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carlos felipe moisés


elogio da síntese

 

 

 

Fazer o elogio da síntese é fácil. (Difícil, sempre, é ser sintético.) Todos nós, que lidamos com poesia, seríamos mais felizes se os poemas que nos cercam privilegiassem o espírito de síntese, vale dizer se se limitassem ao indispensável. Não conheço um só poeta ou leitor que defendesse o contrário. Chegar a esse resultado, isto é, dispensar o dispensável, também é fácil – exceto, claro está, para o poeta prolixo, que passa ao largo da distinção, e para quem o esboço de receita, a seguir, será de pouca valia.

É uma receita elementar: escreva, passe para o papel tudo o que lhe vier à mente, sem se preocupar com método, técnica, estilo, gênero, modelo etc. Nenhuma inibição, nenhuma barreira, nada de autopoliciamento. Escreva tudo. Em seguida, comece por eliminar os sinais de pontuação, que não expressam nada, apenas balizam o itinerário – caso você tenha um só. Como convém ter mais de um, melhor não pontuar. Depois corte os artigos, os pronomes, as preposições e as conjunções, que não chegam a ser palavras propriamente ditas, só servem para conectar, de forma explícita, umas às outras, as palavras que de fato contam. Os espaços em branco e os cortes, por exemplo (sintaxe orgânica), constituem uma maneira mais interessante de se obter o mesmo efeito. Em seguida desfaça-se não de todos (é preciso não radicalizar), mas do maior número possível de adjetivos e advérbios – palavras insidiosas, quase sempre subordinadas, respectivamente, aos substantivos e aos verbos, mas que (como dizem os gestores da qualidade total) não agregam valor nem a estes nem àqueles. Por fim, converta o maior número possível de modos, tempos e flexões verbais em infinitivo impessoal. Se o que sobrou não fizer sentido, verifique se a reposição de uma ou outra (só uma ou outra) das palavras eliminadas resolve. Se não resolver, jogue tudo fora.

Exemplo: caso lhe ocorra iniciar um poema com um verso que diga “De manhã bem cedinho, todos os dias, ao acordar, eu canto”, talvez seja melhor ficar só com “manhã” e “cantar” – não lado a lado, formando uma falsa frase, mas uma palavra aqui, outra ali. Recomece o poema, deste ponto. Caso isto não lhe agrade, e você prefira continuar como começou, releia o parágrafo anterior.

No primeiro caso você estará sendo prolixo; no segundo, sintético. Síntese é isto: o antídoto mais seguro contra a prolixidade. Mas repare que não é uma questão de estilo ou de forma, não se trata de uma técnica. É uma questão de sentido. O poema concebido sob a égide da síntese registra apenas os núcleos essenciais, não perde tempo com subentendidos, atalhos, implicações, repetições, ornamentos etc. Que são “núcleos essenciais”? Cada qual sabe dos seus. (Se você está em dúvida, melhor não escrever.) O poema prolixo se compraz na proliferação de irrelevâncias, à procura dos tais núcleos – no caso, vagos e difusos, isto é, falsamente “profundos”, ou inexistentes. Contra o vago e difuso, a solução é a clareza, que, longe de ser atributo exclusivo de matemáticos e filósofos, também interessa a poetas imbuídos do espírito de síntese. Em vez de clareza, você pode pensar em precisão, como faz T.S. Eliot: “Falamos como se o pensamento fosse preciso e a emoção, vaga. Na realidade, existe emoção precisa, assim como existe emoção vaga. [...] Toda emoção precisa segue no rumo de uma formulação intelectual”.

Desde que não sejam confundidas com “lógica”, a clareza e a precisão correspondem à palavra justa. Se você não a encontrou, não convém sair atrás dela, no papel. Limite-se a observar com mais atenção o que você tem a dizer, a não ser que lhe agrade brincar de palavra-puxa-palavra. Mas, neste caso, quando o milagre do contágio produzir a aparição daquela que você vinha buscando, elimine as anteriores, que só serviram de exercício preparatório. A chave é não se entusiasmar, para não se distrair.

