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escrita assêmica e arte: um outro caminho

 

 

 

Eu sou um escritor australiano. Minha busca por expressar minhas complexidades me levou da prosa convencional à prosa experimental, à poesia experimental e agora a uma forma experimental de escrita que eu chamo de “escrita assêmica”.

Aprendi a palavra “assêmico” com um poeta americano, Jim Leftwich. Debatendo sobre as tendências da poesia experimental contemporânea, ele observou que os poetas mais radicais buscam um texto “assêmico”, isto é, sem informação semântica, mas ainda de certa forma um texto.

Usando minha intuição, descobri uma trajetória de obras que eu diria pertencentes a uma tradição assêmica.

O artista e poeta Henri Michaux criou desenhos intuitivos, alguns semelhantes à caligrafia. Seus “mouvements” (publicados em Face aux verrous, Gallimard) saltam à mente. Muitos de seus livros de poesia contêm essas imagens.

Um dos fundadores do movimento CoBrA, o poeta Christian Dotremont, criou um estilo de caligrafia ilegível que ele chamou de “logogramas”. Ele pintava palavras, mas estava preocupado apenas com o vigor das pinceladas e a possibilidade de beleza, no lugar de legibilidade. Eu tenho tão pouco conhecimento de francês, que para mim suas palavras têm o mesmo efeito que teriam se elas fossem deliberadamente assêmicas. Uma grande coleção de logogramas foi publicada em Logbook (Yves Rivière, 1974).

Brion Gysin e William Burroughs produziram alguma caligrafia experimental, ambos com pincel e caneta. Um pouco dela está publicado em Ports of Entry (Thames and Hudson). Gysin combinou nela caracteres japoneses e árabes. Burroughs pintou esboços ilegíveis de letras e numerais.

O artista naïf afro-americano J. B. Murray pintava quadros de “escrita sobrenatural”, um tipo de texto ilegível que ele dizia receber de Deus. Ele podia interpretar o sentido desses quadros olhando-os através de uma garrafa de água benta. Suas obras estão expostas em museus de arte folclórica. In the Hand of the Holy Spirit (Mercer) contém reproduções de algumas de suas obras.

Conheci Jim Leftwich como editor do jornal de poesia Juxta e como colaborador de jornais como Lost and Found Times, antes dele usar a palavra “assêmico”. Sua caligrafia experimental e ilegível nas páginas 18 e 19 de Lost and Found Times #39 (novembro de 97) foi decisiva em minha mudança de concepção de escrita, linguagem e poesia.

Viajei pela Indonésia em 1998, planejando escrever minuciosamente sobre minhas experiências. Quando retornei à Austrália, meus sentimentos estavam tão confusos que eu não pude nem começar a escrever. Porém, me peguei fazendo rabiscos com canetas e lápis. Após poucos meses, eu tinha material suficiente para produzir um pequeno livro de 4 páginas em A4, no qual incluí alguns trabalhos enviados por Leftwich e alguns textos inspirados em grafites criados por um jovem amigo, Tom van den Bok, chamado asemic ~ volume 1.

Em 1999, comecei a experimentar canetas diferentes, depois pincéis e tintas chinesas. Meu trabalho evoluiu. Os trabalhos mais vigorosos reuni no 1st book of asemic texts.

Buscando contatos no meio artístico e de poesia visual, montei uma pequena revista chamada asemic. Nem todos os trabalhos dessa primeira edição são realmente assêmicos, mas nenhum deles é suscetível a métodos de interpretação convencionais.

Uma cópia do meu 1st book foi parar nas mãos de Paul Silvia, co-proprietário do Broken Boulder Press. Ele e seu sócio ficaram entusiasmados em publicar um livro com minha escrita assêmica. Enviei uma pilha de fotocópias, suficiente para 2 volumes. The Oxygen of Truth, volume 1, foi publicado em julho de 2000, e o volume 2 em janeiro de 2001.

Também em 1999, fiz contato com Cornelis Vleeskens, um escritor holandês residente na Austrália. Ele estava atento a Michaux e Dotremont. Ele já era um perfeito calígrafo experimental. Seu trabalho era remanescente das caligrafias chinesa e japonesa, assim como Michaux e Dotremont, e não se pretendia a ser legível.

