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latuf isaias mucci


literatura, literalmente

 

 

Para Eduardo Bakr, ator.

 

 

O caminho começou. A viagem acabou
George Lukács
 

 

Sempre tive em mente a importância vital da etimologia em toda pesquisa de linguagem, na medida em que os signos provêm de uma fonte, têm uma narrativa, vêm vindo por veredas, suspeitas todas, aliás como enuncia Nietzsche em Genealogia da moral. Andar por caminhos etimológicos significa ir às origens de um discurso, correndo o risco de cair no sorvedouro de um sistema semiológico. Em todo caso, o jogo etimológico seduz e pode apontar insuspeitas significações. Em sua etimologia, o termo “considerar” remete à observação dos astros, extraindo, portanto, da astronomia a sua origem; todavia, a denotação do verbo “considerar” indica meditação, ponderação, atenção, observação de coisas ou temas, que ocupam nossos mortais olhos e mentes. Tecer considerações, por breves e intempestivas que sejam, sobre a literatura pode, de certo modo, revigorar tanto o sentido etimológico original quanto produzir conotações do signo “considerar”. Na meditação semiológica que assim proceda, o significante e significado disputam o discurso – o significante versus significado; ou, então, o significante faz deslocar-se o significado.

Pode-se pensar a literatura por, pelo menos, dois caminhos, duas vertentes, duas vias, paralelos e, ao fim e ao cabo, convergentes. De um lado, vê-se a literatura como instituição, isto é, como fenômeno social, como produto de uma sociedade, como objeto de consumo, enfim, num mercado em que ocupa determinado estatuto, privilegiado ou não. Nessa dimensão institucional, criam-se academias de letras, organizam-se círculos literários, outorgam-se, através de concursos, prêmios e láureas, estabelecem-se critérios, rígidos ou flexíveis, de avaliação da obra literária. Como fato social, a literatura insere-se, de corpo e alma, no mercado, tornando-se uma verdadeira mercadoria, cujo valor vincula-se estreitamente às leis do mesmo mercado, leis, ora cruéis, ora benévolas, no entanto sempre leis do mercado capitalista, neoliberal ou selvagem, onde o capital rege absolutamente tudo. No circuito que enlaça o autor, o livro e o leitor, revela-se abertamente o caráter institucional da literatura, que se produz, que se vende, que se consome. Do mesmo modo que qualquer ser social, a instituição da literatura estigmatiza-se com os traços da ideologia, quer dizer, marca-se profundamente pelos valores vigentes e regentes da sociedade, em que se engendra; embora podendo articular um discurso contra-ideológico, o discurso da literatura não escapa ao discurso ideológico propriamente dito, confirmando, até certo ponto, o tautológico axioma marxista, segundo o qual “a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante”: em função mesmo de originar-se de um determinado autor, pertencente a uma determinada classe social, inserido num certo contexto sócio-histórico, dirigindo-se a leitores, dentro de certa moldura cultural, o produto artístico, o livro, o texto, o discurso literário configuram um inegável sistema ideológico. Histórica, cultural, humana, demasiadamente humana, por conseguinte, a literatura, tomada como instituição, inclui-se no complexo mosaico da sociedade, ainda que a argamassa que a liga às demais instituições possa abrigar componentes críticos e, até, cáusticos. Perspectivada nesse sentido, a arte, e a literatura, em particular, estruturam-se como discurso anti-ideológico, assumindo uma postura transgressora e denunciadora, como sempre postulado por Jean-Paul Sartre e sua contundente categoria do engajement. Entretanto, não se nega – tampouco denega-se – que a literatura, na condição de instituição ou prática social, e, até mesmo, de linguagem de arte, instaure uma ideologia, no momento mesmo em que funda, ou repete, uma estética e uma ética.

Vislumbrada como arte, como linguagem de arte, como expressão artística, a literatura parece reavivar o velho sentido etimológico do verbo “considerar” – mirar os astros –, tendo em vista que mencionar o termo “arte” evoca, muitas vezes, um caráter de enigma, distanciamento, intangibilidade. Articulada à etimologia astral de “considerar”, outra investida permite aproximar a arte, ou a literatura, deslocando-a dos espaços siderais: o verbo “especular” origina-se de speculum, vocábulo latino traduzido, em vernáculo, por “espelho”; especular, então, sobre a literatura, desta feita enfocada em seu extrato artístico, reenvia à significação daquela superfície, onde se pode contemplar outra realidade, representada, re-presentada. Representando, espelhando, tornando presente, pois, um real ausente, mas que se quer alcançar – embora o sabendo, a partir de Jacques Lacan, inatingível –, a arte da literatura recria um real, que potencializa o real, que se faz presente, como, em sua Poética fundadora, estabelece Aristóteles. Como toda arte, como toda linguagem de arte, como toda forma artística, a literatura possui seus códigos, traça suas leis, desenha sua história, composta de textos e nomes, obras e artistas, questões e soluções, questões sem soluções, temas e estilos.

