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ludmila saharovsky
tempo submerso
Caros amigos... Conheço e
acompanho sua revista desde a primeira edição e relutei um pouco em
escrever-lhes pelo motivo que passo a expor. Sou russa de ascendência.
Nasci em um campo para refugiados de guerra em Salzburg, Áustria, de onde
emigramos para o Brasil e hoje resido no Vale do Paraíba. Perdi a maior
parte de minha família, assassinada, em um dos Gullags Stalinistas, no
arquipélago de Solovetskye Ostrova, (sigam pelo mapa até o Mar Branco,
encontrem a cidade de Arhangeslk e de lá, pelo mar, busquem uma enseada
com uma microscópica ilha... uma cabecinha de alfinete na imensidão do
mapa... Acharam?) onde residi, pesquisei, fotografei e escrevi por quatro
longos meses. Trouxe material inédito: fotos, vídeo, entrevistas para um
livro que escrevo: "Tempo Submerso". Não sei se este material caberia no
perfil de sua revista. Envio-lhes pequeno texto para apreciação.
L.
*
Estou absorta na pequena embarcação balançando sobre as ondas do Mar
Branco.
O vento intermitente e úmido me fustiga. É verão, mas a temperatura de
oito graus obriga-me a enterrar a cabeça no gorro de lã grossa e a
proteger o rosto com o capuz do sobretudo, enquanto observo o pôr do sol
naquela madrugada clara, sob o Círculo Polar Ártico. Uma luz difusa
ilumina a noite e a transforma num cenário raro. Mal ele se põe e já
novamente se levanta. Assim, dia e noite não se delimitam, pelo contrário,
alternam-se sem o contraste de luz e trevas a que estou acostumada, e esse
espetáculo me fascina: o das Noites Brancas.
Percebo que alguém me observa. Viro-me e vejo, envolta pela neblina, uma
mulher que aparenta ter minha idade, também só, naquele tombadilho. “Vem
com os romeiros?”, pergunta. “Não. Não sou religiosa. Venho trabalhar nas
escavações”. “Ah! Mas não parece russa!” Eu sorrio. “E você, vem a
passeio?” “Não. Trago minha mãe. Ela busca a sepultura de meu avô. Parece
que ele foi executado nesta ilha”. Fitamo-nos em silêncio, e, de repente
ela me indica com a mão um ponto que vai se materializando no horizonte:
Solovky.
Aos poucos o pequeno espaço é tomado pelos viajantes. Todos querem ter a
primeira visão emocionada daquele arquipélago dominado pela longa muralha
e as cúpulas arredondadas e brancas do Monastério Ortodoxo, que vieram
visitar. Ali, sob o domínio dos bolcheviques, em 1920 instalou-se o
primeiro e o mais temido dos Gulags russos. O alvoroço se instala. Algumas
mulheres, com lenços coloridos na cabeça fazem o sinal da cruz. Outras
começam a organizar seus pertences: bolsas, malas, sacolas. Os homens
fumam e conversam. Tiram fotos. Pigarreiam. O barco balança muito em meio
às ondas vigorosas. Há passageiros que passam mal. O capitão abre caminho
e joga as grossas cordas para os marujos que o aguardam junto às margens.
No mastro, o ícone de São Nicolau sobressai em cores fortes. Chegamos!
Olho o relógio. Marca três horas da manhã.
Solovky é um arquipélago de muitos espectros. Ali, cada pedra, cada
trilha, cada lago são testemunhas de que a evolução humana é um percurso
de dor e medo. Sua geografia, delimitada pelo assombro, contém o presente
como se fora o desenho de uma paisagem dentro de outra, milenar. Pedras
sobrepõem-se a pedras, feito almas calcinadas. Nele, a historia foi
protagonizada, desde sempre, pelos mortos. Os vivos não passaram de
fantasmas, de coadjuvantes, num roteiro escrito por lágrimas e sangue.
Há certos lugares que nos reclamam. Nós anelamos por eles como eles por
nós.