Se não é uma questão de estilo, síntese vem a ser sinônimo de concisão, condensação, concentração de sentido. Como tal, também não oferece dificuldade: basta prestar atenção ao que você tem em mente. Só não é fácil (ao contrário, é uma impossibilidade) para o poeta prolixo, que não se dá conta da sua prolixidade, seja porque considera de suma importância todas as palavras que for capaz de colocar no papel – e isso não lhe permite distinguir o indispensável do supérfluo; seja porque seus núcleos essenciais, caso existam, ainda não chegaram ao nível da consciência e da clareza. A prolixidade não é fruto da deliberação (ninguém é prolixo de propósito), mas da inadvertência, e, no geral, pelo menos em poesia, radica na hipertrofia do ego, isto é, na presença de uma voz balbuciante, a buscar, sem rumo, a auto-identidade perdida ou ainda não encontrada. O espírito de síntese é uma impossibilidade, também, para o leitor distraído, que não atina com os momentos fortes do poema à sua frente, caso estes existam, e deixa-se conduzir pela quase sempre aliciante cantilena do poeta prolixo e, a exemplo deste último, confunde devaneio com poesia.

Poesia, antes de ser devaneio, é imaginação ou ficção. Todos, menos o poeta prolixo, o sabem, pelo menos desde que Fernando Pessoa o definiu: “O poeta é um fingidor”. Fingir, fingidor e fingimento provêm do latim: fingere. Mas ficção e fictício também, e do mesmo verbo: fingo, is, finxi, fictum, fingere. Poesia é imaginação concentrada, sem tempo a perder com os devaneios e divagações autocomplacentes do poeta à procura do próprio Eu. Ou do poeta incapaz de imaginar algo interessante a dizer – interessante, bem entendido, para nós, seus leitores, já que, para ele, tudo o que lhe venha à mente será interessantíssimo.

Como se vê, privilegiar a síntese resulta em elogiar o leitor. É só reparar que, além de se contrapor à prolixidade, esta se contrapõe também à análise. Mas aí o caso é outro: as incursões analíticas não podem ser simplesmente eliminadas, como eliminamos as superfluidades, segundo a receita da abertura. O poema vazado em estilo analítico é aquele em que aos núcleos essenciais vão-se agregando, naturalmente (se a análise for de boa qualidade), os corolários, as inferências, os desdobramentos e por aí vai. Vale dizer tudo exposto, explicado e justificado pelo poeta, como se se tratasse de uma dissertação acadêmica, reduzindo o leitor à condição da mais deplorável passividade. Já o poema sintético oferece ao leitor a possibilidade de intervir. (Lembre-se: enquanto não migrar para a consciência do leitor, o poema ainda não existe.)

O leitor distraído nem se dá conta de que isso é possível; o pretensioso acredita que pode ler, no poema à sua frente, o que bem entenda, multiplicando ao infinito (para satisfação dos desconstrucionistas) os núcleos essenciais revelados/escondidos pelo poeta, mas sem dar por eles. Já o leitor atento sabe que sua intervenção é bem-vinda e necessária, mas que não lhe é facultado enxergar, no poema lido, os infinitos poemas que quiser, e, sim, tão somente aqueles três ou quatro (bem, pode ser um pouco mais, um pouco menos), latentes nos versos efetivamente escritos pelo poeta. Se a liberdade de leitura fosse infinita, para que precisaríamos do poema? Só para nos inspirar, enquanto leitores? Ou só para ensejar que Fernando Pessoa acrescentasse, não sem mágoa, à definição famosa, o desdobramento quase sempre esquecido: “E os que lêem o que escreve, / Na dor lida sentem bem / Não as duas que ele teve / Mas só a que eles não têm”?

A receita que recomenda cortar quase tudo, como vimos, lida com a síntese que só aparece na linha de chegada, mas é preciso cogitar também da síntese que já se instala no ponto de partida, como dimensão integrante do processo de concepção: cortar/condensar o pensamento ou a intenção, em vez de apenas eliminar, depois, os excessos escritos. Aí já pode ser tarde: a síntese da linha de chegada corre sempre o risco de ser confundida com brevidade, isto é, com a extensão, como se todo poema curto fosse necessariamente sintético ou conciso. A síntese do ponto de partida garante a concisão, seja o resultado (rimemos) breve ou não.

