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moacyr scliar
estrela e guia
Jean-Paul Sartre escreveu boa parte de sua obra no Café de Flore, em
Paris. Não foi o único. Muitos escritores procuraram em cafés o refúgio e
o estímulo para a elaboração de suas obras. Café e bares, naturalmente.
Podemos imaginar que ensaios e obras filosóficas são melhor escritos em
café; mas para a poesia o bar é um cenário muito melhor. Aliás, a história
da poesia brasileira poderia ser escrita tendo os bares como marcos
históricos. Foi no Villarino, bar do centro do Rio, que Vinicius propôs a
Tom Jobim a primeira parceria, dando início a uma gloriosa trajetória.
Mario Quintana também freqüentava bares. Não sabemos quantos poemas pode
ter escrito ali, nem sabemos se o fez, mas sabemos que prestou ao bar,
visto como refúgio, uma bela homenagem.
O poema chama-se, justamente, Canção de bar e começa assim: “Barzinho
perdido / na noite fria / estrela e guia / na escuridão”.
Estes quatro versos são típicos da poesia e do poder criador de Mario
Quintana. São feitos de palavras absolutamente comuns, destas que figuram
no vocabulário de qualquer brasileiro. Nada de exageros, nada de arroubos,
nada de vocábulos complicados: Mario era um poeta essencialmente
democrático. Mas, com esta simplicidade, ele criava beleza. Mais criava um
clima. Começamos a leitura e de imediato nos vemos em uma daquelas
nevoentas noites do inverno porto-alegrense. O poeta vagueia sem rumo na
noite porto-alegrense. Avista o bar, um pequeno estabelecimento, e de
imediato vê nele “estrela e guia”. Entra esperançoso. E o poema prossegue:
“Que bem se fica! / Que bem! Que bem! / Tal como dentro / de uma apertada
/ quentinha mão...” E por que se sente bem? Por causa das figuras
imaginárias que encontra: “Rosa, a da vida”, que talvez tenha iniciado o
poeta, como era comum no Rio Grande de outrora; “E o Pedro Cachaça / com
quem me assustavam / (O tempo que faz!)”; “E o Anto que viaja / pelo alto
mar”.
Ali também estão, em espírito, os poetas franceses que influenciaram o
jovem Mario: Verlaine, Rimbaud, Villon. No fim, tudo tem a ver com poesia,
até mesmo a caninha, que, pretensamente pura, foi batizada com “a mais
pura água”. O que ao poeta não incomoda; porque “... poesia pura / ai seu
poeta irmão, / a poesia pura / não existe não!” Claro, não era só em bares
que o poeta encontrava a humanidade. Embora fosse um homem retraído,
tímido mesmo, não era um misantropo, não recusava a companhia de outros
seres humanos. Ao contrário, sentia-se bem em lugares freqüentados por
muitas pessoas. A redação do jornal, para começar. Ali, diz Antonio
Hohfeldt, que foi seu colega no " Correio do Povo", Mario passava horas,
dedilhando seus textos na máquina, ou simplesmente pensando. Ou então no
cinema: era um cinéfilo contumaz, via qualquer tipo de filme, desde
faroeste até obras-primas. E por fim na praça: era comum encontrá-lo na
Praça da Alfândega, no centro de Porto Alegre, caminhando no meio as
multidão e sentindo-se inteiramente à vontade. Mario sabia que a poesia é
coisa humana, e só pode existir em cenários humanos, como a redação do
jornal, como o cinema, como a praça – e como um barzinho perdido na noite
fria. Falando em barzinho, por que se fica bem, ali? Por causa da mão,
apertada e quente, que nos envolve com um carinho materno. É a mão da
poesia, no interior da qual Mario Quintana escreveu poemas que, um século
depois de seu nascimento, continuam a nos encantar e a nos comover.
Canção de bar
Barzinho perdido
Na noite fria.
Estrela e guia
Na escuridão.
Que bem se fica!
Que bem! Que bem!
Tal como dentro
De uma apertada
Quentinha mão...
E Rosa, a da vida...
E Verlaine que está
Coberto de limo.
E Rimbaud a seu lado,
O pobre menino...
E o Pedro Cachaça
Com quem me assustavam
(O tempo que faz!)
O Pedro tão nobre
Na sua desgraça...
E Villon sem um cobre
Que não pode entrar.
E o Anto que viaja
Pelo alto mar...
Se o Anto morrer,
Senhor Capitão,
Se o Anto morrer,
Não no deite ao mar!
E aqui tão bem...
E aqui tão bom!
Tal como dentro
De uma apertada
Quentinha concha...
E Rosa, a da vida,
Sentada ao balcão.
Barzinho perdido
Na noite fria,
Estrela e guia
Na turbação.
E caninha pura,
Da mais pura água,
Que poesia pura,
Ai seu poeta irmão,
A poesia pura
Não existe não!
“Canções” de Mario Quintana
MOACYR SCLIAR é
escritor e médico. Publicou Pai e filho, filho e pai (conto, 2002), Os
leopardos de Kafka (romance, 2000), Dicionário do viajante insólito
(crônica, 1995), Se eu fosse Rotschild (ensaio, 1993), entre outros mais
de 60 livros. Recebeu prêmios literários como o Jabuti, o APCA e o Casa de
las Americas e já teve suas obras traduzidas para doze idiomas. É
colunista da Folha de São Paulo e pertence à Academia Brasileira de
Letras.
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