Penso nisso enquanto percorro o território desta ilha, de 24 km de
extensão norte/sul, 16 km leste/oeste e 181 km que perfazem seu perímetro,
tornando-a a maior deste arquipélago incrustado numa das baías do Mar
Branco. Caminho sabendo que piso em cadáveres espalhados por todos os
lados. O vento que a assola desfigura as berioscas – árvores símbolo da
Rússia com seu caule esguio, elegante, prateado. Na ilha elas estão
vergadas, tortas, subjugadas. Os galhos de folhas delicadas permanecem
constantemente alisando o chão. Observo o imponente conjunto arquitetônico
feito de seixos recobertos por um musgo cor de ferrugem, que data de 1552
e a posterior construção da muralha, alta, maciça, com sete torres de
observação, erguida em 1582 como proteção contra as constantes invasões
dos povos suecos. É incrível o contraste que se estabelece com os
barracões rústicos que dela se avistam. Eles serviram de alojamento para
os prisioneiros políticos cuja história apenas agora, lentamente, começa a
emergir. Nos úmidos porões que já serviram de claustro para os monges, as
paredes nuas irradiam ainda a vibração gélida do medo. A aura da dor
infiltrada em cada fresta possui ciclo próprio para desaparecer. E este
período passa pela memória. Passa pela tentativa de compreendermos até que
ponto a loucura e o poder caminham juntos e o torpor que causam na mente
humana. No cenário daquelas ilhas foram perpetradas tantas barbaridades
que a tristeza até hoje permeia a face de seus habitantes. Alguns se
empenham em penetrar nas brumas daquele período negro e revelá-lo ao
mundo. Outros teimam em esquecer. Invasões, incêndios, abandono,
crueldade, execuções em massa. Um frio de congelar corpos e almas. E a
aura nefasta do terror.
Desde sempre rostos destituídos de corpos me fitaram. Estranhas imagens
aquelas, de olhares claros e diretos, colados sobre uma cartolina negra à
guisa de suporte. Por muito tempo pensei que as fotografias antigas fossem
assim: Que a máquina conseguisse registrar apenas a cabeça separada do
corpo ao qual pertencia. Depois, vendo o avô debruçado sobre a mesa,
pintando o cenário para contê-las, vestindo-as de memória com roupas e
adereços, fui entendendo o quanto o resgate do passado é vital para o
equilíbrio de nossa alma.
“Este é meu pai, Fiodor Wladimirovitch, com o guarda pó com que
lecionava”.
“Minha mãe, Natalia Victorovna. Vestia-se sempre com austeridade. Era
alta, magra e severa. Mas o olhar...”
“Meu único irmão, Vassili, em seu uniforme da academia militar. Adorava
tocar piano. Interpretava Rachmaninof como poucos...”
“E minha irmã caçula, Nadejda.tinha 16 anos quando nos separamos”
“E onde eles estão agora?”
“Mortos”.
Longe da guerra e seus horrores, guerra que não presenciei, mas cujas
conseqüências de dor e desamparo trouxe comigo, volto no tempo.
Regresso ao amplo cômodo de madeira no campo Parsh, em Salzburg: um dentre
tantos, todos iguais, onde dei meus primeiros passos. Nele reencontro o
pai e a mãe, os avós e mais uma família de refugiados, como nós, os
Gojenko, com os filhos. Retorno ao bosque que o cercava, à companhia de
meu avô, sentado debaixo de um pinheiro, envolto sempre em seu pesado
casaco de lã negra... Ao cheiro adocicado da grama e à descoberta dos
cogumelos que brotavam, de repente, após a chuva. Ainda agora, meio século
passado, sinto o aroma e o gosto peculiar da sopa rala e viscosa,
preparada com os grandes cogumelos brancos, que eu tomava em repetidas
porções, olhando a noite descer pela janela e fazendo pequenas bolinhas,
prensando entre dedos o miolo de pão, que adorava comer, multiplicadas.
Vejo a cortina improvisada por uma pesada colcha separando os ambientes à
guisa de parede. Os cavaleiros montando elefantes levavam-me sempre como
passageira em sua caravana, naquele cenário já desbotado, bordado em seda.
Para onde íamos? Ah! Para distantes oásis rodeados por tamareiras,
atravessando dunas varridas pelos ventos, enquanto eu rezava: Deus!
Protegei-nos das emboscadas, da fome e da sede, para sempre. Amém! A luz
acesa do lampadário iluminava o ícone da Virgem de Kiev que, juro, me
sorria e me acalmava com seu olhar tranqüilo, enquanto eu observava minha
mãe recortando velhas roupas sobre a mesa. Ela possuía o dom de
transformá-las em lindos vestidos para mim, juntando retalhos, rebordando
estampas, pregando botões de madrepérola e fitas.
E havia soluços. Muitos. Abafados. À noite, quando a casa adormecia e as
sombras igualavam todos os vultos, eu permanecia em silêncio e os
percebia. Creio que mais os pressentia do que escutava. Era assim: um
respirar em outro ritmo, que sobressaía e me tocava lá, bem no fundo, e
doía... doía... Quem chorava? Era a mãe, perdida para sempre dos seus.
Então, um medo visceral me tomava. Um medo que custei a dominar. Um medo
chamado separação.