Síntese não é uma questão de tamanho, mas de densidade ou concentração ideativa. A entronização da brevidade, como alvo a ser buscado em si e por si, resulta em maneirismo: dois ou três versos, meia dúzia de palavras e pronto!, aí temos o poeminha da moda minimalista – aliás, quase sempre prolixo, não obstante diminuto. No outro extremo, há poemas imensos, exemplarmente concisos, dos quais só algum celerado sugeriria eliminar, por supérfluo, um verso sequer. Você já reparou na “Tabacaria”, esse despropósito de 167 versos? Que tal cortar, por exemplo, aquelas passagens que já estão entre parênteses, como a que começa “Come chocolates, pequena, come chocolates”?

Apesar disso, não sejamos radicais: o elogio da síntese pode abrigar, também, uma discreta e secundária homenagem à brevidade. O poeta que se imponha a disciplina de escrever pouco (os quatorze versos de um soneto, as dezessete sílabas do haicai, uma quadrinha, um dístico), desde que não burocratize nem torne mecânico o intento, desfrutará de vantagens consideráveis: estará mais próximo do espírito de síntese; reduzirá os riscos da prolixidade; e, por fim, resistirá com brio à vertigem da página em branco, à atração da abundância desmedida e à sedução do infinito. Uma questão interessante, sugerida neste parágrafo e nos dois anteriores, é a que diz respeito ao verdadeiro teor do poema longo, que Edgar Allan Poe acreditava não passar de uma sucessão de poemas curtos. O interesse advém da larga e frutuosa fortuna do poema breve, na lírica moderna, graças à acolhida que Charles Baudelaire e Ezra Pound deram à idéia premonitória do autor de The poetic principle.

Cumpre estar atento ao fato de que o bom poema se concentra em torno de um ou outro achado feliz. Por isso, há que ser implacável, também, com o caso, a seu modo benigno, da prolixidade parcial, seja a do tipo ainda-não, seja a do tipo já-não-mais. Se, depois de páginas e páginas de decassílabos muito duros, ou muito frouxos, o poeta afinal consegue um verso que diz “Tanto era bela no seu rosto a morte”, por que não se livrar de toda a versalhada anterior, que só serviu de andaime e ainda não era poesia propriamente dita? Se tivesse sido esta a opção, O Uraguai não teria cinco caudalosos cantos, mas quem sabe um só. Basílio da Gama teria sido ignorado pelos contemporâneos, mas figuraria hoje, ao lado de Sousândrade e Kilkerry, como um dos pioneiros. Do lado de lá, se certo poema famoso se limitasse à primeira estrofe (que principia “Eras na vida a pomba predileta”), seguida talvez de não mais que meia dúzia dos 168 versos restantes, Fagundes Varela não precisaria ter diluído, ao longo de uma dezena de imensas estrofes, onde a poesia já não mais está presente, a emoção densa, precisa e suficiente dos doze versos iniciais. Nos dois casos, os ortodoxos da contextualização farão severos reparos. Diga apenas que nenhum bom leitor teria dificuldade em contextualizar. E acrescente que para o mau leitor não há bons e maus poemas: é tudo igual. E, neste caso, contextualizar ou não contextualizar é irrelevante.

Em matéria de prolixidade, enfim, toda condescendência é excessiva. E, para rematar, nada melhor que um exemplo de boa síntese, extraído de uma das odes horacianas de Ricardo Reis – exemplo especial, pois, além de conciso e breve, traz também uma referência indireta à possível matriz epicúrea daquela síntese que se consubstancia já no ponto de partida:

Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos deuses.

 

 

 

CARLOS FELIPE MOISÉS é poeta, crítico literário e tradutor. Foi professor da USP e da Universidade da Califórnia, em Berkeley. Publicou Círculo imperfeito (1978), O desconcerto do mundo (ensaios, 2001), Alta traição (poemas traduzidos, 2005), entre muitos outros. Recebeu em 1989, já pela segunda vez, o prêmio de poesia da Associação Paulista dos Críticos de Arte. O texto aqui publicado foi apresentado no I Fórum das Letras, Ouro Preto, em novembro de 2005, em mesa-redonda de mesmo tema, proposto por Alice Ruiz e Rodolfo Guttilla.

 


 

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