Embora presente com maior ou menor realce nas diversas fases da diacronia literária, a problematização da própria literatura pelo discurso literário assume, a partir da modernidade (eclodida, na Europa, em fins do século XIX e, no Brasil, nos primórdios do século XX), um lugar nuclear, chegando, mesmo, a caracterizar a literatura moderna como aquela em que discurso se centra, narciseamente, sobre si mesmo. “Tudo foi dito!”, exclamou um escritor moderno; com a consciência desse esgotamento dos temas, o texto moderno fala de si próprio, tematiza-se a si mesmo, volta-se sobre seus meandros e signos. Analisando a filosofia de Foucault, o filósofo português Vergílio Ferreira pondera que “(...) justamente a grande novidade do saber do nosso tempo é a radical reflexão da língua sobre si própria. O discurso é retomado em si mesmo ao modo do século XVI. Com a diferença, porém, de que ele não remete para nenhum outro discurso oculto, mas se fecha nos seus próprios limites. E daí a conclusão singular de que pela primeira vez o ser do homem e da linguagem tenderão a reunir-se num só todo – o que jamais aconteceu. A palavra é agora uma entidade por si. Assim, pela primeira vez surge a ‘Literatura’, anunciada nos fins do século XIX num Nietzsche e num Mallarmé, isto é, a arte da palavra que vive da própria palavra, a põe a ela em questão, a força à transparência de si mesma, a força a dizer o que está nela, sendo que o que está nela é só o que está nela e não o que está para além”. Com o formalismo russo (corrente crítica literária, originada, em 1915, em Moscou, de que fizeram parte, entre outros poucos, R. Jakobson, V. Chklovski, B. Eikhenbaum, J. Tynianov), emerge a questão da “literariedade” (literaturnost), que tem feito correr tanta tinta sobre as páginas em branco (e sobre a tela iluminada do computador); questão jamais elucidada e sempre resolvida de acordo com as ondas do grande mar literário, literariedade – ou aquilo que produz a marca de um texto literário, a chancela da artisticidade de um texto, a tatuagem da poeticidade de um discurso, distinguindo-o de outro texto não-literário – parece encontrar um encaminhamento plausível à medida que se considere a literatura (a arte da literatura) o discurso de uma determinada época, a linguagem de certa sociedade, um texto de uma época, que elege tais e tais obras como peças de arte literária. A função poética, determinante, de acordo com o esquema das funções da linguagem, desenvolvido, retomando pesquisas anteriormente empreendidas por lingüistas outros, por Jakobson, da natureza literária de um texto, assinalará, se caminharmos por vieses e reveses, um retorno do referente, uma volta à função referencial, um regresso ao dado histórico, ao elemento cultural, ao extra-textual. A teoria da arte, ou poética, deflagrada, na Grécia arcaica, pelo Estagirita, agenciará a pesquisa da literatura enquanto linguagem, linguagem de arte.

Então, os dois caminhos, as duas vertentes da reflexão sobre o ser da literatura (metonímia e metáfora da própria arte) – o ser social do sistema literário e sua natureza de linguagem de arte – convergem, esmaecendo, portanto, as paralelas, uma das quais mirava o infinito, ao passo que a outra sulcava o solo. Pois é no aqui-e-agora da realidade que a literatura opera, elevando o ser humano a um brilho astral, confirmando a assertiva nietzcheana de que só a arte justifica a existência. Morto Deus, segundo Nietzsche, em Nova aurora, mortos os ídolos todos, conforme decretam a modernidade e a pós-modernidade, poderá o ser humano atrelar à estrela da arte e, em especial, à estrela fulgurante da literatura, sua cabeça.



LATUF ISAIAS MUCCI é Pós-doutor em Letras Clássicas e Vernáculas (USP), Doutor em Poética (UFRJ), Mestre em Teoria Literária (UFRJ), Mestre em Ciências Sociais (Université Catholique de Louvain, Bélgica), vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte, da UFF. É autor de livros e ensaios em torno de crítica literária e de arte. É pesquisador dos grupos Estéticas de fim-de-século e Ressonâncias do decadentismo na belle époque brasileira. Tem publicados numerosos ensaios em livros, periódicos, jornais e revistas. Organizou recentemente, junto a Luiz Edmundo Bouças o livro Dândis, estetas e sibaritas, pela Editora Confraria do Vento.

 


 

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