História e memória confundem-se. Partilham o mesmo espaço em mim e fora de
mim. Atemporais. Os mortos de meu avô, ele recortou-os do tempo, da
geografia, do cenário. Mas não da memória. Pelo menos, não da nossa.
Trouxera suas imagens materializadas no papel, como que para provar a si
mesmo sua existência. Como que para ter, junto a si, alguma matéria para
tocar. Trouxera-os escondidos em dobras de pele. Costurados no forro do
casaco. Camuflados debaixo das palmilhas dos sapatos. Trouxera-os para não
se sentir órfão pela segunda vez. E tornou-me herdeira desse legado. Eu
que guardasse bem seus nomes, feições, origem. Um dia haveria de saber
onde tombaram executados. E poderia resgatá-los enfim. Pranteá-los. Orar e
espargir água benta em suas sepulturas. Depositar flores e uma cruz.
Dos retratos montados pelo avô, qual peças de um quebra-cabeças que apenas
a ele competia reunir, nossos mortos migraram para os livros de orações. A
cada missa de domingo, uma prosforá (hóstia, pão sagrado) era oferecida em
sua memória: pelo descanso de suas almas. Antes de meu pai nascer, já no
exílio na antiga Yugoslávia, o avô recebera notícias de que sua família
fora enviada para um Gulag e executada. Apenas ele lograra se salvar... e
se penitenciava por isso!
Quantas noites eu o acompanhei com os olhos, de minha cama que ficava em
seu quarto, ajoelhado frente aos ícones, imerso em orações. As fotos de
seus mortos ali... depositadas na alta e estreita bancada que servia de
suporte para o Livro dos Quatro Evangelistas. Quantas vezes eu acordei e o
avô continuava ali, como que fora do corpo, apenas o queixo apoiado pelas
mãos juntadas em prece...
Por onde vagaria sua alma?
O que tenho de meus antepassados que já não esteja impresso em meu
caráter, postura, gestos? Que não corra por meu sangue?
“Ah... esses cabelos finos... como de Natália... vivem dando nozinhos
difíceis de desmanchar. E este gênio forte, como de Vassili... Essa menina
nunca se dá por vencida!”
Eu relembro os fatos, como se os tivesse presenciado. E me sobressalto. E
transpiro. E sofro. Revejo as fotografias. Anoto todas as informações e
leio... leio vorazmente tudo o que me cai nas mãos: Pushkin, Lermontov,
Dostoievski, Gogol. Noite após noite eu caminho por ruas, casas, templos.
Reconstruo o cotidiano daqueles seres em mim. Prendo-me a detalhes: um
podstokanik, o samovar feito em Tulla, os talheres de prata com as
iniciais gravadas no cabo em meio a arabescos, o ícone de Cristo
Ressuscitado pendurado no canto da sala, a toalha de linho branco bordada
com motivos folclóricos em ponto de cruz, uma camisa de linho, um botão de
osso. Nas paredes, cópias de obras de Victor Basnetzov, Ilya Repin,
Valentin Serov, e Levitan, e Korovin. E os dedos vigorosos de Vassili
percorrendo o teclado, executando concertos de Rachmaninov, Tchaikovsky,
Rimsky Korsakov, as partituras abertas sobre o piano. Onde tudo isso se
desfez para sempre? Em que dobra do tempo perdeu-se o não vivido? O
inacabado? O por acontecer? Ouço atentamente as memórias contadas pelo avô
e, minhas mãos entre as suas, adormeço.
Somente agora, durante essa última viagem à Rússia, pude descobrir que
enquanto o avô me ensinava a tornar a fé e a beleza necessidades básicas
de minha existência; enquanto repassava a mim seu saber e sua cultura, a
suavidade de seu carinho, despertando meu interesse pela arte, música,
literatura, mantendo-me ocupada em cultivar nosso jardim de rosas, dálias
e crisântemos; milhares de crianças russas como eu, morriam nos campos,
abruptamente apartadas de seus pais, abandonadas à própria sorte, por um
regime que prometera tornar a vida de todos os cidadãos mais livre e mais
humana.
Somente agora pude descobrir de que destino macabro todos escapamos.
Livrar-nos daquele holocausto fora o mesmo que renascer no mesmo corpo,
mas com a alma fustigada por dolorosas lembranças, carregando os sonhos
feito um pesado fardo.
Emoldurada pela muralha, entre o rio e o mar, percorro caminhos permeados
de silêncio, nesta cidade de outro tempo...
