observa? Pede-me algo além da vida votiva, dedicada a obedecer
aos dois velhos prostrados sobre a mesa. Nem chegam a comer o que repousa
nos pratos. Absorvem os rapazes que desaparecem na esquina próxima. Nada
os agride mais que a juventude. Se pudessem, poderiam ladrar como cães a
todo o sol que, nesta hora, estende seu calor e me aquece. Vejo no olhar
fixo da jovem uma reza. Logo afastada pelo riso que contamina seus lábios.
Estão ardidos pelo sol, meus dedos de velho. Lembro através do calor que
poreja em minhas unhas, da manga enrugada do vestido branco, talvez verde,
da grande túnica que era o campanário da igreja, inconsútil, limpa de todo
desejo de posse, leves, meus dias. Entrei com Paulina na igreja,
sentamo-nos num dos bancos, ela ajoelhou-se e começou a rezar para a
silhueta de Cristo, nos fundos da nave. Ninguém naquele instante poderia
nos importunar, éramos um casal, unidos pela imagem fincada na cruz. Eu
mesmo poderia não estar ali, mas isso não nos faria distantes nem
desconhecidos. Jamais estive com Paulina. Como um fantasma, como luvas que
adornam mãos ausentes, levava-a para qualquer lugar que fosse, soprava
seus cabelos, como vento. Refletia seu rosto, como rio. Banhava-a de
chuva. De sua mãe nem tenho notícia, desde o dia que me deixou acolher em
minhas mãos a pequena criança, para o nenhum cansaço. A cabecinha de
Paulina tocava o encosto do banco, as mãos unidas com fervor rogavam algo
mais que a vida. As velas nos círios permaneciam hirtas, flores que
adornam a face de um morto. Ali dentro, diante do Cristo gótico, lavado de
chagas, só havia mortos. De tanto exagerarmos a vida, de tanto carregarmos
o simples traço, pela cuidadosa exigência dos rudes, borramos o lago
branco, o pássaro que voa é captado pela vaga. Seu arrulho congela-se.
Conserva-se a figura, revela-se seu desenho, perde-se o seu prosseguir.
Como tantos são os filhos que não chegam a desafiar a incomunicabilidade.
O ventre de uma igreja é feito de silêncios. Mas foi por não falar que o
tornei mais grave.
Agora eles se apiedam, quase. Os dedos da mãe recolhem os cabelos oleosos
da filha. Ela conserva das agressivas garras a falsa sabedoria do afeto.
Sou um homem amputado. Até chegar ao restaurante, pesando sobre a bengala,
já terão partido. E nem posso gritar, pois se o faço, minha voz será a de
um cão que acabou de perder o dono. Destruirá até mesmo minha própria
imagem.
Dentro da igreja há um oratório, fechado por grades. Ainda lá existe, e,
às vezes, costumo visitá-lo. Levei Paulina ali uma só vez. Não sei dizer o
que me impressionou mais, se as imagens do oratório, se a reação de
Paulina. Talvez um pouco dos dois. Sabia dessas figuras, alguém me
dissera, pela primeira vez me punha diante das grades com minha filha. A
perfeita inclinação do corpo, os joelhos rasgados, vermelhos, a marca do
cilício em seu ventre, as ramagens abrindo-lhe a cabeça. Mas nenhuma dor
se exprimia. O corpo permanecia leve, suspenso, deitado como em uma nuvem,
quem sabe um berço. A carne beijava as dobras brancas do burel. Quem pode
deter-se por um único instante no rosto daquela que nos concebeu? Só
quando estivermos mortos, como Cristo, os olhos brilhando imóveis. Os
lábios da Virgem, abertos por uma enorme tranqüilidade, as feições
descontraídas, mãos muito suaves, escondidas por trás do corpo do filho.
Paulina não deixava de observar o boi de zigomas descarnados, assomando da
casa de palha, o ebúrneo bezerro, um cão cujas pupilas lembravam as de meu
pai, quentes, bêbadas. Só naquele espaço de tempo, que dilatava as
gelosias e os vitrais do oratório, poderia uma mãe cingir seu filho, fazer
de suas mãos e rosto silente o féretro e o cárcere. Não havia peso em
Cristo, não havia lástima. Assim eu me lembrei da mãe de Paulina, não de
seu corpo, mas da estela sob a qual a ungi, de seu rosto que eu não
distinguia, nem da forma como partiu. Se ainda vive, deve rememorar a cada
instante aquela hora em que me entregou Paulina, encolhida num canistrel,
gritando de frio enquanto a silhueta da mãe desaparecia ao longe. Se ainda
chove, não como hoje, mas nos dias frios, ela deve vir até fora de casa,
ajoelha-se sobre a terra, deixa que água a envolva, dobra-se sobre o solo,
soluça. Porque damos à terra aquilo que, por estar preso a nós, definha.