Minha pesquisa da caligrafia chinesa havia encontrado outra conexão: o “crazy grass style” (n.d.t.: um estilo de caligrafia chinesa caracterizado por pinceladas curtas e numerosas, que, juntas, dão a aparência de longas linhas retorcidas). Esse estilo desenfreado de caligrafia chinesa é freqüentemente ilegível, mas contém uma alta carga emocional e uma beleza sinuosa.

Alguns calígrafos japoneses modernos (do pós-guerra) e artistas visuais tendem a essa ilegibilidade, também: o grupo Bokujinkai e o grupo Gutai.

Em outubro de 2000, publiquei a revista asemic #2,1. Novamente, nem todo o conteúdo era assêmico, mas certamente não era legível para pessoas que só conseguem ler o alfabeto romano. Entre os colaboradores está a artista intuitiva Louise Tournay, que produziu muitas páginas de escrita assêmica automática.

Ken Harris, que co-edita a revista Juxta com Leftwitch, também produz muitas obras assêmicas. Ele e Jim Have fizeram juntos trabalhos imensos usando caneta e crayon. Harris também fez desenhos assêmicos em fichas de arquivo.

Muitos outros poetas experimentais estão começando a trabalhar nesta área.

O que é escrita assêmica, e qual é sua utilidade?

Eu não tinha nenhuma idéia do que estava fazendo quando comecei a desenhar símbolos que pareciam uma forma de escrita. Eu parei para me observar nesse ato. Lentamente, estou começando a entender o que eles devem ser.

A escrita não contém simplesmente informações semânticas. Contém também informações estéticas (quando vista como forma e imagem) e informações emocionais (como poderia dizer um grafólogo). Ao eliminar informações semânticas, a escrita assêmica traz à tona esses conteúdos emocionais e estéticos. Como exemplo contrário disso, o email é uma escrita quase destituída de conteúdos estéticos e emocionais, pois os despreza.

Os escritos assêmicos brincam com nossas mentes, seduzindo-nos a tentar “lê-los”. Alguns deles deixam quem olha suspenso entre “ler” (como texto) e “ver” (como imagem). Essa é uma situação muito interessante. Eles constroem uma ponte entre arte e escrita. Na cultura chinesa, a poesia, a pintura e a caligrafia são consideradas artes muito próximas. A escrita assêmica é uma analogia ocidental disso.

Dando um grande passo para trás, afirmo que a cultura literária mundial voltou-se para um extremo de yang. Então, o que predomina é o conteúdo semântico, as teorias de interpretação, a produção e venda em massa. Uma rígida lógica está em voga.

Eu sou o campeão da cultura yin: intuição, instinto, magia, sonho, o irracional. Uma abordagem mais feminina e graciosa. Essa cultura parece se difundir através de pequenos livros e revistas, por correspondência e oralmente.

A escrita assêmica diz o que não posso dizer em palavras. Parece mais próxima do vazio de onde nós os humanos tiramos nossos significados.

Não sou um teórico, apenas um escritor e poeta. Essas palavras foram rabiscadas em uma manhã de terça-feira, para tentar começar a lhes apresentar a escrita assêmica.

 

disforme, amorfo, aleatório, orgânico: oriente e ocidente

A cultura ocidental fica pouco à vontade perante formas rústicas, linhas irregulares e arranjos imprecisos.

Alguns pequenos exemplos:

Eu levei um trabalho (meu nome ligeiramente escrito com um marcador de texto em caracteres Hangul coreanos) a uma loja para ser transformado em um carimbo. A atendente ficou perplexa com aquilo que ela entendeu como um desleixo. Você não quer ajeitar essas linhas antes de pôr em um carimbo? Eu tive que repetir várias vezes a ela que aquele era o efeito que eu estava procurando.

Um jornal australiano de poesia pediu contribuições para uma edição dedicada à carpa (um peixe introduzido nocivamente nos rios australianos). Eu escrevi os ideogramas chineses para “peixe dourado”, enchendo quase toda a página. Junto a isso eu escrevi: “Rei do rio sou eu. Quando bebo chocolate, outro peixe morreu”. O trabalho foi rejeitado, pois o diretor de arte do jornal achava que os ideogramas chineses eram muito confusos e não caíam bem com o resto da revista. Um artista japonês amigo meu gostou do trabalho.