Atravesso as ruas de terra batida sem aperceber-me do cheiro ácido da
maresia, das gaivotas cortando o céu, dos barcos refletindo suas cores
vibrantes no espelho d’água. Nem o zumbido dos insetos, onipresentes, me
perturba. Uma criança passa por mim, a mão estendida, o olhar vazio de
esperança, pedindo pão. Pela outra, guia uma menor e mais triste do que
ela mesma. Meu olhar as segue, mas, meu corpo se recusa ao tão urgente
gesto de ternura. Passo por elas enquanto penso: Porque não me curvei e
perguntei simplesmente o nome? A idade? A fome às vezes é de puro amor,
embora a gente pense que só a do corpo incomoda. Por que não me virei? Por
que não as alcanço agora? Mas não! Sigo meu caminho com o deserto na alma:
A areia, a fina areia recobrindo tudo. E essa ausência de sentir, sem a
qual dizem, não há salvação. Penso nos homens santos confinados em suas
celas, isolando-se do de fora, afastando as emoções mundanas. Orando…
orando…
Passo pela majestosa catedral construída em pedra bruta, e minha alma não
consegue entregar-se. Onde a salvação? Onde o tempo de recuar, de destruir
aquele instante de loucura assumida, de torpor dos sentimentos? Onde
buscar desesperadamente um amor igual ao infinito, ou simplesmente a
partilha calma da luz do sol, do calor do fogo, da benção da água e do
pão? Ao longe, as águas da Lagoa Santa são de um profundo azul cobalto e
me chamam, me aliciam: Vem!
Um espaço de fuga abre-se por cima de meu olhar: Uma fresta de céu por
trás das nuvens. E som de sinos. Deixo-me levar. O som cresce, cresce e me
envolve; e eu caminho novamente pela rua de terra batida, e vejo duas
crianças de mãos dadas, e me aproximo, e antes que me peçam pão eu me
ajoelho, as envolvo com meu amor. E só então me absolvo!
Olho para a pequenina ilha dos Coelhos e imagino o que sentiram as dezenas
de mulheres estupradas e grávidas que lá foram deixadas, completamente
nuas no inverno, sem mantimentos, sem assistência, sem explicações... O
que se passou em suas almas?
Forçadas pelas circunstâncias a comer seus filhos natimortos, num ritual
macabro de fome e desespero... igual às fêmeas de outras espécies que
devoram as placentas e os filhotes fracos até para preservá-los do
sofrimento e de sua inadequação àquele mundo.... Os sentidos confundidos
pela loucura, pelo terror, apenas o instinto de sobrevivência se
perpetuando... Quem pode imaginar o que experimentaram? Em que abismo
interno mergulharam? Quem acudiu seus gritos de dor e desespero? Quem
presenciou seu completo abandono? Sua regressão à irracionalidade? Sua
morte lenta em completa degradação?
Entro na gélida capela de pedras onde elas se recolhiam para fugir às
tempestades de neve e de vento. Onde elas deitavam-se umas sobre as
outras, na tentativa de se aquecerem e, pela manhã, as que permaneciam por
baixo amanheciam mortas, congeladas. Penso em seus corpos retirados e
deixados sob a neve. Na primavera, com o degelo, eram carregadas para o
mar. Mar Branco... Que ironia...
Não. Eu não conseguia dormir após ouvir esses relatos dos guias e fazer as
anotações em meu diário improvisado. Caminhava, então, lentamente até o
cais e olhando para aquele horizonte feito de água que me rodeava enquanto
anoitecia, ficava imaginando ossos humanos trazidos até mim pela maré.
Longos ossos carcomidos pela areia e água salobra invadiam meus
pensamentos e me acompanhavam no caminho de regresso ao quarto que
alugara, na Rua Severnaya,16, com vista para o mar. Sentada defronte à
escrivaninha uma densa névoa envolvia-me e eu mergulhava num torpor...
numa espécie de túnel sem saída. Vagava pelo passado buscando explicações
que não havia, que nunca haverá. E escrevia. Plasmava no papel as emoções
que me invadiam em ondas inquietantes e me povoavam com espectros!
Não apenas homens têm um destino traçado. Nações também.
LUDMILA SAHAROVSKY é escritora, editora e artista plástica. Foi
publicada em diversos jornais e suplementos culturais do Vale do Paraíba e
do estado de São Paulo, como O Diário de Jacareí, Folha de Rio Preto, O
Estado de São Paulo, Revista Perfil Mulher, entre outros. Seu livro Te sei
foi coreografado em 2004 pelo Grupo Radar de Dança Contemporânea,
coordenado por Juracy Barros. A Faculdade de Ciências Humanas Tereza Porto
Marques, de Jacareí, batizou uma Biblioteca com seu nome.
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