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o novelo de odradek | victor paes


pequena rubrica escrita sobre rubricas

 

 

 

A ficção fazendo mais uma espécie de pazes com a realidade (grande problema neste palco de tanta pirotecnia entre realidade e verdade): para os mais afoitos pela verossimilhança científica, estão aí, ao alcance de todos, todas as supercordas, todos os universos paralelos, todos os tempos enviesados em relação ao nosso, todas as possibilidades que não aconteceram, o pensamento modificando matéria, alta ficção... Para alguns, ainda ficção. Mas isso não importa, à medida que quem propõe essas teorias são os mesmos cientistas que há cem anos jamais as permitiriam.

Pode soar contradição este pôr em riste teorias científicas contra a própria visão da ciência, mas aí está a beleza, se é que se pode chamar assim, mais uma tentação de sarcasmo. Pois estas outras dimensões são apenas outras dimensões: pensá-las é só uma forma de mostrar o quanto nossa relação com a realidade é instável. Há ainda uma tentação maior: chamar isso tudo de esperança. Não de se ver esse óbvio ofuscado, que por si só, mesmo inconscientemente, nos instiga a atenção, aborrecendo as mentes mais resistentes. Mas de que, nesse teatro de variedades se abra um palco mais amigável para as pessoas que, afinal de contas, não têm outro olhar que aquele contra a supremacia do roteiro sobre o improviso (que vai do planejamento de marketing do espetáculo até a escolha de qual técnica de atuação e de quais máscaras é conveniente utilizar).

Abre-se a cortina e tudo se mostra em espetáculo. Não que o espetáculo deva ser evitado. Somos seres essencialmente dramáticos. Mas pode-se ter a esperança de conseguir deixar apenas seus elementos básicos, em busca de menos poluição cênica (e não de atingir um suposto “desmascaramento”). Pois há espaços onde se quer admitir menos sobreposições de máscaras que em outros. Espaços onde as próprias máscaras são foco. O espaço da arte é um deles. Nada mais comum que se ignorar uma obra de arte para tentar mostrá-la como tal. Nada mais comum que ignorar que o resultado deva ser uma obra de arte, para atingi-lo. Então nos perdemos, ainda hoje, nesse emaranhado de conceitos, certezas e medos, que, quando muito, nos levam mais para fora das obras. Os mesmos medos que nos levam a tentar seguir com voracidade e, ironicamente, em busca de tranqüilidade o roteiro que preparamos para cada uma de nossas biografias dramatizadas. Para facilitar este trabalho, criamos rubricas para esses textos, ou, mais ainda, escrevemos essas rubricas, que, assim escritas, já não são mais que repetições de algumas palavras que já estão no texto. Ignoramos que, sendo dramático todo texto, o que o possibilita é seu quase ser possível – em uma concepção muito oriental, é como se toda obra de arte tendesse (ou devesse tender) à representatividade de um mie, postura cênica do teatro kabuki, que tem como base de sua intensa plasticidade um “quase”, no gesto que diz muito por ainda não estar dizendo. Nossa concepção de arte, muito ocidental, está mais para a finalização realística da ação, com um desmaio ou um pranto redentor. Gostamos das rubricas que mostram como o leitor-espectador deve chorar. E o escritor não pode perder a chance de se fazer compreender. Rubrica é a tentativa de dizer mais que o não dito.

Tudo leva rubricas (e diz-se aqui tudo exatamente para não se diferenciar arte de vida). Quanto mais as ignoramos, ignorando que as criamos e principalmente de que forma as criamos, mais elas se desdobram, reação em uma cadeia altamente fértil de negações. Quando as buscamos, pensamos encontrá-las, pois algo encontramos. De certa forma, quando se leva um objeto não artístico a ser visto como artístico, o que fazemos é atentar (como valor artístico ou não) para suas rubricas. Quando falamos de arte, acabamos buscando as rubricas.

É no mínimo contraproducente qualquer tentativa de falar de arte ignorando isso. A tradição de crítica literária acabou sempre indo contra isso, já que sempre buscou a sobriedade em sua produção ensaística. Essa espécie de jornalismo do imponderável fez nossos sentidos seletivos de acordo com o que se lê. Já amortecidos pelas divisões de gênero que seccionam prosa e poesia, perante um ensaio nos tornamos pessoas muito sérias e respeitosas. Se já não usufruímos da sensualidade da poesia, não poremos nossos dedos justamente sobre a pele recatadamente coberta de um ensaio. Porque queremos dele é o que tem no “interior” (nessa regra cênica de bons costumes, não é de bom tom usar o “como” e sim o “sobre o quê”, pois o “como” já está visivelmente resolvido).

Um ensaio formalmente ousado parece falar mais sobre si do que de seu tema. Mas aí está o equívoco, em separar o ensaio em si de seu tema, como se se pudesse dizer a mesma coisa de outra forma (dois ensaios com o mesmo tema falam de coisas diferentes, tendo entre si apenas algumas semelhanças). Pouca coisa ajuda para que percamos esse vício dicotômico. Ao contrário, ele nos é implantado desde a infância no próprio ambiente escolar, por um projeto de aprendizado que privilegia o pragmatismo, a objetividade. A ponto de já não ser mais obrigatório o ensino da literatura, uma fantasia a mais (ou, assim, a menos). Quando muito, trabalha-se (e isso na prática ainda acontece) com alguns trechos de poesia como exemplos para a gramática, deixando-se a consciência tranqüila por se estar dando aos pobres alunos uma “oportunidade” de contato com a literatura. Se o aluno quer fazer a redação dele em forma de poesia, não pode. Quando todos têm de fazer em forma de poesia, alguns não querem, mas devem. Como falar, então, de prosa poética?
 


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Quando um escritor pensa um texto, acha que um crítico adivinhará uma rubrica e a usará como uma chave segura sobre seu texto. Acha que ela será a idéia genial por trás do texto. Mas ela é tão-somente uma rubrica.

Antes de se chamar rubrica e perder o encanto (como o rio transformado em apenas rio de Manoel de Barros) era talvez aquilo sobre o que nenhum poeta pode raciocinar. O tal espanto, quem sabe a pulsão de um irrealizável dizer. Que o fazia só querer dizer. Mas então ele vai e diz alguma coisa. E deixa dito.




VICTOR PAES é poeta, ator e professor. Foi premiado pelo Prêmio Jovem Artista, da Rioarte, com o texto teatral Os Cálices do Deus, que depois foi apresentado no Projeto Nova Dramaturgia. Foi publicado pela Editora Record, na coletânea do Prêmio Nossa Gente, Nossas Letras, da Oldemburg. Integra e faz a direção cênica do grupo Arranjos para Assobio. Publica alguns de seus trabalhos em seu blog: http://victorpaes.blogspot.com

 


 

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