Nos anos 50, na Europa, muitos artistas plásticos trabalharam com símbolos e figuras abstratas. Seus trabalhos têm sido classificados como Arte Informal (Art Informel), Tachismo ou Grafismo. Suas semelhanças com a pintura e a caligrafia asiática foram muito discutidas.

A palavra francesa “informel” significa “sem forma” ou “informe”. A palavra “amorfo” é um bom equivalente. Como algo pode ser sem forma? Qualquer coisa visível tem uma forma. Nós chegamos ao limite do conforto nas línguas e culturas ocidentais.

O Tachismo pode ser chamado de arte das manchas. A maior parte das pinturas de Henri Michaux consiste em numerosas manchas e borrões, sutilmente diferentes entre si.

Grafismo refere-se aos trabalhos que consideram o gesto de escrever. “Caligráfico” é outra palavra às vezes aplicada a esses trabalhos, embora se assemelhem à caligrafia asiática mais do que qualquer coisa que um calígrafo ocidental escreveria.

A arte japonesa suminagashi é a arte da tinta flutuando sobre a água, depois absorvida por folhas jogadas por cima, resultando em formas orgânicas e assimétricas. Algumas delas lembram nuvens ou vísceras.

Certos símbolos taoístas consistem em imagens negras e assimétricas contendo buracos brancos e irregulares. Diz-se que eles representam yin e yang, ou céu e terra. Eles representam o equilíbrio entre yin e yang no universo mais precisamente que o símbolo convencional de yin-yang.

Os sábios chineses, particularmente nas dinastias Tang e Sung, desenvolveram uma afeição por estranhas pedras moldadas, das quais pelo menos um imperador era um entusiasmado colecionador. Até hoje, as lojas da Ásia vendem essas pedras, colocadas em bases ornamentadas.

Os sábios também empregavam marceneiros para fazer móveis com raízes irregulares, cheios de buracos, parecidos com os símbolos taoístas. Eles são conhecidos como os “móveis dos sábios”.

Na arte chinesa do penjing, na japonesa do bonsai, na coreana do bunjae e na vietnamita do hòn non bô, uma característica de beleza é a singularidade e o insólito das plantas. Um conselho para coletar os espécimes apropriados é procurar no lado da montanha com mais vento pelas árvores mais esquisitas.

Concluo que a cultura asiática aceita, e até ama, a desordem, as combinações aleatórias e a assimetria, enquanto a cultura ocidental rejeita totalmente essas qualidades.
 


conjecturas

1) Há um nível mais profundo de comunicação simbólica do que escrever palavras.

2) Até fragmentos de símbolos podem ser significativos para o leitor.
 


A arte que usa palavras é coerciva.

Escrevendo uma palavra, ativa-se essa palavra na mente do leitor. Essa é uma forma de controle mental.

Usando formas inacabadas e sugestivas que serão completadas por quem olha ou lê, é possível oferecer uma experiência menos coerciva. A escrita assêmica e as imagens disformes são exemplos de formas sugestivas.

Nós nos aproximamos da escrita assêmica como crianças aprendendo a ler, ou como um adulto aprendendo uma nova escrita, como a chinesa.

A educação tradicional é um método insuficiente para interpretar a escrita assêmica. A escrita assêmica é uma ameaça para quem tem muito investido na educação tradicional.

Após milhares de viagens ao território do assêmico, nós humanos começaremos, sem dúvida, a mapeá-lo e compreendê-lo.

 

tradução de Victor Paes
 

 

 

TIM GAZE, escritor, ensaísta, pesquisador, músico e poeta assêmico, vive em Adelaide Hills, sul da Austrália, onde se dedica à busca de um estilo de escrita que transcenda idiomas e alfabetos. Foi publicado nas revistas internacionais Going Down Swinging 20, Asemia, Paroxysm, LÔÔP 003, entre outras, e tem um intenso trabalho de divulgação e compilação de artistas assêmicos. Um pouco desse trabalho está disponível em http://www.asemic.net

 

 


 

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