Aqueles abetos, soprando os cabelos como assobios infantis, onde estarão
seus pais? Uma nuvem a nada pertence. Somente passa, me observa.
Silêncio que não devo a nada. Ela estava aqui, há alguns anos. Acompanhei
seu rosto perder a vida, apesar de todo meu desapego ao seu corpo, pois só
ao deixarmos livres as folhas elas vicejam, porque não se partem em nossos
dedos, não mudam do verde para o amarelecido papiro, a folha rota de um
livro, a tinta desbotada dos dias. Eu, o fantasma, que a protegia por não
tocá-la, o moinho que fazia voar as corolas dos gerânios, os caules das
clematites, perdia-a. Toda sua graça murchava, os olhos brilhavam ainda
como lanternas, acesas sobre a pele esticada e os ossos. Era tão frágil. A
morte é a mais frágil de todas as coisas. E quis tocá-la. Minhas mãos
sobressaíam do burel da Virgem. Quando meus dedos encontraram o desenho da
delicadeza, a vida parecia dar o mais alto sopro. Aqui perto, posso
escutar sua respiração. Ela, agora, o fantasma.
Qual a medida exata de nossas mãos? Sobre as folhas do jornal, são como as
do carrasco. Sobre os ombros da menina no restaurante, serão às do afeto?
Penso que sejam a astuta teatralidade dos mártires. Eles, os esbirros, que
acariciam os pescoços de suas vítimas, depois que as vêem suspensas das
cordas, como grandes favas secas, pedindo uma oração ao vento, chegam às
suas casas, tocam com os dedos as gargantas, olham-se no espelho,
encontram as cicatrizes vermelhas, zombando do peso de suas mãos. Se
pudéssemos medir com exatidão a quantidade de dor, carinho, carícia,
suavidade, aspereza, mentira, verdade, que pousamos no ombro de um filho,
pode ser que ansiássemos salvá-lo. Talvez me arrependa de não tê-la
tocado, por esperá-la livre de qualquer defeito meu, ou de todos os
outros, o erro que começamos a engendrar quando um corpo não cessa de
pedir o outro. Esta bengala, recostada no ângulo da parede, parece-me um
osso de perna perfeitamente polida. Um membro que se tornou tirânico por
não se mover por força própria, mas por se arrastar ao impulso do corpo
que perdeu o antigo vigor, que se irá deixar por muito tempo ficar na
espreguiçadeira, percebendo agora que a menina se afasta do restaurante.
Mas não é ela que vai, por sua vontade. É a marcha fúnebre que a impele.
Uma procissão de figuras negras, em corpetes empoeirados, esgalgados
guarda-chuvas em luto pelo sol, que descem a rua. Na torre, que encima
minha casa, Paulina os vê também ir embora. Ela gostaria de entrar pela
porta da casa onde vive aquela família, acompanhar a menina até o quarto,
vê-la deitar-se na cama com as mãos cruzadas sobre o peito. Os olhos
opacos tentando escutar a conversa dos rapazes que se afastam, que então
devem estar muito longe, e pode ser que durmam juntos, de mãos enlaçadas.
Ela que sob tantas mãos crê na Virgem e no céu. Apesar de que as mangas de
seu vestido mostram-se ocas. Como se os pais houvessem roubado suas mãos.
E as mãos de Paulina rebrilham facas.
LEONARDO VIEIRA DE ALMEIDA é Mestre em Literatura Brasileira e
Doutorando em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Autor do livro de contos Os que estão aí (Ibis Libris,
2002), e de contos publicados no suplemento literário Rascunho, do Jornal
do Estado do Paraná, no jornal Panorama e nos sites literários Paralelos,
Bestiário, Cronópios e Germina. Co-autor do livro À roda de Machado de
Assis: ficção, crônica e crítica (Editora Argos, 2006).
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